Pesquisar canções e/ou artistas

25 junho 2023

Doces e bárbaros

Resultado de dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal da Bahia, o livro DOCES E BÁRBAROS - UM ESTUDO SOBRE CONSTRUÇÕES DE IDENTIDADES BAIANAS apresenta o "acontecimento" nos campos da arte e da política que foi a turnê que em 1976 reuniu Maria Bethânia, Gilberto Gil, Gal Costa e Caetano Veloso. Cantor e pesquisador, Carlos Barros esmiúça com sensibilidade ímpar toda a cena em torno e no centro do palco ritualizado da turnê Doces Bárbaros. A repercussão midiática, o recrudescimento do preconceito - à esquerda e à direita - de tudo o que estava fora do eixo SP-RJ, mas, principalmente, apresenta como a performance dos artistas no palco e na vida ajudaram a desestabilizar o olhar equivocado sobre o ser "baiano". Termo que ainda hoje é usado pelos sudestinos como xingamento. Já na Apresentação lemos: "Temos elementos para supor que a Bahia guarda, nos seus contornos identitários, características de 'outros universos' que, por si, não seriam propriamente brasileiros, mas que passariam a sê-lo justamente pelo fato de estarem contidos na trama da identidade cultural baiana". Eis a trama que os quatro cavaleiros do após calipso colocaram em rotação, incomodando pensamentos supostamente progressistas, mas que apagavam territórios, gentes, histórias, passados. Baseado em teorias das Ciências Sociais, Carlos Barros mostra o futuro ancestral que os artistas baianos, logo, brasileiros, performaram na metade de uma década decisiva para a reflexão do que chamamos "cultura nacional".

18 junho 2023

Nada será como antes


Ana Maria Bahiana é dessas pessoas que viram germinar muito do que ainda hoje alimenta nossa cultura cancional. Com ouvidos livres e olhos atentos, Bahiana registrou shows, lançamentos de discos e acontecimentos que desestabilizaram e, ao mesmo tempo, formataram um certo ethos de nossa cultura, um ethos ancorado na experimentação, no risco, no inaugural, na profissionalização de nosso (quase) amadorismo. Alguns desses registros estão no livro NADA SERÁ COMO ANTES: MPB ANOS 70 - 30 ANOS DEPOIS. Fui reler o volume lançado em 2006 para um trabalho e novamente fiquei impactado com as miradas de Ana Maria junto com os artistas de uma década que se equilibrava entre o "princípio-esperança" e o "princípio-realidade". Quando o sonho acaba, urge re-sonhar! Os anos 1970 estilhaçaram certezas, abriram frestas. E o chamado "jornalismo cultural" teve papel fundamental no enfrentamento da censura, do mercado. A competência de Ana Maria de compreender a máxima do poeta Allen Ginsberg é evidente, a saber, “A poesia no sentido tradicional acabou. Ninguém se senta mais na poltrona da sala de estar para ler. O Rock é a nova poesia. É um retorno à poesia dos velhos tempos”. "Esse tal de Roque Enrow", como cantava Rita Lee em 1975 (no meio do redemoinho!), era o motor dessa juvenil sensibilidade à brasileira. E Ana Maria Bahiana estava lá e nos contou tudo com sabor. Destaca-se o diagnóstico perspicaz que a jornalista faz das obras de Rita Lee, de Cátia de França, de Sueli Costa, entre outras mulheres protagonistas re-orientadoras do ser e estar mulher na canção popular brasileira. NADA SERÁ COMO ANTES: MPB ANOS 70 - 30 ANOS DEPOIS, é crônica, é crítica, é prosa boa de ler.

11 junho 2023

Saia da frente do meu sol


O livro SAIA DA FRENTE DO MEU SOL guarda uma beleza rara: a sinceridade sem afetação. Felipe Charbel equilibra investigação intelectual (seu narrador lê, estuda, pesquisa enquanto escreve) e o que se convencionou chamar "escrita de si", com delicadeza e empatia pelo "fracasso" da empreitada de narrar o outro. Seja metaficção, seja "biografia especulativa", o que lemos é um narrador que se escreve escrevendo a vida de Ricardo, seu tio-avô. É tudo verdade e é tudo ficção. Sem conseguir inventar, o narrador imagina e expande as cenas capturadas em fotografias guardadas num armário. "Era como se a ânsia de inventar turvasse minha visão, me impedindo de assimilar o que se passava ao meu redor", escreve, inventando o que se passava ao redor, por trás, entre, dentro do Ricardo das fotos. "É ficção? Recorri à fantasia"; "Minha questão com as fotos do meu tio não passa pelo factual, pela reconstrução do acontecido". SAIA DA FRENTE DO MEU SOL singulariza o sujeito "comum", o tio velho e doente desconhecido que morava no quartinho dos fundos. O livro trata de algo pouco comum: a velhice do homem gay. "Como seria se fosse possível, naqueles dias, falar abertamente - e não aos sussurros - sobre essas questões mais íntimas?", pergunta-se o narrador sobre a solidão de Ricardo. (Silenciosamente, pergunto-me se o tio "esquisitão" um dia serei eu). "Tudo na história de Ricardo era uma página em branco". Por isso mesmo, o texto é composto por enxertos, citações, descrições, contos dentro de contos, anotações, constituindo-se, assim, a forma possível de se aproximar do outro: aos cacos. "A alteridade é, antes de mais nada, um necessário exercício de autocrítica", escreveu Haroldo de Campos. "O que vejo na foto quando olho para ela?", pergunta-se Charbel a cada mexida no arquivo, na memória, na fantasia. O que vejo no outro quando olho para ele?, parece querer nos fazer perguntar. E perguntamos.

04 junho 2023

Eu. E. Cummings


Com poemas cantados de Ana Carolina a Zeca Baleiro, talvez não seja exagero dizer que Edward Estlin Cummings está na boca do brasileiro. e. e. cummings compõe o paideuma dos poetas concretos, assim como os procedimentos dos poetas concretos são referências importantes para a poesia de Paulo de Toledo. Também tradutor, Toledo se utiliza do conceito de transcriação para nos re-apresentar cummings, poeta traduzido por Augusto de Campos, vide o livro "40 poem(a)s". Desse modo, o livro EU. E. CUMMINGS brinca com essa ciranda de (auto)referencialidades extra, intra e intertextuais do poeta e da poética cummingsiana. Usando sua notável verve irônica de matriz oswaldiana, Toledo inscreve a si quando reescreve cummings. "Além do jogo de palavras com o nome de cummings, o título foi motivado por ser um livro de um 'amador', de um tradutor não-especialista, de alguém que faz porque ama. Daí o 'Eu' do título se refere à relação afetiva entre o tradutor - que há mais de 20 anos tenta verter para o português a 'tortografia' cummingsiana - e o genial poeta", lemos na apresentação. As soluções transcriativas são eficazes e destacam a dificuldade da "tortografia" e a beleza da poesia singular, com seu lirismo moderno, carregado de pesadelos: "and is it dawn / the world / goes forth to murder dreams" fixa-se "e é o alvorecer / o mundo / se encaminha para sonhos assassinos"; ou "-after which our separating selves become museums / filled with skilfully stuffed memories" fixa-se "-após o que nossos eus separados tornam-se museus / repletos de memórias habilmente empalhadas". A autodeclara não-especialidade de Paulo de Toledo permite a ele experimentar as palavras aglomeradas, os eus urbanos de cummings, suas inquietações: "to hell with literature / we want something redblooded" fixa-se "pro inferno com a literatura / queremos algo que pingue sangue". E não é isso que a literatura quer? "something authentic and delirious" [algo autêntico e delirante]? Isso o livro EU. E. CUMMINGS nos dá.