Pesquisar canções e/ou artistas

30 junho 2021

Vagalumes

Na transcriação do poema de livro para a voz na canção corre-se um risco. Sedutora, a voz humana tende a direcionar e organizar algo que na página do livro, em geral, na boa poesia, existe enquanto latência à espera do leitor que em “silêncio” experimenta modos de ler. Nesse sentido, cantar um poema deveria ser um convite a pensar junto as possibilidades de leitura e não a condução do ouvinte-leitor. “Sempre vi a leitura, ou outras formas de recepção estética, não como uma tradução da vida, mas como uma vivência em si; não como uma intermediação entre nós e o mundo, mas como uma via de acesso direto à experiência do mundo, através da (trans)formação de nossa consciência e sensibilidade”, afirmou Arnaldo Antunes em entrevista a Gisele Barão, para o jornal Rascunho (julho de 2021).
Arnaldo é um artista que desde o começo de sua obra enfrenta o risco, porque ele cria numa clave de experimentação verbivocovisualperformática que transita por variados suportes e linguagens. “Assim como há os poemas que dependem de um trabalho gráfico-visual, há aqueles mais voltados à oralidade, onde as assonâncias e o ritmo têm papel fundamental. Alguns beiram a linguagem da canção. Nas performances poéticas que apresento, costumo explorar diferentes registros de emissão vocal das palavras – faladas, cantadas, entoadas, berradas, sussurradas, incorporando ruídos – dando a elas novas sugestões de sentidos”, diz ele na mesma entrevista.
Paralela à discografia autoral, a presença da verve letrista de Arnaldo Antunes na discografia da cantora Marisa Monte é recorrente. Ela abre seu primeiro disco MM (1989) com “Comida”, de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto; o segundo disco Mais (1991) começa com a radiofônica “Beija eu”, de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Arto Lindsay; em 1994, no disco Verde, anil, amarelo, cor de rosa e carvão, Marisa canta “Alta noite”, de Arnaldo Antunes, além de registrar a assinatura dos dois em “De mais ninguém” e “Bem leve”; antes, no projeto Nome (1993), de Arnaldo Antunes, ela coloca voz em “Cultura”, “Carnaval”, “Direitinho” e “Alta noite”; e em Memórias, crônicas e declarações de amor (2000), os dois assinam “Não vá embora” e dividem com Carlinhos Brown a autoria de “Não é fácil” e “Água também é mar” – além de Arnaldo oralizar trecho do livro Primo Basílio de Eça de Queiróz em “Amor, I love you”, de Marisa Monte e Carlinhos Brown.
Brown é o outro eixo de um tripé sonoro importante. Com o projeto Tribalistas (2002 e 2017) o trio se afina definitivamente e sacode o mercado musical brasileiro. A afinação marca também os trabalhos individuais dos três, com participações, coproduções, etc. Ainda na discografia de Marisa Monte, Universo ao meu redor e Infinito particular (2006) e O que você quer saber de verdade (2011) são discos que registram a sonoridade da tribo.
A parceria com Arnaldo Antunes se mantém em Portas, disco que Marisa Monte lança no pandêmico 2021. Para voltar à questão inicial, ou seja, a musicalização de poemas, destaco, destaco “Vagalumes”, canção que tem por base o poema “On-off”, publicado por Arnaldo no livro Algo antigo (2021). “Vaga-lume”, escrito assim com hífen, é palavra que encerra o poema “On-off”, concluindo um ciclo verbivisual em que forma é conteúdo e exige a imaginação do leitor para o jogo lúdico das aproximações sonoras das palavras.
A metáfora é certeira: o vaga-lume é o “chispa chama” que liga e desliga – daí o “on-off” com hífen – a memória (crítica) do leitor. A fim de figurativizar o ritmo acelerado entre presença e ausência visual do vaga-lume, o poema é composto por versos trissílabos, mesma estrutura utilizada por Manuel Bandeira no famoso e veloz ritmicamente “Trem de ferro”. Ou seja, imitando o “pisca-pisca”, os versos com três sílabas poéticas imprimem cadência e alternância rápida entre sílabas fortes e fracas. Eis o poema do livro:

chispa chama
recendeia
descandeia
refaísca
desfagulha
recentelha
desatiça
recintila
descorisca
relampeia
desestrela
reacende
pisca-pisca
reluzente
desilude
renitente
vaga-lume

Marisa Monte sabe que o quarteto é forma clássica eficaz à oralização. As quadrinhas guardam nossa filosofia popular. Ao musicar o poema, os versos são separados em grupos de quatro e cantados emulando um fado, numa rara mudança no tom rítmico que marca o disco Portas do começo ao fim. Segue-se a sequência do poema até “reacende”, quando, ao invés de cantar “pisca-pisca” (o verso ímpar, o verso que rompe com a reiteração on-off das iniciais 're' e 'de' das palavras justapostas), Marisa Monte salta para “reluzente / desilude / renitente / vaga-lume”.
Em seguida, dentro do clima sonoro nostálgico da melodia – sustentada pelo meticuloso trabalho de Marisa Monte no violão; Dadi nos ukulele, baixo, piano Fender Rhodes; Davi Moraes nos violão, guitarra, bongo, shaker, unha; e Pedro Baby com guitarra Fractal e shaker –, a palavra “manhã” é repetida para fazer as vezes de refrão. É assim que o que era sugestão no poema torna-se luz branda, acende e permanece solar, bisando uma “canção de amor” – essa fórmula em que textos de rápida comunicabilidade são emoldurados em alongamentos das vogais e batida lenta, tão presente em nosso cancioneiro.
“Para a canção, acabei criando uma parte nova, que não consta no poema original como está no livro”, diz Antunes na entrevista a Barão. Assim, um trecho, digamos, mais narrativo-figurativo foi acrescentado ao texto do poema. Volta o pisca-pisca suprimido: “Pisca-pisca pesca o olho com a luz da sua isca / Quando apaga recomeça como o ar que se respira / Fogo fôlego varia como água que respinga / Uma coisa tão pequena pode transformar a vida”. Desse modo, a letra da canção explica para o ouvinte a metáfora do poema; o que era latência e ferocidade – os pares significantes, a promessa não cumprida da luz na escuridão – é diluído na manhã reconfortante que a voz bonita da cantora engendra.
Ao piscar, o vaga-lume nos lembra do real que resiste à ilusão da luminosidade. A dúvida que o vaga-lume representa torna-se promessa da felicidade. O vagalume é reduzido a índice da nostalgia de um suposto espaço/tempo idílico que a voz de acalanto promete restituir. O plural no título da canção parece indicar a comunhão entre quem ouve e quem canta. Para usar um elemento que Marisa Monte ostenta na capa do disco Portas, a cantora apresenta uma “chave” de leitura. Mas, se para Pasolini e Didi-Huberman, os vaga-lumes resistem e sobrevivem ao excesso do progresso vazio com a politização de nossa capacidade humana de imaginar, como acontece no poema “On-off” de Arnaldo Antunes, na canção “Vagalumes” essa capacidade é subestimada.
Temos no Brasil uma forte tradição de musicalização/oralização de poesia. O mesmo Arnaldo Antunes, por exemplo, já musicou poema de Augusto dos Anjos sem detrimento da densidade estruturante da poesia em si, ao contrário, atualizou a força do texto. Também Marisa Monte musicou poema de Octávio Paz em versão de Haroldo de Campos e potencializou o texto. Nesses casos, ambos demonstram que, ao encontrar e vocalizar a melodia imanente no arranjo de palavras, quem canta atua a fim de singularizar e expandir a experiência estética do poema.
Obviamente, o texto para ser lido/cantado requer tratamento próprio e diferente do texto para ser lido/visto na página do livro, mas ambos são expressões de uma mesma força motriz, a poesia. No caso de “On-off”, ou melhor, de “Vagalumes”, a potência perene da poesia, o que faz com que o leitor retorne a ela, é turvada, alienada.
O vagalume que a poesia é fica em segundo plano. Se o ouvinte volta a ouvir a canção é para ter conforto – o que quer que isso signifique no Brasil de 2021. Parafraseando o poema de Carlos Drummond de Andrade, musicado por Milton Nascimento, Marisa Monte canta uma canção que faz adormecer os homens e as crianças. “Vagalumes” é puro acalanto. O poema “On-off” não.
Não é a primeira vez que Marisa Monte e Arnaldo Antunes “ajustam” um poema deste último para uma canção. No disco O que você quer saber de verdade temos “Amar alguém”, do livro N.D.A. (2010). Daquela vez, se o título do poema foi mantido para nomear também a canção, a seleção e a montagem dos versos foram radicais. O que poderia ser lido como um poema sobre o amor na contemporaneidade, com toda a complexidade que o tema exige, verteu-se em mais uma letra agradável, positiva, tranquilizadora. Novamente a promessa de conjunção amorosa dá o tom.
Trechos do poema como “ninguém comanda a tentação que tem / cupido não divulga quando vem / deixando o alvo tenro sem porém”, ou “os corpos vivos sofrem atração / apaixonados não têm coração”, ou ainda “amar é só continuar querendo / embora cause tanto sofrimento” não são cantados. Muito Apolo, pouco Dionísio; novamente, muita luz, pouca sombra.
A canção “Amar alguém” é assinada por Arnaldo Antunes, Dadi e Marisa Monte. No canto, mantem-se a estrutura dos quartetos presentes no poema do livro. Mas a partir da terceira estrofe os versos passam a se misturar, vindos das outras estrofes do poema. Mais do que refrão, o verso eficaz para postagens em redes sociais – “Amar alguém só pode fazer bem” – é repetido várias vezes, apaziguando qualquer ameaça de dor.
No poema, Arnaldo Antunes aciona a tradição de poemas de amor ao evocar os versos “transforma-se o amador na coisa amada, / por virtude do muito imaginar”, de Luís de Camões; bem como a tradição da canção de massa, posto que o poema termina com “por isso então não chora mais, meu bem”. A referência a “não sofra, não pense, não chore mais, meu bem”, de “Esqueça (Forget Him)”, versão de Roberto Côrte Real para canção de Mark Anthony, é evidente. Essa canção, eternizada na voz de Roberto Carlos, foi gravada por Marisa Monte para a trilha sonora do filme A taça do mundo é nossa (2003).
A rede que alimenta a poesia de livro e a canção popular brasileira é vasta e desierarquizada. Marisa Monte, cantora de voz afinada e de emissão perfeita forjada nos estudos de canto, na Portela e na escuta das canções de rádio, demonstra ter consciência disso. Basta ouvir sua discografia. Porém, nos dois casos aqui destacados, identificamos um investimento na seleção e positivação de palavras reconfortantes, uma domesticação da ferocidade da linguagem poético-cancional. Domesticação incômoda especialmente num momento em que, como diria Maiakovski, “não é tempo / de palavrinhas amorosas”.

***

Vagalumes
(Marisa Monte / Arnaldo Antunes)

Chispa chama
Recendeia
Descandeia
Refaísca

Desfagulha
Recentelha
Desatiça
Recintila

Descorisca
Relampeia
Desestrela
Reacende

Reluzente
Desilude
Renitente
Vagalume

Manhã

Pisca-pisca pesca o olho com a luz da sua isca
Quando apaga recomeça como o ar que se respira
Fogo fôlego varia como água que respinga
Uma coisa tão pequena pode transformar a vida

Manhã