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14 abril 2024

Refazenda


O disco Refazenda (1975) dá início à chamada “trilogia Re”, de Gilberto Gil, composta com Refavela (1977) e Realce (1979) e suplementada pelo disco Refestança, gravado ao vivo por Gil e Rita Lee em 1977 e a canção "Refloresta" (2021). Ao traçar o percurso de volta às raízes de Gil, Refazenda é fundamental em sua discografia, por considerar o contexto cultural e social em que o cancionista se formou. Isso inclui elementos como a tradição musical local, as influências da mídia popular e as mudanças sociais e políticas que ocorreram durante sua juventude. Para Chris Fuscaldo, a autora do livro REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL, depois de voltar do exílio, "enquanto viajava pelos palcos do Brasil, [Gil] ia transformando o desejo de retomar suas raízes naquele que seria o repertório de Refazenda – esse, sim, o marco de um recomeço". O livro lê e escuta o disco de Gil iluminando pontos de sua produção e recepção, ampliando a rede de sentidos. Chris Fuscaldo faz o diagnóstico e comprova com rigor crítico que “Refazenda representou uma virada para o Gilberto Gil músico, uma novidade musical para os que estavam acostumados com o artista (‘artivista’) ou tropicalista, tornando-se um disco até hoje comumente resgatado para inspirar releituras. E essa novidade musical trazia consigo, à tona, a essência de Gil e a busca por suas raízes”. Essas raízes são revolvidas e redivivas pela autora de REFAZENDA - O INTERIOR FLORESCE NA ABERTURA DA FASE "RE" DE GILBERTO GIL e se expandem na obra completa do cancionista que tão bem potencializa o acervo afroameríndio do gaio saber nacional. "Fazenda" é como "tecido" é chamado no interior, Refazenda é revisão da trama de fios que compõe a obra de Gil. Curadora do museu virtual O ritmo de Gil, lançado em 2022 pelo Google Arts & Culture, Chris Fuscaldo sabe bem disso e nos ajuda a reouvir Refazenda.

07 abril 2024

Mistura adúltera de tudo


"Quando conseguirmos, no lugar da estratégica omissão, estabelecer um respeitoso dissenso entre nós (em oposição aos verdadeiramente nefastos ataques da extrema direita), talvez estejamos mais perto de alguma resistência cultural contra a força dissolvente do neoliberalismo contemporâneo, para o qual - há tempos - já não há mais sociedade". A frase que encerra o ensaio MISTURA ADÚLTERA DE TUDO, mais do que apontar uma conciliação utópica, convoca-nos a refletir sobre os caminhos que nos levaram a tão facilmente aceitar a cooptação de nossos discursos, práticas e experiências éticas e estéticas pela extrema direita (que a tudo pasteuriza e aniquila), dos anos 1970 até aqui. Promovendo uma breve revisão constelar do percurso, Renan Nuernberger diagnostica nexos e lacunas fundamentais para quem pensa e faz arte (notadamente, com texto criativo) no Brasil. Se desde 1970 o esforço tem sido "tornar o presente habitável", quanto tempo se perde em falsas polêmicas e dicotomias e em verdadeiros apagamentos e exclusões? Se "riquezas são diferenças", como diz o rock - essa linguagem jovem do jovem -, no exercício da chamada "vida literária" reinam os grupos que se retroalimentam. "Sem a fricção do debate entre artistas, a esfera do mercado, na qual todos estamos inseridos, desmancha as diferenças formais em favor de uma supostamente irrestrita fruição estética, cujo resultado, no limite, é uma relação anestesiada com as obras consumidas", escreve Nuernberger. Sem tocar no tema do "leitor sensível" é disso que (também) está se falando aqui, da deseducação dos sentidos - resultado do excesso de (pseudo) harmonia. MISTURA ADÚLTERA DE TUDO é, com perdão da nostalgia, um elogio à intrincada relação entre poética e política, diferença e ocupação.

31 março 2024

Como e por que ler a poesia brasileira do século XX


Ítalo Moriconi é dos críticos que mais experimenta compreender a poesia feita a partir dos anos 1970. Sua contribuição crítica é referência incontornável para pesquisadores e professores. No livro COMO E POR QUE LER A POESIA BRASILEIRA DO SÉCULO XX, Ítalo apresenta pelo menos seis linhas de força, todas girando em torno da ideia de que esse foi um "século modernista", a saber: a superação oswaldiana da cultura bacharelesca; a fragmentação (ou polifonia, ou multifacetada) drummondiana do eu; a quebra da hierarquia na constituição do cânone literário; o flerte tropicalista entre poesia e cultura pop; as vanguardas cabralina e concretista; e o fim dos fins das utopias. Nesse percurso, ora sobreposto, ora justaposto, Ítalo destaca quais são os poemas e os poetas essenciais. O livro apresenta, assim, excelentes leituras dos poemas selecionados, como por exemplo o "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade, em que Ítalo vai fundo de modo didático e preciso (professor que é) no jogo entre forma e conteúdo, observando que o poeta faz "tudo para colocar o eu no palco. Este eu nada tem de excepcional, é um eu comum. Trata-se então da intimidade do homem comum. Não é o eu especial de um Poeta em maiúscula, com a grandiloquência de certo mau romantismo kitsch. É o mesmo eu corriqueiro de Bandeira, mas Drummond o trabalha noutras direções, complexificando-o, mostrando suas torções e contradições internas". É essa presença do corpo na vida, no corriqueiro, no cotidiano da cidade grande o que mais se evidencia na seleção e nas análises de Ítalo Moriconi, resultando num panorama eficaz e potente da poesia do século XX.

24 março 2024

Mosaico


Marcelo Mourão tem a palavra poética como profissão de fé. Mestre e doutorando em literatura brasileira, poeta, curador de saraus, professor, Marcelo tem desenvolvido um rico trabalho de manutenção do debate público sobre poesia. No livro MOSAICO temos o Marcelo pesquisador e crítico elencando autores e temas importantes "sem berloques, miçangas ou balangandãs", como bem afirma Sérgio de Castro Pinto no prefácio. Platão e Pessoa, Heidegger e Sloterdijk, Hamlet e Beowulf, José de Alencar e Waly Salomão transitam nos ensaios que compõem o livro, dando conta de plasmar seu título. A metalinguagem, o ser e estar no mundo, o romance de formação, as linguagens com as quais a poesia fricciona são os temas principais, com destaque para a pesquisa de Marcelo sobre os grupos Feira de Poesia e Passa na Praça, projetos que animaram poesia e política no cotidiano de um Rio de Janeiro fora do eixo zonasulista e sob ditadura. "A cidade real se torna cidade imaginada através do discurso que, ao voltar para essa mesma cidade na forma de versos gritados nas praças, acaba perpassando todo o imaginário do público presente, no ciclo de dialética permanente, num jogo constante de espelhamentos entre cidade real e cidade do imaginário", escreve Marcelo ao analisar um poema de João Alves. Assim como os autores que seleciona estudar, Marcelo se preocupa com a comunicação poética e a recepção do público. Sua preocupação ética resulta em textos de linguagem franca e elucidativa, também para não iniciados nos debates acadêmicos. Isso é raro e bonito.

17 março 2024

A superfície dos dias


"Ao escrever, criamos vínculos vitalizantes por meio dos gestos perceptivos", a frase com que Luiza Leite (quase) encerra o livro A SUPERFÍCIE DOS DIAS encapsula o subtítulo do volume: "O poema como modo de superfície". Ao longo do ensaio, a autora arma uma trama de citações a fim de defender que "a exigência da inspiração desaparece porque a poesia está em tudo". Antes de pensar que "a poesia está nos fatos, no cotidiano", como pensavam os modernistas, o texto pensa a poesia das anotações, dos improvisos, das rasuras, dos rascunhos. Isso se inscreve no corpo do texto. Por exemplo, há uma voz narrativa no texto de Luiza Leite que, "de repente", lembra de situações, faz "uma pausa na escrita por causa do vento na varanda" e é nesse intervalo entre uma escrita e outra que surge "o poema". Logo, o pensamento crítico surgiria, assim, fenomenologicamente, entre uma leitura e outra, entre uma citação e outra. Laurie Anderson, Walter Benjamin, Emanuele Coccia, Hans Magnus Enzensberger, Tamara Kamenszain, Airton Krenak, entre outras referências bibliográficas, dançam no texto que se quer prazeroso, como pensara Roland Barthes. Olhando poemas de William Carlos Williams, Eileen Myles e Frank O’Hara a autora conclui que "o inacabamento e o improviso fazem parte dessa poesia cheia de pensamentos impulsivos que reserva um lugar especial para a noção de arte amadora" e assim define sua própria escrita em torno d'A SUPERFÍCIE DOS DIAS - superfície plena de profundidades em busca permanente do inaugural e que em muito lembra a voz inquieta da Água viva clariciana.

10 março 2024

Mangue


Em certo momento do filme "Moisés Alves: o fogo que antecede as cinzas" o autor do livro MANGUE diz que a escrita precisa estar na frequência da vida. É essa frequência que Alberto Pucheu traduz e monta em imagem e som, equilibrando intimidade e coletividade, poética e política, pois é esse ponto equidistante o que anima a obra/vida de Moisés Alves, autor de um de meus poemas de predileção, "Oferenda": "minha mãe disse / a partir de agora eu sigo / você fica", começa; "a partir de agora / faça sua ultrapassagem / ultrapássaro", termina e segue aceso em quem lê. MANGUE é composto por muitos versos que funcionam como mantras, orikis, aforismos de elogio ao ato de escrever/viver: "escreve-se / comigo tudo / que por algum motivo / bem justo não pode ter acontecido / estamos livres / apesar de não sairmos / dessa festa muito vivos", lê-se num veio de metalinguagem tradutora da verdade poética, transcriadora da vida. "É por revolta que faço / da alegria / arma pesadíssima / nunca fui a favor de morrer com vida", esses versos, distribuídos na estrofe com esses cortes, singularizando "revolta", "alegria", "arma" e "vida" dão o ritmo da pulsação dos poemas de MANGUE. "Dizer o isso da vida é o a que a poesia se dedica", observa Pucheu na apresentação do livro. Assim como Moisés Alves, que nasceu no Mangue, na rua Maciel do Baixo, a voz poética transita no Pelourinho, no Centro Histórico, biografemando sua história, que se desdobra na história de muitos do lugar, do mundo. Se "amor é quando químicas não impedem / nossa paixão" e "poema é aquilo / que atinge à queima- / roupa / então dói", o livro de Moisés Alves ama por tanto doer (tem corpo) e dói por tanto amar (tem alma). Sua poesia pulsa da fricção entre alma e corpo.

03 março 2024

O avesso da pele


"Esta história é ainda a história de um ferida aberta. É uma história para me curar da falta daquilo que você, repentinamente, deixou de ser". Dirigidas ao pai, as palavras do narrador de O AVESSO DA PELE dão o ritmo do profundo e complexo embate com seus sentimentos, experiências e relações interpessoais. Passando sua formação em revista, o narrador faz um acerto de contas consigo mesmo, registrando o que é viver num país racista. Nesse processo a literatura (as leituras do pai e do narrador) é fundamental. O AVESSO DA PELE mostra que é possível aprender com a alteridade, ou, melhor, fazer da outra pessoa uma fonte de entendimento de si. É assim que São Petersburgo se espelha (reflete e refrata) em Porto Alegre, por exemplo, e Dostoiévski é companhia. Esse procedimento de revelar leituras é presença importante na obra de Jeferson Tenório, autor atento em propor e desenvolver uma educação antirracista em quem lê. "Pessoas brancas nunca pensam que um menino negro pobre possa ter outros problemas além da fome e das drogas", escreve o narrador. Jeferson Tenório ilumina por dentro aquilo que torna alguém o que esse alguém é, num jogo entre influenciar e se deixar influenciar pelos fracassos e sucessos. Como o professor Henrique Nunes, pai do narrador e morto porque "era alvo de uma política de Estado", como depõe um aluno. "É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo", lê-se num dos muitos trechos dirigidos ao pai, um pai cuja luta foi "fazer a sua voz permanecer na cabeça deles o máximo de tempo possível". Dos alunos, dos leitores, o livro O AVESSO DA PELE de Jeferson Tenório permanece.

25 fevereiro 2024

O que é poesia marginal


No livro O QUE É POESIA MARGINAL Glauco Mattoso esmiúça a controversa adjetivação da poesia que circulava nos anos 1970 à margem do mercado editorial. "A palavra marginal, sozinha, não explica muito. Veio emprestada das ciências sociais, onde era apenas um termo técnico para especificar o indivíduo que vive duas culturas em conflito, ou que, tendo-se libertado de uma cultura, não se integrou de todo em outra, ficando à margem das duas", escreve o autor. Hoje, com o adjetivo já devidamente mercadologizado por poetas e editoras, termos como "independente", "alternativo", underground, "artesanal" parecem mais apropriados para refletir sobre a poesia enquanto gesto de subversão ao sistema, às instituições, diante do progressivo aburguesamento do poeta e da poesia numa sociedade cada vez mais espetacularizada. O interessante é observar que tal processo já estava previsto por Glauco Mattoso, poeta do rigor e do desbunde. "No final, você concluirá se existe um característica que possa ser conceituada como marginalidade, se tal conceito representaria uma 'subversão' daquilo que comumente se entende por poesia, ou se essa história toda não passaria de mais um 'equivoco'", lemos no final na introdução do livro. Glauco é um pesquisador das formas, um crítico lúcido e faz de O QUE É POESIA MARGINAL um espaço para responder e provocar com brevidade e profundidade perguntas como "poesia tem que ser estrela?", "poeta tem que ser estrela?", numa evidente cutucada em Bilac e seus herdeiros. "Abaixo o verso! É subversão?" e "artesanais ou artes anais?" também pergunta Glauco, nesse livro da saudosa coleção Primeiros passos, em que a editora Brasiliense tentava explicar temas complexos de um jeito leve e despretensioso.

18 fevereiro 2024

Ao amigo que não me salvou a vida


Paralela às discussões teóricas sobre autoficção, o livro AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA, de Hervé Guibert é o registro tocante e interessado dos anos 1980 em Paris, período de descobrimento da aids, doença que aturdiu e matou muita gente. Jornalista e fotógrafo, Guibert maneja as imagens líricas e subversivas da escrita, seduzindo quem ler. "Sim, posso escrever, e esta sem dúvida é minha loucura, dou mais importância a meu livro do que a minha vida; eu não desistiria de meu livro para preservar minha vida, isso será o mais difícil de fazer as pessoas acreditarem e entenderem", lemos em um dos muitos momentos metalinguísticos do texto. "A obra é o exorcismo da impotência", lemos também. Como registrar e impotência? Talvez seja essa a pergunta que move o livro. Impotência diante da doença, diante do "rosto descarnado" que o espelho reflete, diante do abandono de um amigo que poderia ter ajudado e não ajudou. A narração ao estilo de um diário romanceado termina pouco tempo antes da morte do autor. Sob pseudônimos (ou heterônimos?), Michel Foucault e Roland Barthes, amigos de Guibert, também são personagens de uma narrativa em que a homossexualidade pode, enfim, transparecer: "havia uma certeza de que para além da amizade estávamos ligados por um destino tanalógico comum". Se Cazuza cantou "eu vi a cara da morte e ela estava viva", AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA registra essa convivência. "Este livro que relata minha fadiga me faz esquecê-la e, ao mesmo tempo, cada frase arrancada de meu cérebro, ameaçado pela intrusão do vírus assim que a pequena barreira linfática ceder, me dá ainda mais vontade de cerrar as pálpebras", lê-se.

11 fevereiro 2024

Novos e baianos


No livro NOVOS E BAIANOS, Luiz Galvão escreve no limite entre autobiografia, ensaio, memórias, crônica, romance de formação pessoal e romance geracional. Os anos 1970 são apresentados enquanto época híbrida, experimental, desbundada, no que se refere a uma juventude que queria mudar tanto os costumes, a partir da revisão crítica da sonoridade brasileira. "Estou começando a gostar dessa forma integrada de escrever unindo em um texto o passado vivido ao presente acontecendo, e até ao futuro por vir", escreve Galvão, inscrevendo o tom autorreflexivo da própria narrativa da sua/nossa história. Galvão aborda o passo adiante dado pelo coletivo/comunidade Novos Baianos nas propostas éticas e estéticas herdadas do tropicalismo. Há registros de momentos curiosos e engraçados, difíceis e inspiradores para se entender o período, bem como a linha evolutiva da canção popular. Por exemplo, os bastidores do filme "Farol da Barra", que segue "aquela forma de tríplices historinhas independentes", dirigido por Luiz Galvão, a fim de levantar recursos para o lançamento do disco "Farol da Barra" (1978): "O enredo nos leva ao paraíso onde Adão dorme, enquanto Eva irrequieta, dá com os olhos no personagem da Serpente, vivido por Gato Félix. Com o rabo enrolado num coqueiro, a serpente flerta com Eva, atira-lhe três bananas-maçã, e ela come duas e acorda o companheiro Adão, dando a outra para ele, que após come-la se assusta um pouco, mas logo entra numa onda de sensualidade e beija Eva. Mesmo sendo um beijo de cinema, eles fizeram dessa cena a mais bela, pelo misto de lírico e sensual, quando eles rolaram pela grama em acentuado declive, que facilitou a plástica e a fotografia. A Serpente, depois de cumprir seu papel, se transforma no Anjo Expulsador, que traz uma espada de fogo e persegue a dupla que teoricamente dava vazão ao sexo no planeta". Por essas e outras anotações de quem viveu e fez, NOVOS E BAIANOS é livro que merece leitura.

04 fevereiro 2024

Mangue mundo


No livro MANGUE MUNDO: POÉTICAS DO MANGUE EM JOSUÉ DE CASTRO, JOÃO CABRAL DE MELO NETO E CHICO SCIENCE Francisco K ensaia uma educação pela lama presente na convergência dos homens-caranguejo do escritor, médico, nutrólogo, cientista social e geógrafo; com os homens-lama do poeta; e os mangueboys e manguegirls do cancionista. Os textos de K equilibram a densidade do rigoroso trabalho de leitura e audição com uma linguagem direta. Para compor o que chama de "poéticas do mangue" K analisa a dialética de acaso e controle, caos e ordem presente (inscrita) na linguagem das obras de Josué, Cabral e Science. A fome - este tabu - é um topos guia das especulações do autor. Naturalismo, idealismo, metáfora e aspectos sócio-econômicos afirmam as margens. K investiga os núcleos moles do centro capitalista perverso. Núcleos sugeridos, de modo mais ou menos engajados, no romance, na poesia, na canção (na performance). A leitura que Francisco K faz do percurso da metáfora na poesia cabralina já mereceria a atenção para MANGUE MUNDO. Mas há mais. Se Josué de Castro chamou atenção para a fome "que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo"; e em seu tríptico do mangue (do Capibaribe) João Cabral tratou do cão vivo debaixo da pele; Science, sem estilizar ou folclorizar o material tradicional sonoro, nem a fome, engendrou um pacto corporal com o mangue: limite e expansão, caos e cão nas "fronteiras nos jardins da razão". O livro de Francisco K é este elogio urgente e revigorante do "corpo sensível-pensante", do "pensar que se faz juntamente com o sacolejo jubiloso do samba".

28 janeiro 2024

Ninguém quis ver


Do primeiro - "moro a setenta quilômetros do mar" - ao derradeiro - "o rosto queimado de sol" - o livro NINGUÉM QUIS VER reúne versos, poemas, sombras, luminescências que justificam o título do livro. Bruna Mitrano escreve poemas em que saltam imagens tão inquietantes quanto óbvias, e, justamente por isso, ocultadas, postas à margem, convenientemente esquecidas. Bruna dá a dica: "só esquece do mar / quem mora perto do mar". Dialética, de contrastes, quiasmática, de fricção são algumas chaves de interpretação da poética de Bruna Mitrano. Poética em que o sol só aparece se desenhado no chão. E o que sempre chama atenção nessa poética são os cortes dos versos, cortes bruscos, violentos, que interditam qualquer lirismo comedido, bem comportado, facilitador. Para se quebrar os versos com a precisão e a eficácia de Bruna Mitrano é preciso projetar vozes líricas tão fraturas quanto: "disseram bruna você parece / que pode partir ao meio", lê-se o biografema no poema que dá título ao livro e abre a segunda das cinco partes que compõem o volume. No uso interno do nome da autora aparecem muitas outras filigranas do eu que "tem estômago pra lembrar / de ser menina". Enjambements "sem metáfora / ou outra figura de linguagem / que emprestasse beleza", os versos aqui são cortados para que "uma voz fraca / vinda do mais fundo / onde uma mulher pode ser" se projete olhando frontalmente quem lê: "eu tô brincando de verdade", lemos. Escrevo mulher porque há uma sabência que passa de avó para mãe para filha. Uma ciência aprendida, apreendida, curtida, sobrevivida: "ela disse que quando o estômago / ficava vazio por muito tempo / apertar ajudava a esquecer", anota a filha escritora. A fome cabe na "vala" do poema, Gullar? Quanto desdobrável a voz lírica de Bruna Mitrano é, Adélia? - pergunta-se quem lê NINGUÉM QUIS VER.

21 janeiro 2024

Das vanguardas à tropicália


Dentre os muitos livros que tratam da relação entre a Tropicália e as vanguardas europeias do começo do século XX, dentre eles, o incontornável "Convergências: poesia concreta e tropicalismo", de Lúcia Santaella, destaca-se DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Tamanho o rigor crítico. Nele, Guilherme de Azevedo Granato passa em revista as várias filigranas da "modernidade artística" até a "música popular". "A retomada pelo tropicalismo de processos construtivos que remetem às vanguardas históricas insere-se em um momento de recuperação do ideário vanguardista, concomitante com o cenário europeu e norte-americano", escreve Granato, para observar que "formulações como a performance e o happening surgiram como formas alternativas de fruição artística, almejando uma influência direta na vida prática por meio do estímulo sensorial e da desorganização da lógica cotidiana". No Brasil, com a censura e o controle pela ditadura militar, isso ganha conotações importantes, com usos singulares das experimentações artísticas. Urgia superar a separação entre arte e vida. E "o principal intento dos levantes vanguardistas foi o de atacar a arte enquanto instituição dentro da sociedade burguesa", lê-se em DAS VANGUARDAS À TROPICÁLIA. Insubmisso, o instante-já da performance e do happening não se deixa capturar, arquivar, reproduzir, dificultando a ação autoritária. Isso nos ajuda a entender porque muitos cancionistas deram prioridade aos discos de shows ao vivo. Microfones desligados, ruídos propositais, palavras alterações durante o canto marcam o período. Devorar as estruturas era um gesto ético e estético. O livro de Granato orienta como isso se realizou.

14 janeiro 2024

Assessora de encrenca


Em ASSESSORA DE ENCRENCA Gilda Mattoso conta como entrou e saiu de várias situações ao lado de nomes importantes da música brasileira. "Gilda Mattoso é uma superdotada para viver o melhor da vida e fazer com que assim também vivam os demais", escreve Pedro Almodóvar na contracapa. "Tudo com ela sempre teve o tom de camaradagem, onde o humor e as observações sutis predominavam", escreve Caetano Veloso na Apresentação. Em tom bastante coloquial, como uma boa conversa num dia de verão, o livro se divide em cinco grandes capítulos: Vinicius, Tom, Caetano, Outros famosos, Álbum de família. Cada capítulo guarda uma gama de enredos, causos da assessora que aprendeu a assessorar assessorando. O destacado bom humor de Gilda tornam leves, importantes e tocantes as situações mais complexas, as encrencas. E há as hilárias, como comer por enquanto os acarajés dedicados a Iansã na casa de Maria Bethânia; Pedro Almodóvar dizer "yo también", depois de Paula Lavigne responder "sou a mulher de Caetano Veloso" a um segurança em Londres. São muitos os famosos com quem Gilda trabalhou, ou, como deixa sugerido ao longo do livro, compartilhou a vida. E essa é a mensagem, ASSESSORA DE ENCRENCA conta uma vida de trabalho em que o afeto reina - a parceria profissional e a amizade andam juntas. Recheado de fotos, o livro rende boa leitura e boas risadas da assessora de imprensa, de encrenca de bom humor.

07 janeiro 2024

Anjo do bem gênio do mal


ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL é a autobiografia de quem, não apenas esteve nos bastidores, mas foi elemento fundamental para que boa parte de nosso cancioneiro tropicalista e rebelde dos anos 1970 acontecesse. Natural de Itabuna, sul da Bahia, Paulinho Lima esteve junto com Gal Costa, Glauber Rocha e demais baianos que fizeram o sudeste rever o conceito "nordestino". Por exemplo, ele trabalhou no antológico show "Barra 69", que Gilberto Gil e Caetano Veloso fizeram na Bahia antes de saírem para o exílio em Londres, e no icônico "Gal (Fatal) a todo vapor", que segurou o vigor contestatório tropicalista durante a ausência dos compositores, em decorrência da ditadura militar. Aliás, pelo que conta, Paulinho foi fundamental para formatar a imagem de Gal Costa. ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL conta as dificuldades técnicas, os improvisos, os dribles na censura, o trabalho de transpor os shows para os discos. Interessante ler a atuação de pessoas como Luciano Figueiredo, Oscar Ramos, Duda Machado nesse momento decisivo. Entre muitos autoelogios, destacam-se os comentários feitos sobre o projeto pessoal de gravar discos de literatura lidos por artistas famosos. Gregório de Matos, Drummond, Clarice, Augusto dos Anjos, entre outros, foram lidos por Paulo Autran, Aracy Balabanian, Othon Bastos e outros artistas de teatro, pessoas do convívio de Paulinho desde a juventude em Salvador e Rio de Janeiro. Coautor da radiofônica "Perigo" (cujo verso dá título ao livro ANJO DO BEM GÊNIO DO MAL),  sucesso na voz de Zizi Possi, entre amizades e desafetos, Paulinho transitou e agiu em boa parte do cânone da canção popular brasileira da segunda metade do século XX.  E suas memórias guardam boas percepções desse contexto histórico.