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26 dezembro 2017

Sons de 2017


"Esú", "Pajubá" e "Galanga livre" foram os discos mais intensos de 2017. Versos, sons e ritmos que abrem possibilidades. Paralelos a estes, eis (em modo aleatório) a seleção dos discos de 2017 com os quais mais convivi:

Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Gui Amabis - Sambas do absurdo;
Baco Exú do Blues - Esú;
Linn da Quebrada - Pajubá
Hamilton de Holanda Quinteto - Casa de Bituca
Aláfia - SP não é sopa
Kiko Dinucci - Cortes curtos
Maria Alcina - Espírito de tudo
Otto - Ottomatopeia
Curumin - Boca
Mônica Salmaso - Caipira
Chico Buarque - Caravanas
Rodrigo Ogi - Pé no chão
Gal Costa - Estratosférica ao vivo
Filipe Catto - Catto
Rincon Sapiência - Galanga Livre
Duda Brack, Charles Gavin, Felipe Ventura, Paulo Rafael e Pedro Coelho - Primavera nos dentes

21 dezembro 2017

A voz do morto

Sons de 2017. MENÇÃO HONROSA. Se for para regravar e não reassinar, recriar, reinventar a canção, melhor nem cantar. Maria Alcina e o produtor Thiago Marques Luiz sabem disso e assinaram - tornaram inéditas - canções em que a antropofagia de Caetano Veloso se revela mais evidente. Exemplo disso é "A voz do morto", paródia tropicalista caetânica de "A voz do morro", de Zé Keti. Composta para Aracy de Almeida cantar, "A voz do morto" dispara: "Eles querem salvar as glórias nacionais / Coitados / Ninguém me salva / Ninguém me engana / Eu sou alegre / Eu sou contente / Eu sou cigana / Eu sou terrível / Eu sou o samba". Estes versos são apropriados por Maria Alcina naquilo que eles guardam da raiz difusa do samba, que no Brasil pode unir, na voz de Aracy, Paulinho da Viola (Viva!) e Roberto Carlos ("Eu sou terrível"). Rainha dos terreiros, a voz singular de Maria Alcina canta do lado de fora, à margem, mas na glória de quem compreende as contradições do país - "feito de ouro e prata e filó de nylon" - que tem o samba (margem da margem) como ícone. E faz isso com um arranjo de rock pesado, além das vozes incidentais de Chacrinha, Dercy Gonçalves, Elke Maravilha, Grande Otelo e Aracy de Almeida - símbolos de carnavalização, de autoironia, de deboche crítico. Portanto, ninguém melhor do que Maria Alcina, esse espírito de tudo, para comer - o filme "Terra em transe", o livro "PanAmérica", a peça "O rei da vela" e a instalação "Tropicália" - e cuspir na cara dos caretas neste ano do meio século da Tropicália - "a vez do louco / a vez de tudo".

20 dezembro 2017

Capitães da areia

Sons de 2017. TRÊS. "Capitães da areia" é uma das canções mais sinestésicas deste ano. Já nos versos da "Intro" - "As luzes da cidade, batuque, tiro, gemidos, briga é um caos tão bonito" - temos cheiros, visões, escutas e toques que impregnam todo o disco "Esú" de Baco Exu do Blues (Diogo Moncorvo). Os versos "Somos argila do divino mangue / Suor e sangue / Carne e agonia / Sangue quente noite fria" sintetizam a pretendida e brilhantemente executada harmonização (ruidosa e libertária) entre bem e mal - essas condições complementares (não opostas) do Humano. Isso se dá na incorporação de cânticos (ancestrais) de domínio público ao rap (contemporâneo). De fato, o rapper e o cantador popular se cruzam naquilo que a oralidade tem de transmissão de um saber corporal/experimental não domável pela/na escrita. (Mário de Andrade e Jorge Amado, citados na canção, que nos digam). Aliás, é neste entre-lugar que Exú - a voz que fala por trás da voz que canta - é e está: na encruzilhada ética e estética, na travessia. "Vi os prédios subindo / A mata acabando / Aproveitei e arranhei o céu / (...) / Onde cidadãos de bem queimam terreiros / E espancam mulheres, odeiam os pretos / Odeiam o gueto, matam por dinheiro / Eu sou caos, eu sou vilão", afirma.

19 dezembro 2017

Necomancia

Sons de 2017. DOIS. "Necomancia" é uma das canções mais políticas (e desbundadas) deste ano. Os versos "Ai, que bixa! / Ai, que baixa! / Ai, que bruxa / Isso aqui é bixaria / Eu faço necomancia" sintetizam desbunde e política com a força de quem é "afeminada, bonita e folgada" - Linn da Quebrada. Sem contar a ironia debochada da pergunta desconstrutora (aí, Derrida) do "macho alfa": "Pra que eu quero sua pica se eu tenho todos esses dedos?". Aquilo que oprime, coage e silencia é radicalmente devorado - antropofagicamente - ao som de funk e demais sons sintetizados e ameaça o poder do opressor: "deixa sua piroca bem guardada na cueca / Se você encostar em mim, / Faço picadinho de neca". Enviadescendo e invertendo a posição de controle do corpo alheio, a voz que fala ataca justamente naquilo que o outro ostenta como centro de poder: a "pica" pornografada. "Se tu quiser ficar comigo, boy, vai ter que enviadescer", canta Linn noutra canção. E completa: "Já quebrei o meu armário, agora eu vou te destruir / Porque antes era viado agora eu sou travesti".

18 dezembro 2017

As caravanas

Sons de 2017. UM. "As caravanas" é uma das canções mais emblemáticas deste ano. Os versos "Não há barreira que retenha esses estranhos suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho a caminho do Jardim de Alá" sintetizam tópicas urgentes de nossa atualidade, com o brilhantismo - "o sol, a culpa deve ser do sol" - próprio de Chico Buarque: caravelas e caravanas, refugiados e excluídos são sobrepostos tempoespacialmente. Sem contar a beleza das camadas melódicas instrumentais e vocais: rap e canção, violão e beatbox. Aquilo que se vê é tão terrível - "Tem que bater, tem que matar engrossa a gritaria / Filha do medo, a raiva é mãe da covardia" - que o sujeito da canção duvida e rejeita a visão: "Doido sou eu que escuto vozes / Não há gente tão insana / Nem caravana do Arará". Esse avesso do avesso diz bastante do nó em nós neste momento descortês.