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25 fevereiro 2024

O que é poesia marginal


No livro O QUE É POESIA MARGINAL Glauco Mattoso esmiúça a controversa adjetivação da poesia que circulava nos anos 1970 à margem do mercado editorial. "A palavra marginal, sozinha, não explica muito. Veio emprestada das ciências sociais, onde era apenas um termo técnico para especificar o indivíduo que vive duas culturas em conflito, ou que, tendo-se libertado de uma cultura, não se integrou de todo em outra, ficando à margem das duas", escreve o autor. Hoje, com o adjetivo já devidamente mercadologizado por poetas e editoras, termos como "independente", "alternativo", underground, "artesanal" parecem mais apropriados para refletir sobre a poesia enquanto gesto de subversão ao sistema, às instituições, diante do progressivo aburguesamento do poeta e da poesia numa sociedade cada vez mais espetacularizada. O interessante é observar que tal processo já estava previsto por Glauco Mattoso, poeta do rigor e do desbunde. "No final, você concluirá se existe um característica que possa ser conceituada como marginalidade, se tal conceito representaria uma 'subversão' daquilo que comumente se entende por poesia, ou se essa história toda não passaria de mais um 'equivoco'", lemos no final na introdução do livro. Glauco é um pesquisador das formas, um crítico lúcido e faz de O QUE É POESIA MARGINAL um espaço para responder e provocar com brevidade e profundidade perguntas como "poesia tem que ser estrela?", "poeta tem que ser estrela?", numa evidente cutucada em Bilac e seus herdeiros. "Abaixo o verso! É subversão?" e "artesanais ou artes anais?" também pergunta Glauco, nesse livro da saudosa coleção Primeiros passos, em que a editora Brasiliense tentava explicar temas complexos de um jeito leve e despretensioso.

18 fevereiro 2024

Ao amigo que não me salvou a vida


Paralela às discussões teóricas sobre autoficção, o livro AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA, de Hervé Guibert é o registro tocante e interessado dos anos 1980 em Paris, período de descobrimento da aids, doença que aturdiu e matou muita gente. Jornalista e fotógrafo, Guibert maneja as imagens líricas e subversivas da escrita, seduzindo quem ler. "Sim, posso escrever, e esta sem dúvida é minha loucura, dou mais importância a meu livro do que a minha vida; eu não desistiria de meu livro para preservar minha vida, isso será o mais difícil de fazer as pessoas acreditarem e entenderem", lemos em um dos muitos momentos metalinguísticos do texto. "A obra é o exorcismo da impotência", lemos também. Como registrar e impotência? Talvez seja essa a pergunta que move o livro. Impotência diante da doença, diante do "rosto descarnado" que o espelho reflete, diante do abandono de um amigo que poderia ter ajudado e não ajudou. A narração ao estilo de um diário romanceado termina pouco tempo antes da morte do autor. Sob pseudônimos (ou heterônimos?), Michel Foucault e Roland Barthes, amigos de Guibert, também são personagens de uma narrativa em que a homossexualidade pode, enfim, transparecer: "havia uma certeza de que para além da amizade estávamos ligados por um destino tanalógico comum". Se Cazuza cantou "eu vi a cara da morte e ela estava viva", AO AMIGO QUE NÃO ME SALVOU A VIDA registra essa convivência. "Este livro que relata minha fadiga me faz esquecê-la e, ao mesmo tempo, cada frase arrancada de meu cérebro, ameaçado pela intrusão do vírus assim que a pequena barreira linfática ceder, me dá ainda mais vontade de cerrar as pálpebras", lê-se.

11 fevereiro 2024

Novos e baianos


No livro NOVOS E BAIANOS, Luiz Galvão escreve no limite entre autobiografia, ensaio, memórias, crônica, romance de formação pessoal e romance geracional. Os anos 1970 são apresentados enquanto época híbrida, experimental, desbundada, no que se refere a uma juventude que queria mudar tanto os costumes, a partir da revisão crítica da sonoridade brasileira. "Estou começando a gostar dessa forma integrada de escrever unindo em um texto o passado vivido ao presente acontecendo, e até ao futuro por vir", escreve Galvão, inscrevendo o tom autorreflexivo da própria narrativa da sua/nossa história. Galvão aborda o passo adiante dado pelo coletivo/comunidade Novos Baianos nas propostas éticas e estéticas herdadas do tropicalismo. Há registros de momentos curiosos e engraçados, difíceis e inspiradores para se entender o período, bem como a linha evolutiva da canção popular. Por exemplo, os bastidores do filme "Farol da Barra", que segue "aquela forma de tríplices historinhas independentes", dirigido por Luiz Galvão, a fim de levantar recursos para o lançamento do disco "Farol da Barra" (1978): "O enredo nos leva ao paraíso onde Adão dorme, enquanto Eva irrequieta, dá com os olhos no personagem da Serpente, vivido por Gato Félix. Com o rabo enrolado num coqueiro, a serpente flerta com Eva, atira-lhe três bananas-maçã, e ela come duas e acorda o companheiro Adão, dando a outra para ele, que após come-la se assusta um pouco, mas logo entra numa onda de sensualidade e beija Eva. Mesmo sendo um beijo de cinema, eles fizeram dessa cena a mais bela, pelo misto de lírico e sensual, quando eles rolaram pela grama em acentuado declive, que facilitou a plástica e a fotografia. A Serpente, depois de cumprir seu papel, se transforma no Anjo Expulsador, que traz uma espada de fogo e persegue a dupla que teoricamente dava vazão ao sexo no planeta". Por essas e outras anotações de quem viveu e fez, NOVOS E BAIANOS é livro que merece leitura.

04 fevereiro 2024

Mangue mundo


No livro MANGUE MUNDO: POÉTICAS DO MANGUE EM JOSUÉ DE CASTRO, JOÃO CABRAL DE MELO NETO E CHICO SCIENCE Francisco K ensaia uma educação pela lama presente na convergência dos homens-caranguejo do escritor, médico, nutrólogo, cientista social e geógrafo; com os homens-lama do poeta; e os mangueboys e manguegirls do cancionista. Os textos de K equilibram a densidade do rigoroso trabalho de leitura e audição com uma linguagem direta. Para compor o que chama de "poéticas do mangue" K analisa a dialética de acaso e controle, caos e ordem presente (inscrita) na linguagem das obras de Josué, Cabral e Science. A fome - este tabu - é um topos guia das especulações do autor. Naturalismo, idealismo, metáfora e aspectos sócio-econômicos afirmam as margens. K investiga os núcleos moles do centro capitalista perverso. Núcleos sugeridos, de modo mais ou menos engajados, no romance, na poesia, na canção (na performance). A leitura que Francisco K faz do percurso da metáfora na poesia cabralina já mereceria a atenção para MANGUE MUNDO. Mas há mais. Se Josué de Castro chamou atenção para a fome "que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo"; e em seu tríptico do mangue (do Capibaribe) João Cabral tratou do cão vivo debaixo da pele; Science, sem estilizar ou folclorizar o material tradicional sonoro, nem a fome, engendrou um pacto corporal com o mangue: limite e expansão, caos e cão nas "fronteiras nos jardins da razão". O livro de Francisco K é este elogio urgente e revigorante do "corpo sensível-pensante", do "pensar que se faz juntamente com o sacolejo jubiloso do samba".