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30 outubro 2019

Ismália

O vocábulo rap já aparece em dicionários da língua inglesa do século XIV, com sentido de "bater" ("bater o texto", expressão usada ainda hoje no teatro) ou "criticar". Rhythm and poetry, repente e embolada, o rap trabalha com a palavra (de protesto) sempre à frente da música. Menos romântico (passional) e mais empenhado na mensagem (intervenção), o rap recupera a presença da fala na canção. Todo o aspecto rítmico do rap é feito para atrair a atenção do ouvinte ao que está sendo dito; em geral, denúncia da violência e da injustiça social. Para tanto, é necessário experimentar variadas nuances entoativas em acordo com o grau de intensidade do que é dito em versos rimados e ritmados. Desse modo, o rap insere-se na tradição da poesia oral, que está na origem mesma da poesia.
Para Luiz Tatit, "antes de tudo, o que assegura a adequação entre melodias e letras e a eficácia de suas inflexões é a base entoativa. De maneira geral, as melodias de canção mimetizam as entoações da fala justamente para manter o efeito de que cantar é também dizer algo, só que de um modo especial" (O século da canção, 2004, p. 73). Rap é a palavra cantada mais próxima da falada falada, no entanto, diferente da fala coloquial. Há tensividade musical no rap, no mais das vezes, marcada pela aceleração do arranjo vocal e eletrônico. É essa aceleração o que imprime a agressividade do canto do rapper.
"Isso! / Não, chocalho tem que ser tocado com vontade! / Tendeu? / Só que sem risadinha, certo? / Sem risadinha porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu? / O povo é mau! Mau! Mau! / Pra trabalhar nesse emprego de rapper, você tem que ser mau! / Tendeu? Sem risadinha, ok? / Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou o Rael? / Sei lá, meu. / Aqui os cara é mau!", brinca Emicida com a persona do rapper em "Cananeia, Iguape e Ilha Comprida". 
Propondo uma remissão à fala, a regularidade rítmica do rap tensiona o entendimento comum de canção. Aliás, novamente de acordo com Luiz Tatit: "um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale a dizer que ela perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações "românticas" da melodia e conserva a entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção. Ou seja, canção não é gênero, mas sim uma classe de linguagem que coexiste com a música, a literatura, as artes plásticas, a história em quadrinhos, a dança etc. É tudo aquilo que se canta com inflexão melódica (ou entoativa) e letra. Não importa a configuração que a moda lhe atribua ao longo do tempo" (Todos entoam, 2007, p. 230).
"Eles não aguentam te ver livre / Imagina te ver rei / O abutre quer te ver de algema", diz os versos de "Ismália" (AmarElo, 2019). Canção em que Emicida se une às vozes de Larissa Luz e Fernanda Montenegro para narrar a interdição do sonho, da liberdade. Narrativa em tons baixos e graves, em que Emicida mimetiza a gravidade do narrado: "Ela quis ser chamada de morena / Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena".
Poderíamos percorrer todo o caminho que o termo "morena" suporta na tirânica indústria do entretenimento. Um fardo pesado demais que Ismália incorpora. Ela "Quis tocar o céu, mas terminou no chão", diagnostica a voz narrativa. A mesma voz que já dissera: "Olhei no espelho / Ícaro me encarou / Cuidado, não voa tão perto do sol / Eles não aguentam te ver livre / Imagina te ver rei". Ícaro e Ismália, mito e verdade.
Para Enzo Minarelli "a voz em performance é a essência de muitas vozes: é a voz autêntica, arquétipo, xamã oriundo das profundezas do corpo, de um corpo além, voz metafísica, ontológica, uma voz sempre dialética, uma voz crítica em sua entidade social, eletrônica em sua intermedialidade, natural e artificial, sopro bucal regenerador e deformador, voz aleijada, fluxo fonético como fala divina, aceita sem contestação, voz régia, voz superior, em sua singularidade, voz vital, força utópica" (Polipoesia, 2010, p. 13). É esta a voz animada por Emicida, Larissa e Fernanda.
"Com a fé de quem olha do banco a cena / Do gol que nóiz mais precisava, na trave / A felicidade do branco, é plena / A pé trilha em brasa e barranco, que pena / Se até pra sonhar tem entrave / A felicidade do branco, é plena / A felicidade do preto, é quase", canta Larissa Luz. Por sua vez, com pausa dramáticas e respiração pesada, Fernanda Montenegro declama "Ismália", do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimarães (1870-1921), logo após Emicida dizer que "Quem disparou usava farda (meu crime é minha cor) / Quem te acusou nem lá num tava (eu sou um não lugar) / É a desunião dos pretos / Junto com a visão sagaz de quem / Tem tudo menos cor onde a cor importa demais".
Alphonsus de Guimaraens, "ao lado de Cruz e Souza (1861-1898), criou imagens melódicas e sensoriais, carregando as palavras de emoção, opondo-se ao positivismo parnasiano", escreve Isabel Lopes Carvalho em "Os reflexos de Ismália" (2014). E completa: "seus versos ritmados e de métrica rigorosa carregam um tom gótico; sua melancolia, várias vezes associada à loucura, em muitos casos fez da dualidade um recurso aproximativo entre forma e conteúdo".
O fato é que Emicida propõe uma interpretação radicalmente nova e pertinente ao poema de Alphonsus de Guimaraens. Fatos reais identificados pelo ouvinte atento aos noticiários se misturam à história de Ismália. Essa remissão à realidade concreta é um procedimento em que Emicida repara as lacunas deixadas pela historiografia literária ao criar os possíveis motivos que levaram a Ismália de Alphonsus à loucura, ao suicídio. A cor da pele destina: "Minha cor não é um uniforme / Hashtag "Pretos no topo", bravo / 80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou usava farda (mais uma vez) / Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco) / Por que um corpo preto morto / É tipo os hits das parada / Todo mundo vê mas essa porra não diz nada".
O poema de Alphonsus de Guimaraens teve quatro versões até fixar-se como conhecemos hoje. Inclusive, na primeira versão (1910), o poema chamava-se "Ofélia" - referência a personagem suicída de Shakespeare? De "lírio" a "anjo", de Ofélia a Ismália, mantem-se o "quando". O que Emicida propõe é investigar o entorno deste "quando" trágico e desvairado. "Queria a lua do céu, / Queria a lua do mar", diz o Alphonsus na voz de Fernanda. Duplicidade noturna que Carlos Drummond de Andrade chamou de "a lua dupla de Ismália enlouquecida". "Quis tocar o céu, mas terminou no chão", dizem Emicida e Larissa.
A canção e a personagem "Ismália" imbricam-se e figurativizam-se no modo de dizer, na gestualidade vocal e suas conexões com a entoação da fala. "Ter pele escura é ser Ismália" eis o núcleo duro do texto cantado ("batido") por Emicida e Larissa Luz. O narrador cancional reproduz o discurso da branquitude para compreender o estado de coisas vivido por Ismália: "Primeiro sequestra eles / Rouba eles / Mente sobre eles / Nega o Deus deles / Ofende / Separa eles / Se algum sonho ousar correr, cê pára ele / E manda eles debater com a bala que vara eles".
Há ecos aqui dos versos "A carne mais barata do mercado / É a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E pára debaixo do plástico / E vai de graça pro sub-emprego / E pros hospitais psiquíatricos" ("A carne", de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappellette, defendida por Elza Soares no disco Do Cóccix até o pescoço, 2002). E há que se lembrar da clássica canção "Senhor da floresta" (1961), de Augusto Calheiros e René Bittencourt, interpretada de Maria Bethânia (Brasileirinho, 2003), cujos versos "E a filha formosa do morubichaba / Quando anoiteceu, correu, / Subindo a montanha, no fundo do abismo desapareceu". É o eterno retorno do destino trágico, porém romantizado, da mulher numa sociedade do "macho adulto branco sempre no comando", como canta Caetano Veloso em "O estrangeiro" (1989).
Lembremos ainda da Joana da peça musical Gota D'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, cuja violência do suicídio é redimensionada quando a personagem é interpretada por Juçara Marçal na montagem Gota D'água {preta}. Estas referências ajudam a tecer a mensagem "No fim das contas é tudo / Ismália". Não é possível romantizar, "80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo". A fala direta do texto é acompanhada por uma instabilidade rítmica em que o que importa é o pulso da mensagem, a comunicação desta.
Neste tecido de referências mítico-literárias, há que se falar ainda do poema "No alto" do livro Ocidentais (1880) de Machado de Assis: "O poeta chegara ao alto da montanha, / E quando ia a descer a vertente do oeste, / Viu uma cousa estranha, / Uma figura má. / Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, / Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, / Num tom medroso e agreste / Pergunta o que será. / Como se perde no ar um som festivo e doce, / Ou bem como se fosse / Um pensamento vão, / Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. / Para descer a encosta / O outro lhe deu a mão". Ismália é a poeta que, sem a resposta da musa Ariel, deixa-se morrer, não entregue a Caliban, mas nos braços das Sereias?
"Se até pra sonhar tem entrave", o que sobra a Ismália? "Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia tá aqui / Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz? / Alvos passeando por aí", canta Emicida, Majur e Pabllo Vittar na canção que dá título ao disco "AmarElo". "Aí, maloqueiro, aí, maloqueira / Levanta essa cabeça / Enxuga essas lágrimas, certo? / Respira fundo e volta pro ringue / Cê vai sair dessa prisão / Cê vai atrás desse diploma / Com a fúria da beleza do Sol, entendeu? / Faz isso por nóiz, faz essa por nóiz / Te vejo no pódio", conclui o sujeito da canção.
No texto "Outros olhares" (jornal O Dia, 09/09/2015), o historiador Luiz Antonio Simas aponta que "Não adianta apenas que negros e índios estejam na universidade, se o ambiente da produção do conhecimento continuar reproduzindo uma visão fundamentada em conceitos pré-concebidos que negam os saberes ancestrais e as invenções afro-ameríndias. Ou a ideia é colocar negros e índios nos colégios e universidades para ensinar que quem produziu cultura foi o homem branco, cristão, ocidental?". A pergunta se desdobra nos versos "Apunhalado pelas costas / Esquartejado pelo imposto em postas / E como analgésico nóiz posta que / Um dia vai tá nos conforme / Que um diploma é uma alforria". Reparação e justiça social.
"A voz do poema envolve o conteúdo como uma fina camada de orvalho transparente, através da qual  tudo se deixa entrever, como se fora uma magia psicovisiva, uma água epifânica. Isso quer dizer que o poema sonoro está em ação, em direção à sua orgásmica conclusão, em uníssono com o público, em sua utópica crença de transubstanciação" (MINARELLI, 2010, p. 26). Emicida, Larissa e Fernanda se unem para denunciar que "os modos de adoecer e morrer da população negra no Brasil refletem contextos de vulnerabilidade" (
Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, 2019). Dados do Ministério da Saúde afirmam que o índice de suicídio entre jovens negros é 45% maior do que o de brancos.
"Tudo tudo tudo que noiz tem é noiz", diz Emicida em "Principia". A rede de proteção sonora é criada e denuncia: "A felicidade do branco, é plena / A pé trilha em brasa e barranco, que pena / Se até pra sonhar tem entrave / A felicidade do branco, é plena / A felicidade do preto, é quase"; e afirma: "Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro".

***

 (Nave / Renan Samam / Emicida)

Com a fé de quem olha do banco a cena
Do gol que nóiz mais precisava, na trave
A felicidade do branco, é plena
A pé trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco, é plena
A felicidade do preto, é quase

Olhei no espelho
Ícaro me encarou
Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles não aguentam te ver livre
Imagina te ver rei
O abutre quer te ver de algema
Pra dizer: - ó não falei
No fim das conta é tudo

Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão

Ela quis ser chamada de morena
Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena
A raiva insufla, pensa nesse esquema
A idéia imunda, tudo inunda e a dor profunda
É que todo mundo é meio antena
Paisinho de bosta, a mídia gosta
Deixa falha e quer medalha de quem corre com fratura exposta
Apunhalado pelas costas
Esquartejado pelo imposto em postas
E como analgésico nóiz posta que
Um dia vai tá nos conforme
Que um diploma é uma alforria
Minha cor não é um uniforme
Hashtag "Pretos no topo", bravo
80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo
Quem disparou usava farda (mais uma vez)
Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco)
Por que um corpo preto morto
É tipo os hits das parada
Todo mundo vê mas essa porra não diz nada

Ter pele escura é ser
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Terminou no chão

Primeiro sequestra eles
Rouba eles
Mente sobre eles
Nega o Deus deles
Ofende
Separa eles
Se algum sonho ousar correr, cê pára ele
E manda eles debater com a bala que vara eles
Mano, infelizmente onde se sente o sol mais quente
O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescentes
Quis ser estrela e virou medalha num boçal
Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral
Um primeiro salário
Duas fardas policiais
Três no banco traseiro da cor dos quatro Racionais
Cinco vida interrompida
Moleques de ouro e bronze
Tiros, e tiros, e tiros
O menino levou cento e onze

Quem disparou usava farda (meu crime é minha cor)
Quem te acusou nem lá num tava (eu sou um não lugar)
É a desunião dos pretos
Junto com a visão sagaz de quem
Tem tudo menos cor onde a cor importa demais

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar

Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar.

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu,
Estava longe do mar.

E como um anjo pendeu
As asas para voar.
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar.

As asas que Deus lhe deu,
Ruflaram de par em par,
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar.

15 outubro 2019

Poema obsceno

A aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o canto estava indissociável da poesia: dos aedos gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana. Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação.
Mas se, por princípio, todo poema escrito pode ser cantado, a musicalização precisa atender as estruturas específicas ao acabamento da canção. Os procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a "entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para, entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção, verter a palavra escrita em palavra cantada.
Tendo uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de nossa cultura brasileira. É o caso do poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra de "Trenzinho do caipira" (1976), parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina outras peças de poemas musicados e de letras de canção. O livro Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015) revela um poeta talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico. O organizador professor Antonio Carlos Secchin anota que "quando me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar a treze".
Cantados por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo. O critério de registrar unicamente "letras" e não "poemas musicados", deixa de fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar) e "Poema Obsceno" (Moacyr Luz e Ferreira Gullar), entre outras.
"Poema Obsceno" foi publicado no livro Na vertigem do dia (1980), portanto, logo após a publicação do icônico Poema sujo (1975), nas palavras de Gullar "sujo como o povo brasileiro, como a vida dos brasileiros". Note-se que Poema sujo foi escrito em 1975, durante o exílio imposto ao poeta pela ditadura militar. É sempre bom lembrar que o poema entrou no Brasil gravado numa fita cassete, na bagagem de Vinicius de Moraes e foi ouvido, antes de ser lido. Dada a repercussão, "devo ao Poema sujo o fim antecipado do meu exílio", anotou Gullar.
Além de "Poema Obsceno", o livro Na vertigem do dia guarda outros metapoemas como, além do conhecido "Traduzir-se" ("Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem"), "Arte poética" ("Não quero morrer não quero / apodrecer no poema"), "Subversiva" ("A poesia / quando chega / não respeita nada"), "O poço dos Medeiros" ("Não quero a poesia, o capricho / do poema: quero / reaver a manhã que virou lixou") e "A voz do poeta" ("É voz de gente - poema: / fogo logro solidão".
Os versos de abertura de "Poema Obsceno" - "Façam a festa / cantem dancem / que eu faço o poema duro / o poema-murro / sujo / como a miséria brasileira" - soam, não apenas como a autorreflexão de um sujeito que toma para si a missão - com tons de sacrifício - de cantar o horror, também acusatórios. Adiante o sujeito diz e nomeia: "Não se detenham: / façam a festa / Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira / todos / façam / a festa". Acusando a suposta alienação dos outros (em festa) o sujeito afirma sua importância: fazer o "poema duro", logo obsceno, visto "que não toca no rádio", nem "entrará nas antologias oficiais".
A referência ao Poema sujo é literal, as referências à miserabilidade da vida também: ele compõe um poema "que o povo não cantará / (mas que nasce dele [do povo])". Por fim, "o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / - e espreitam". Os signos remetem o leitor ao Ferreira Gullar preocupado com os destinos do país e ainda ligado às propostas de liderança do povo advindas dos Centros Populares de Cultura - criados em 1962 e extintos pelo golpe militar em 1964 -, com o emblema "o povo canta". "Toda arte é política e, por isso mesmo, determina uma opção diante dos problemas concretos, a afirmação ou negação de determinados valores" (p. 131), escreveu Gullar em Vanguarda e subdesenvolvimento, indicando um projeto artístico que definiu sua obra.
Em entrevista a Hans Ulrich Obrist, Gullar diz "eu me engajei no Centro Popular de Cultura porque eu estava, naquele momento, muito mais interessado em mudar a sociedade brasileira do que em fazer arte. Mas depois veio o golpe militar, e mostrou que era melhor continuar fazendo arte" (p. 178. ver Entrevistas vol.6).
O tom acusatório de alienação do povo aparece noutro poema do mesmo livro. "Poderia dizer que meu povo / é uma festa só na voz / de Clara Nunes / no rodar / das cabrochas no carnaval / da Avenida. / Mas não. O poeta mente", escreve o poeta em "Digo sim". E completa: "A vida nós a amassamos em sangue / e samba / enquanto gira inteira a noite / sobre a pátria desigual". E, depois de elencar as contradições da vida, conclui: "não digo que a vida é bela / tampouco me nego a ela: - digo sim". Desdobrando o tom de acusação em elogio a quem consegue cantar e sambar, apesar do sangue?
Ainda no livro Vanguarda e subdesenvolvimento Ferreira Gullar registra seu empenho com a realidade intranscendente brasileira e sua preocupação com o distanciamento entre a arte de vanguarda e o povo. "A verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o novo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional" (p. 8), escreve. "Armado do método marxista, o artista terá condições de superar a limitação básica de algumas das mais significativas experiências da vanguarda artística, que as conduziu ou ao formalismo ou ao subjetivismo. Para isso, vamos ter de nos deter no exame da dialética do particular e do universal na criação da obra de arte" (p, 53), sugere.
É este poeta crítico da contradição - "Para uma vida de merda / nasci em 1930 / na Rua dos Prazeres" (do poema "Primeiros anos") - que ouvimos em "Digo sim" e "Poema Obsceno". Para Gullar, a arte de massa, mercadoria da sociedade capitalista, "trata-se de uma visão desmistificada que não abdica da complexidade mas que a vê, não como resultante de uma irracionalidade fundamental, segundo a qual o ser é insondável, e sim como decorrência do caráter dialético, dinâmico, do real" (p. 130).
O título "Poema Obsceno" problematiza a noção de obscenidade. Ferir o pudor, ser obsceno, é mostrar aquilo que a ditadura militar quer mascarar: a miséria brasileira. Miséria que, de algum modo, também é mascarada na festa carnavalesca. O poema revisa, portanto, a ideia de inversão que Bakhtin observou no carnaval medieval. O sujeito do poema quer que na modernidade esta inversão, ou seja, a tomada de posição, do protagonismo do povo ultrapasse os quatro dias de festa concedida e se incorpore à vida ordinária. Faz isso assumindo a liderança - "eu faço o poema", "eu soco o pilão". Para ele, o povo precisa de guia. E ele mesmo ocupa esta posição.
Mas o sujeito erra ao diagnosticar "que não toca no rádio / que o povo não cantará". Afinal, quando Moacyr Luz e Água de Moringa (Rui Alvim, Marcílio Lopes, Jayme Vignoli, Luiz Flávio Alcofra, Josimar Carneiro e André Boxexa) gravam o discurso do poema no disco Sedução carioca do poeta brasileiro (2005) o discurso retorna à voz, sai do mutismo das páginas do livro e ganha o corpo coletivo. O sujeito não cumpre sua função assim?
O disco merece destaque na discografia de Moacyr Luz. Nele temos musicados 12 poemas de exaltação à cidade do Rio de Janeiro: "Noite Carioca", Murilo Mendes; "Poema Obsceno", Ferreira Gullar; "Elegia Inútil", Manuel Bandeira; "Coisa Mais Linda Mais Cheia de Garça", Elisa Lucinda; "3x4", Armando Freitas Filho; "Copacabana Noctívaga", Ariel Marques; "Méier", Luiz Paiva de Castro; "Carnavais", Geraldo Carneiro; "Cantiga das Ilhas", Aldir Blanc; "VII – Rio de Janeiro", Carlos Drummond de Andrade; "Praia do Pinto", Vinicius de Moraes; e "As Cantadas", Mário de Andrade.
Embora no mesmo livro Na vertigem do dia o poema "Improviso ordinário sobre a cidade maravilhosa" fale que "a tarde é quente / na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro / com suas cadeias apinhadas de presos / respirando o fedor de seus próprios dejetos", a canção de Moacyr Luz investe na ideia de que "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba", conforme canta Caetano Veloso. Ou seja, a alegria aparente - "façam a festa" - não nega a tristeza resiliente - "Os homens se amparam em retratos. / Ou no coração de outros homens". E não é isso que o samba faz? Não é este o gesto utópico de cantar, de sambar, ou seja, apontar "o lado escuro do país" e os que "espreitam" postos à margem?
O cancionista cria uma melodia que ora tematiza, estimula a dança com um maracatu no começo da canção; ora passionaliza, reverenciando quem mantem a fé na festa ("Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira"); ora investe na oratória (mais palavra falada, política, dura e menos palavra cantada, melodiosa), respeitando o discurso engajado do trecho "Não se prestará a análises estruturalistas / Não entrará nas antologias oficiais / Obsceno / como o salário de um trabalhador aposentado / o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / – e espreitam".
Os três modos de dizer o poema impõem à canção de Moacyr Luz as contradições elencadas pelo sujeito do poema. Esta consciência melódica da entonação embrionária da palavra escrita, além de ser uma aula sobre leitura de poesia, estimula a reflexão sobre arte e participação. Outro exemplo, a oratória, a leitura em voz alta é usada para dizer de modo incisivo e reivindicatório o verso entre parênteses "(mas que nasce dele)", referindo-se ao povo.
No poema "O espelho do guarda-roupa", Gullar escreveu que "Um homem com um espelho / enterrado no corpo / na verdade não dorme: reflete / um voo". Não é este homem que o sujeito cancional criado por Moacyr Luz incorpora ao restituir às massas o "surdo" (instrumento e estado de ser) do poema? "A pureza desse amor [à festa] / Espalha espelhos pelo carnaval / E cada cara e corpo é desigual / Sabe o que é bom e o que é mau", canta Caetano Veloso em "Zera a reza", canção-vértice da dobra ético-estética entre Gullar, para quem "a arte existe porque a vida não basta", e Luz, criador do projeto Samba do Trabalhador, que acontece toda segunda-feira no Andaraí, na cidade do Rio de Janeiro.

***

(Moacyr Luz / Ferreira Gullar)

Façam a festa
cantem dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
e espreitam.