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30 outubro 2019

Ismália

O vocábulo rap já aparece em dicionários da língua inglesa do século XIV, com sentido de "bater" ("bater o texto", expressão usada ainda hoje no teatro) ou "criticar". Rhythm and poetry, repente e embolada, o rap trabalha com a palavra (de protesto) sempre à frente da música. Menos romântico (passional) e mais empenhado na mensagem (intervenção), o rap recupera a presença da fala na canção. Todo o aspecto rítmico do rap é feito para atrair a atenção do ouvinte ao que está sendo dito; em geral, denúncia da violência e da injustiça social. Para tanto, é necessário experimentar variadas nuances entoativas em acordo com o grau de intensidade do que é dito em versos rimados e ritmados. Desse modo, o rap insere-se na tradição da poesia oral, que está na origem mesma da poesia.
Para Luiz Tatit, "antes de tudo, o que assegura a adequação entre melodias e letras e a eficácia de suas inflexões é a base entoativa. De maneira geral, as melodias de canção mimetizam as entoações da fala justamente para manter o efeito de que cantar é também dizer algo, só que de um modo especial" (O século da canção, 2004, p. 73). Rap é a palavra cantada mais próxima da falada falada, no entanto, diferente da fala coloquial. Há tensividade musical no rap, no mais das vezes, marcada pela aceleração do arranjo vocal e eletrônico. É essa aceleração o que imprime a agressividade do canto do rapper.
"Isso! / Não, chocalho tem que ser tocado com vontade! / Tendeu? / Só que sem risadinha, certo? / Sem risadinha porque aqui é o rap, mano, onde o povo é brabo, entendeu? / O povo é mau! Mau! Mau! / Pra trabalhar nesse emprego de rapper, você tem que ser mau! / Tendeu? Sem risadinha, ok? / Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou o Rael? / Sei lá, meu. / Aqui os cara é mau!", brinca Emicida com a persona do rapper em "Cananeia, Iguape e Ilha Comprida". 
Propondo uma remissão à fala, a regularidade rítmica do rap tensiona o entendimento comum de canção. Aliás, novamente de acordo com Luiz Tatit: "um dos equívocos dos nossos dias é justamente dizer que a canção tende a acabar porque vem perdendo terreno para o rap! Equivale a dizer que ela perde terreno para si própria, pois nada é mais radical como canção do que uma fala explícita que neutraliza as oscilações "românticas" da melodia e conserva a entoação crua, sua matéria-prima. A existência do rap e outros gêneros atuais só confirma a vitalidade da canção. Ou seja, canção não é gênero, mas sim uma classe de linguagem que coexiste com a música, a literatura, as artes plásticas, a história em quadrinhos, a dança etc. É tudo aquilo que se canta com inflexão melódica (ou entoativa) e letra. Não importa a configuração que a moda lhe atribua ao longo do tempo" (Todos entoam, 2007, p. 230).
"Eles não aguentam te ver livre / Imagina te ver rei / O abutre quer te ver de algema", diz os versos de "Ismália" (AmarElo, 2019). Canção em que Emicida se une às vozes de Larissa Luz e Fernanda Montenegro para narrar a interdição do sonho, da liberdade. Narrativa em tons baixos e graves, em que Emicida mimetiza a gravidade do narrado: "Ela quis ser chamada de morena / Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena".
Poderíamos percorrer todo o caminho que o termo "morena" suporta na tirânica indústria do entretenimento. Um fardo pesado demais que Ismália incorpora. Ela "Quis tocar o céu, mas terminou no chão", diagnostica a voz narrativa. A mesma voz que já dissera: "Olhei no espelho / Ícaro me encarou / Cuidado, não voa tão perto do sol / Eles não aguentam te ver livre / Imagina te ver rei". Ícaro e Ismália, mito e verdade.
Para Enzo Minarelli "a voz em performance é a essência de muitas vozes: é a voz autêntica, arquétipo, xamã oriundo das profundezas do corpo, de um corpo além, voz metafísica, ontológica, uma voz sempre dialética, uma voz crítica em sua entidade social, eletrônica em sua intermedialidade, natural e artificial, sopro bucal regenerador e deformador, voz aleijada, fluxo fonético como fala divina, aceita sem contestação, voz régia, voz superior, em sua singularidade, voz vital, força utópica" (Polipoesia, 2010, p. 13). É esta a voz animada por Emicida, Larissa e Fernanda.
"Com a fé de quem olha do banco a cena / Do gol que nóiz mais precisava, na trave / A felicidade do branco, é plena / A pé trilha em brasa e barranco, que pena / Se até pra sonhar tem entrave / A felicidade do branco, é plena / A felicidade do preto, é quase", canta Larissa Luz. Por sua vez, com pausa dramáticas e respiração pesada, Fernanda Montenegro declama "Ismália", do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimarães (1870-1921), logo após Emicida dizer que "Quem disparou usava farda (meu crime é minha cor) / Quem te acusou nem lá num tava (eu sou um não lugar) / É a desunião dos pretos / Junto com a visão sagaz de quem / Tem tudo menos cor onde a cor importa demais".
Alphonsus de Guimaraens, "ao lado de Cruz e Souza (1861-1898), criou imagens melódicas e sensoriais, carregando as palavras de emoção, opondo-se ao positivismo parnasiano", escreve Isabel Lopes Carvalho em "Os reflexos de Ismália" (2014). E completa: "seus versos ritmados e de métrica rigorosa carregam um tom gótico; sua melancolia, várias vezes associada à loucura, em muitos casos fez da dualidade um recurso aproximativo entre forma e conteúdo".
O fato é que Emicida propõe uma interpretação radicalmente nova e pertinente ao poema de Alphonsus de Guimaraens. Fatos reais identificados pelo ouvinte atento aos noticiários se misturam à história de Ismália. Essa remissão à realidade concreta é um procedimento em que Emicida repara as lacunas deixadas pela historiografia literária ao criar os possíveis motivos que levaram a Ismália de Alphonsus à loucura, ao suicídio. A cor da pele destina: "Minha cor não é um uniforme / Hashtag "Pretos no topo", bravo / 80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo / Quem disparou usava farda (mais uma vez) / Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco) / Por que um corpo preto morto / É tipo os hits das parada / Todo mundo vê mas essa porra não diz nada".
O poema de Alphonsus de Guimaraens teve quatro versões até fixar-se como conhecemos hoje. Inclusive, na primeira versão (1910), o poema chamava-se "Ofélia" - referência a personagem suicída de Shakespeare? De "lírio" a "anjo", de Ofélia a Ismália, mantem-se o "quando". O que Emicida propõe é investigar o entorno deste "quando" trágico e desvairado. "Queria a lua do céu, / Queria a lua do mar", diz o Alphonsus na voz de Fernanda. Duplicidade noturna que Carlos Drummond de Andrade chamou de "a lua dupla de Ismália enlouquecida". "Quis tocar o céu, mas terminou no chão", dizem Emicida e Larissa.
A canção e a personagem "Ismália" imbricam-se e figurativizam-se no modo de dizer, na gestualidade vocal e suas conexões com a entoação da fala. "Ter pele escura é ser Ismália" eis o núcleo duro do texto cantado ("batido") por Emicida e Larissa Luz. O narrador cancional reproduz o discurso da branquitude para compreender o estado de coisas vivido por Ismália: "Primeiro sequestra eles / Rouba eles / Mente sobre eles / Nega o Deus deles / Ofende / Separa eles / Se algum sonho ousar correr, cê pára ele / E manda eles debater com a bala que vara eles".
Há ecos aqui dos versos "A carne mais barata do mercado / É a carne negra / Que vai de graça pro presídio / E pára debaixo do plástico / E vai de graça pro sub-emprego / E pros hospitais psiquíatricos" ("A carne", de Marcelo Yuka, Seu Jorge e Wilson Cappellette, defendida por Elza Soares no disco Do Cóccix até o pescoço, 2002). E há que se lembrar da clássica canção "Senhor da floresta" (1961), de Augusto Calheiros e René Bittencourt, interpretada de Maria Bethânia (Brasileirinho, 2003), cujos versos "E a filha formosa do morubichaba / Quando anoiteceu, correu, / Subindo a montanha, no fundo do abismo desapareceu". É o eterno retorno do destino trágico, porém romantizado, da mulher numa sociedade do "macho adulto branco sempre no comando", como canta Caetano Veloso em "O estrangeiro" (1989).
Lembremos ainda da Joana da peça musical Gota D'água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, cuja violência do suicídio é redimensionada quando a personagem é interpretada por Juçara Marçal na montagem Gota D'água {preta}. Estas referências ajudam a tecer a mensagem "No fim das contas é tudo / Ismália". Não é possível romantizar, "80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo". A fala direta do texto é acompanhada por uma instabilidade rítmica em que o que importa é o pulso da mensagem, a comunicação desta.
Neste tecido de referências mítico-literárias, há que se falar ainda do poema "No alto" do livro Ocidentais (1880) de Machado de Assis: "O poeta chegara ao alto da montanha, / E quando ia a descer a vertente do oeste, / Viu uma cousa estranha, / Uma figura má. / Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste, / Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha, / Num tom medroso e agreste / Pergunta o que será. / Como se perde no ar um som festivo e doce, / Ou bem como se fosse / Um pensamento vão, / Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta. / Para descer a encosta / O outro lhe deu a mão". Ismália é a poeta que, sem a resposta da musa Ariel, deixa-se morrer, não entregue a Caliban, mas nos braços das Sereias?
"Se até pra sonhar tem entrave", o que sobra a Ismália? "Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes, que nem devia tá aqui / Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes / Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nóiz? / Alvos passeando por aí", canta Emicida, Majur e Pabllo Vittar na canção que dá título ao disco "AmarElo". "Aí, maloqueiro, aí, maloqueira / Levanta essa cabeça / Enxuga essas lágrimas, certo? / Respira fundo e volta pro ringue / Cê vai sair dessa prisão / Cê vai atrás desse diploma / Com a fúria da beleza do Sol, entendeu? / Faz isso por nóiz, faz essa por nóiz / Te vejo no pódio", conclui o sujeito da canção.
No texto "Outros olhares" (jornal O Dia, 09/09/2015), o historiador Luiz Antonio Simas aponta que "Não adianta apenas que negros e índios estejam na universidade, se o ambiente da produção do conhecimento continuar reproduzindo uma visão fundamentada em conceitos pré-concebidos que negam os saberes ancestrais e as invenções afro-ameríndias. Ou a ideia é colocar negros e índios nos colégios e universidades para ensinar que quem produziu cultura foi o homem branco, cristão, ocidental?". A pergunta se desdobra nos versos "Apunhalado pelas costas / Esquartejado pelo imposto em postas / E como analgésico nóiz posta que / Um dia vai tá nos conforme / Que um diploma é uma alforria". Reparação e justiça social.
"A voz do poema envolve o conteúdo como uma fina camada de orvalho transparente, através da qual  tudo se deixa entrever, como se fora uma magia psicovisiva, uma água epifânica. Isso quer dizer que o poema sonoro está em ação, em direção à sua orgásmica conclusão, em uníssono com o público, em sua utópica crença de transubstanciação" (MINARELLI, 2010, p. 26). Emicida, Larissa e Fernanda se unem para denunciar que "os modos de adoecer e morrer da população negra no Brasil refletem contextos de vulnerabilidade" (
Óbitos por Suicídio entre Adolescentes e Jovens Negros, 2019). Dados do Ministério da Saúde afirmam que o índice de suicídio entre jovens negros é 45% maior do que o de brancos.
"Tudo tudo tudo que noiz tem é noiz", diz Emicida em "Principia". A rede de proteção sonora é criada e denuncia: "A felicidade do branco, é plena / A pé trilha em brasa e barranco, que pena / Se até pra sonhar tem entrave / A felicidade do branco, é plena / A felicidade do preto, é quase"; e afirma: "Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro".

***

 (Nave / Renan Samam / Emicida)

Com a fé de quem olha do banco a cena
Do gol que nóiz mais precisava, na trave
A felicidade do branco, é plena
A pé trilha em brasa e barranco, que pena
Se até pra sonhar tem entrave
A felicidade do branco, é plena
A felicidade do preto, é quase

Olhei no espelho
Ícaro me encarou
Cuidado, não voa tão perto do sol
Eles não aguentam te ver livre
Imagina te ver rei
O abutre quer te ver de algema
Pra dizer: - ó não falei
No fim das conta é tudo

Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão

Ela quis ser chamada de morena
Que isso camufla o abismo entre si e a humanidade plena
A raiva insufla, pensa nesse esquema
A idéia imunda, tudo inunda e a dor profunda
É que todo mundo é meio antena
Paisinho de bosta, a mídia gosta
Deixa falha e quer medalha de quem corre com fratura exposta
Apunhalado pelas costas
Esquartejado pelo imposto em postas
E como analgésico nóiz posta que
Um dia vai tá nos conforme
Que um diploma é uma alforria
Minha cor não é um uniforme
Hashtag "Pretos no topo", bravo
80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo
Quem disparou usava farda (mais uma vez)
Quem te acusou nem lá num tava (bando de espírito de porco)
Por que um corpo preto morto
É tipo os hits das parada
Todo mundo vê mas essa porra não diz nada

Ter pele escura é ser
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Terminou no chão

Primeiro sequestra eles
Rouba eles
Mente sobre eles
Nega o Deus deles
Ofende
Separa eles
Se algum sonho ousar correr, cê pára ele
E manda eles debater com a bala que vara eles
Mano, infelizmente onde se sente o sol mais quente
O lacre ainda tá presente só no caixão dos adolescentes
Quis ser estrela e virou medalha num boçal
Que coincidentemente tem a cor que matou seu ancestral
Um primeiro salário
Duas fardas policiais
Três no banco traseiro da cor dos quatro Racionais
Cinco vida interrompida
Moleques de ouro e bronze
Tiros, e tiros, e tiros
O menino levou cento e onze

Quem disparou usava farda (meu crime é minha cor)
Quem te acusou nem lá num tava (eu sou um não lugar)
É a desunião dos pretos
Junto com a visão sagaz de quem
Tem tudo menos cor onde a cor importa demais

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar

Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar.

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar
Estava perto do céu,
Estava longe do mar.

E como um anjo pendeu
As asas para voar.
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar.

As asas que Deus lhe deu,
Ruflaram de par em par,
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar.

15 outubro 2019

Poema obsceno

A aliança entre Música e Poesia remonta à origem da linguagem, ou seja, quando o canto estava indissociável da poesia: dos aedos gregos à lírica trovadoresca; dos encantamentos indígenas aos orikis nagô-ioruba. O fato é que mesmo no império grafocêntrico, com a tipografia e o prestígio da palavra escrita, o verbo poético não renuncia a voz (ritmo, timbre, dicção) humana. Basta ler o clássico texto de T. S. Eliot – “As três vozes da poesia” – para perceber como poetas e críticos vêm tentando perceber essa relação.
Mas se, por princípio, todo poema escrito pode ser cantado, a musicalização precisa atender as estruturas específicas ao acabamento da canção. Os procedimentos são outros. Por exemplo, caberá ao melodista buscar a "entoação embrionária" (expressão de Luiz Tatit) dos versos para, entendendo o ser e o tempo poético, criar a canção, verter a palavra escrita em palavra cantada.
Tendo uma Canção Popular tão forte, a parceria entre letristas e poetas é marca de nossa cultura brasileira. É o caso do poeta Ferreira Gullar, autor da célebre letra de "Trenzinho do caipira" (1976), parte integrante da peça Bachianas Brasileiras nº 2 (1933) de Heitor Villa-Lobos. Mas Gullar também assina outras peças de poemas musicados e de letras de canção. O livro Cancioneiro – Ferreira Gullar (2015) revela um poeta talvez pouco conhecido no ambiente acadêmico. O organizador professor Antonio Carlos Secchin anota que "quando me predispus a reunir o cancioneiro de Ferreira Gullar, julgava que encontraria no máximo meia dúzia de letras. Para minha agradável surpresa, e contando com a prestimosa colaboração do gullariano Augusto Sérgio Bastos, foi possível chegar a treze".
Cantados por Nara Leão, Edu Lobo, Chico Buarque, Maria Bethânia, Adriana Calcanhoto e Zé Ramalho, os versos do poeta Ferreira Gullar, parceiro de cancionistas como Sueli Costa, Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Milton Nascimento e Fagner, são apresentados em versão manuscrita e digitada. Tal e qual as boas edições do cancioneiro da antiga poesia lírica provençal, por exemplo. O critério de registrar unicamente "letras" e não "poemas musicados", deixa de fora peças importantes – "Traduzir-se" (Fagner e Ferreira Gullar) e "Poema Obsceno" (Moacyr Luz e Ferreira Gullar), entre outras.
"Poema Obsceno" foi publicado no livro Na vertigem do dia (1980), portanto, logo após a publicação do icônico Poema sujo (1975), nas palavras de Gullar "sujo como o povo brasileiro, como a vida dos brasileiros". Note-se que Poema sujo foi escrito em 1975, durante o exílio imposto ao poeta pela ditadura militar. É sempre bom lembrar que o poema entrou no Brasil gravado numa fita cassete, na bagagem de Vinicius de Moraes e foi ouvido, antes de ser lido. Dada a repercussão, "devo ao Poema sujo o fim antecipado do meu exílio", anotou Gullar.
Além de "Poema Obsceno", o livro Na vertigem do dia guarda outros metapoemas como, além do conhecido "Traduzir-se" ("Uma parte de mim / é só vertigem; / outra parte, / linguagem"), "Arte poética" ("Não quero morrer não quero / apodrecer no poema"), "Subversiva" ("A poesia / quando chega / não respeita nada"), "O poço dos Medeiros" ("Não quero a poesia, o capricho / do poema: quero / reaver a manhã que virou lixou") e "A voz do poeta" ("É voz de gente - poema: / fogo logro solidão".
Os versos de abertura de "Poema Obsceno" - "Façam a festa / cantem dancem / que eu faço o poema duro / o poema-murro / sujo / como a miséria brasileira" - soam, não apenas como a autorreflexão de um sujeito que toma para si a missão - com tons de sacrifício - de cantar o horror, também acusatórios. Adiante o sujeito diz e nomeia: "Não se detenham: / façam a festa / Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira / todos / façam / a festa". Acusando a suposta alienação dos outros (em festa) o sujeito afirma sua importância: fazer o "poema duro", logo obsceno, visto "que não toca no rádio", nem "entrará nas antologias oficiais".
A referência ao Poema sujo é literal, as referências à miserabilidade da vida também: ele compõe um poema "que o povo não cantará / (mas que nasce dele [do povo])". Por fim, "o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / - e espreitam". Os signos remetem o leitor ao Ferreira Gullar preocupado com os destinos do país e ainda ligado às propostas de liderança do povo advindas dos Centros Populares de Cultura - criados em 1962 e extintos pelo golpe militar em 1964 -, com o emblema "o povo canta". "Toda arte é política e, por isso mesmo, determina uma opção diante dos problemas concretos, a afirmação ou negação de determinados valores" (p. 131), escreveu Gullar em Vanguarda e subdesenvolvimento, indicando um projeto artístico que definiu sua obra.
Em entrevista a Hans Ulrich Obrist, Gullar diz "eu me engajei no Centro Popular de Cultura porque eu estava, naquele momento, muito mais interessado em mudar a sociedade brasileira do que em fazer arte. Mas depois veio o golpe militar, e mostrou que era melhor continuar fazendo arte" (p. 178. ver Entrevistas vol.6).
O tom acusatório de alienação do povo aparece noutro poema do mesmo livro. "Poderia dizer que meu povo / é uma festa só na voz / de Clara Nunes / no rodar / das cabrochas no carnaval / da Avenida. / Mas não. O poeta mente", escreve o poeta em "Digo sim". E completa: "A vida nós a amassamos em sangue / e samba / enquanto gira inteira a noite / sobre a pátria desigual". E, depois de elencar as contradições da vida, conclui: "não digo que a vida é bela / tampouco me nego a ela: - digo sim". Desdobrando o tom de acusação em elogio a quem consegue cantar e sambar, apesar do sangue?
Ainda no livro Vanguarda e subdesenvolvimento Ferreira Gullar registra seu empenho com a realidade intranscendente brasileira e sua preocupação com o distanciamento entre a arte de vanguarda e o povo. "A verdadeira vanguarda artística, num país subdesenvolvido, é aquela que, buscando o novo, busca a libertação do homem, a partir de sua situação concreta, internacional e nacional" (p. 8), escreve. "Armado do método marxista, o artista terá condições de superar a limitação básica de algumas das mais significativas experiências da vanguarda artística, que as conduziu ou ao formalismo ou ao subjetivismo. Para isso, vamos ter de nos deter no exame da dialética do particular e do universal na criação da obra de arte" (p, 53), sugere.
É este poeta crítico da contradição - "Para uma vida de merda / nasci em 1930 / na Rua dos Prazeres" (do poema "Primeiros anos") - que ouvimos em "Digo sim" e "Poema Obsceno". Para Gullar, a arte de massa, mercadoria da sociedade capitalista, "trata-se de uma visão desmistificada que não abdica da complexidade mas que a vê, não como resultante de uma irracionalidade fundamental, segundo a qual o ser é insondável, e sim como decorrência do caráter dialético, dinâmico, do real" (p. 130).
O título "Poema Obsceno" problematiza a noção de obscenidade. Ferir o pudor, ser obsceno, é mostrar aquilo que a ditadura militar quer mascarar: a miséria brasileira. Miséria que, de algum modo, também é mascarada na festa carnavalesca. O poema revisa, portanto, a ideia de inversão que Bakhtin observou no carnaval medieval. O sujeito do poema quer que na modernidade esta inversão, ou seja, a tomada de posição, do protagonismo do povo ultrapasse os quatro dias de festa concedida e se incorpore à vida ordinária. Faz isso assumindo a liderança - "eu faço o poema", "eu soco o pilão". Para ele, o povo precisa de guia. E ele mesmo ocupa esta posição.
Mas o sujeito erra ao diagnosticar "que não toca no rádio / que o povo não cantará". Afinal, quando Moacyr Luz e Água de Moringa (Rui Alvim, Marcílio Lopes, Jayme Vignoli, Luiz Flávio Alcofra, Josimar Carneiro e André Boxexa) gravam o discurso do poema no disco Sedução carioca do poeta brasileiro (2005) o discurso retorna à voz, sai do mutismo das páginas do livro e ganha o corpo coletivo. O sujeito não cumpre sua função assim?
O disco merece destaque na discografia de Moacyr Luz. Nele temos musicados 12 poemas de exaltação à cidade do Rio de Janeiro: "Noite Carioca", Murilo Mendes; "Poema Obsceno", Ferreira Gullar; "Elegia Inútil", Manuel Bandeira; "Coisa Mais Linda Mais Cheia de Garça", Elisa Lucinda; "3x4", Armando Freitas Filho; "Copacabana Noctívaga", Ariel Marques; "Méier", Luiz Paiva de Castro; "Carnavais", Geraldo Carneiro; "Cantiga das Ilhas", Aldir Blanc; "VII – Rio de Janeiro", Carlos Drummond de Andrade; "Praia do Pinto", Vinicius de Moraes; e "As Cantadas", Mário de Andrade.
Embora no mesmo livro Na vertigem do dia o poema "Improviso ordinário sobre a cidade maravilhosa" fale que "a tarde é quente / na cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro / com suas cadeias apinhadas de presos / respirando o fedor de seus próprios dejetos", a canção de Moacyr Luz investe na ideia de que "a tristeza é senhora, desde que o samba é samba", conforme canta Caetano Veloso. Ou seja, a alegria aparente - "façam a festa" - não nega a tristeza resiliente - "Os homens se amparam em retratos. / Ou no coração de outros homens". E não é isso que o samba faz? Não é este o gesto utópico de cantar, de sambar, ou seja, apontar "o lado escuro do país" e os que "espreitam" postos à margem?
O cancionista cria uma melodia que ora tematiza, estimula a dança com um maracatu no começo da canção; ora passionaliza, reverenciando quem mantem a fé na festa ("Bethânia Martinho / Clementina / Estação Primeira de Mangueira Salgueiro / gente de Vila Isabel e Madureira"); ora investe na oratória (mais palavra falada, política, dura e menos palavra cantada, melodiosa), respeitando o discurso engajado do trecho "Não se prestará a análises estruturalistas / Não entrará nas antologias oficiais / Obsceno / como o salário de um trabalhador aposentado / o poema / terá o destino dos que habitam o lado escuro do país / – e espreitam".
Os três modos de dizer o poema impõem à canção de Moacyr Luz as contradições elencadas pelo sujeito do poema. Esta consciência melódica da entonação embrionária da palavra escrita, além de ser uma aula sobre leitura de poesia, estimula a reflexão sobre arte e participação. Outro exemplo, a oratória, a leitura em voz alta é usada para dizer de modo incisivo e reivindicatório o verso entre parênteses "(mas que nasce dele)", referindo-se ao povo.
No poema "O espelho do guarda-roupa", Gullar escreveu que "Um homem com um espelho / enterrado no corpo / na verdade não dorme: reflete / um voo". Não é este homem que o sujeito cancional criado por Moacyr Luz incorpora ao restituir às massas o "surdo" (instrumento e estado de ser) do poema? "A pureza desse amor [à festa] / Espalha espelhos pelo carnaval / E cada cara e corpo é desigual / Sabe o que é bom e o que é mau", canta Caetano Veloso em "Zera a reza", canção-vértice da dobra ético-estética entre Gullar, para quem "a arte existe porque a vida não basta", e Luz, criador do projeto Samba do Trabalhador, que acontece toda segunda-feira no Andaraí, na cidade do Rio de Janeiro.

***

(Moacyr Luz / Ferreira Gullar)

Façam a festa
cantem dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Martinho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
e espreitam.

30 setembro 2019

Gil-engendra em gil rouxinol / Gilberto misterioso


"Ouvi dizer já por duas vezes que o Guesa Errante será lido 50 anos depois; entristeci - decepção de quem escreve 50 anos antes", disse Sousândrade em 1877. De fato, só em 1964 com a primeira edição do livro Re visão de Sousândrade de Augusto e Haroldo de Campos a obra do poeta maranhense foi lida com merecida atenção crítica.
Joaquim de Sousa Andrade (1833-1902) é autor de Harpas Selvagens (1857), Guesa (1858-1888), Harpa de Ouro (1888/1889) e Novo Éden (1893). O Guesa é um poema narrativo dividido em 13 Cantos (12 cantos e 1 epílogo), dos quais permaneceram inacabados quatro cantos (VI, VII, XII e XIII); e tem estrutura épica (proposição, invocação, dedicatória e narração). No Canto I temos a invocação - "Eia, imaginação divina!" - e a proposição - "Infante adoração dobrando a crença", já que o livro é baseado nas narrativas sobre o culto solar dos indígenas muíscas da Colômbia: uma criança roubada dos pais é oferecida em sacrifício ao deus-sol quando completa 15 anos.
Sob a perspectiva do protagonista, podemos dizer que Sousândrade trabalha a temática do poeta como exilado, errante, a vagar. O estilo mesclado - vozes do poeta X vozes das personagens - condensa o tom épico/histórico: a descoberta das Américas, a civilização indígena, as guerras coloniais e suas consequências; e o tom individual: sentimentos e temores. O Guesa guarda e antecipa, portanto, o indígena ancestral – anti-herói, o oposto do "bom selvagem" - do Macunaíma marioandradino.
"Eu sou qual este lírio, triste, esquivo, / Como esta brisa que nos are erra", diz o protagonista ainda nos Andes, de onde parte. E assim começa a jornada. A intertextualidade e o hibridismo, os neologismos e as metáforas vertiginosas dão conta do périplo e da errância, transitoriedades, exílios, de quem não tem lugar na floresta amazônica e na América do Sul Inca, lugares paradisíacos antes da colonização. Atravessar a natureza devastada marca o corpo do texto e a alma do protagonista.
Para Affonso Ávila (ler O poeta e a consciência crítica), Sousândrade foi "autor marginalizado, em decorrência ao mesmo tempo da desatualização crítica que lhe foi contemporânea e do espírito acomodatício de nossa história da literatura" (p.48). Ávila destaca "o comportamento do artista diante da realidade de que emergem seus temas, as implicações de ordem social e vivencial que condicionam a sua atitude criadora, a linguagem e seus desdobramentos nos estratos semântico, sintático e sonoro" (p. 50).
"O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse necessária, a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual - nessa harmonia interna da criação que experimentamos no meio do oceano e dos desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influem do que pelas formosas curvas do horizonte. Ao esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da inteligência", escreveu Sousândrade na "Memorabilia" da edição norte-americana de o Guesa.
Daí a importância do livro dos irmãos Campos. Os autores realizam a interpretação dos aspectos macro e microestéticos da obra sousandradina, a fim de entender "o metro que menos canta" como uma deliberada antimusicalidade romântica. Contra a rima fácil, empenhado na "harmonia interna da criação que experimentamos no meio do oceano e dos desertos", Sousândrade faz dos efeitos melopaicos um gesto de "insurreição sonora". Para os autores, "a arte sonora sousandradina responde a um conceito aberto de musicalidade, que tanto pode incluir uma calculada alquimia de vogais e consoantes, num sentido de harmonização pré-simbolista , de 'poesia pura', como incorporar a dissonância e o contraste, o choque e a aspereza. É uma arte que não se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a explosão pelo sentimento do desacorde" (p. 91).
Como restituir na voz, no canto o engenho dessa escrita experimental, inclusive no que se refere à tipografia e ao uso da página? Como ler em voz alta as onomatopeias, aliterações, sibilações, assonâncias, sinalefas criadas por Sousândrade no seu texto-montagem polilíngue? Instigado por Augusto de Campos, em 1972, Caetano Veloso gravou o verso "Gil-engendra em gil-rouxinol" da estrofe 72 do Canto X, mais conhecido como o episódio do "Inferno de Wall Street". "A estrofe 72 é uma das mais herméticas do episódio, trazendo em seu bojo aquele misterioso 'Gil-engendra em gil-rouxinol'. À falta de qualquer explicação plausível, tive a ideia de enviá-la a Caetano Veloso, então no exílio em Londres, e assim nasceu a bela canção "Gilberto misterioso", com a qual homenageou seu famoso companheiro musical no cd Araçá azul" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia, p. 221).
Araçá azul foi o disco mais devolvido pelos compradores no Brasil. A "insurreição sonora", "o metro que menos canta", "a plenitude intelectual" serão recebidos pelos ouvintes de canção popular mais como problemas técnicos de gravação e menos como pesquisa e estranhamento estético. "As experiências são com sons orgânicos (corporais, funcionais) tendendo para o inorgânico (a invenção do novo, o pensamento), num processo que o aproxima de Artaud e de Oswald, e que será melhor metabolizado em Joia, mas que aqui [em Araçá azul] tem um tom erótico e heroico, o sonar que penetra, som-mar = sexo", anota Luís Carlos de Morais Junior (ler Crisólogo, p. 102).
Se ao dar o título de "Gilberto misterioso" à quarta faixa do disco Caetano "desmonta" o mistério do Gil presente no poema de Sousândrade, ao mesmo tempo o cancionista investe na beleza do mistério que faz de Gilberto Gil o grande artista que é. A canção começa com o acorde ao violão (Sol maior) e uma voz em falsete passional estendendo à exaustão do limite do fôlego o /o/ de "sol". "Sol" que, lembremos, está no verso anterior ao verso cantando por Caetano: "Chuva e sol, / Gil-engendra em gil rouxinol". Assim, o "sol" aproveitado serve de enjambement no qual Caetano insere Gilberto na "linha evolutiva" da canção popular brasileira.
A voz que canta (solfeja) a palavra "sol" realiza um portamento até chegar à palavra/nota "ré", acompanhada por brusco ataque do acorde Ré com sétima e nona. Segue-se um arpejo e o retorno de Sol. Nessa variação da emissão do som /o/ podemos ouvir, inclusive o Om (ou Aum) mantra mais importante do hinduísmo. Feita esta afinação fonética e musical, Caetano passa a cantar o verso assim registrado no encarte "Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol". A repetição do verso remete-nos à circularidade sonora mântrica: o som que engendra o som, autofagicamente: repetições da fricativa palatal sonora e da fricativa palatal surda. A busca do êxtase místico, os limites do sujeito são tateados (dedos e voz) entre uma nota e outra.
Na primeira parte da canção, o verso é cantado doze vezes, em seis partes. "Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol / Gil em Gendra / Em Gil Rouxinol" tenciona blues e baião e essa harmonização tende a manter a dúvida, o mistério, sem expectativa de resolução. Há um breve silêncio. Na segunda parte há uma aceleração do ritmo, marcado pelo violão e percussão. O verso é cantado quatorze vezes numa performance vocal empenhado na maquinaria a vapor do engenho. Segue-se o mesmo cantar dobrado (e emparelhado) do verso. A voz e o violão voltam a ser "afinados". Entre um vibrato e um desafino são interpretados trechos de músicas, fragmentos (grunhidos) de palavras que não chegam a ser ditas, como na canção anterior "De conversa em conversa". É o aspecto orgânico do disco em cena. Começa o terceiro movimento. O piano arpeja o acorde Dó com sétima, o verso volta a ser cantado, mas o emparelhamento agora é "respondido" por assovios. Tudo caminha para a palavra final "Gil".
Fica evidente a tentativa de mimetizar o questionamento de Sousândrade sobre os limites do metro através do procedimento de colocar em xeque os sistemas temperado e tonal da música ocidental. O Gil-Rouxinol é a carnação disso. Se para Affonso Ávila, "Sousândrade chega a uma intuição realmente notável do problema da assimilação e redução de formas, tão atual e relevante para a nossa arte de país novo, ao concluir que, dentre os estilos estrangeiros que enumera, uns são repugnantes e outros, se não o são, modificam-se à natureza americana" (p. 54); em Caetano Veloso o sistema metalinguístico (texto e melodia) é experimentado e desestabilizado com o objetivo de cantar Gil: a força estabilizadora (sonoro vs surdo).
Lembremos: "Rouxinol" é canção de Gilberto Gil e Jorge Mautner. Diz a letra: "Joguei no céu o meu anzol / Pra pescar o sol / Mas tudo que eu pesquei / Foi um rouxinol". A rima "sol" e "rouxinol" parecem ser os emblemas que Caetano toma para si em "Gilberto misterioso". O trecho "Levei-o [o rouxinol] para casa / Tratei da sua asa / Ele ficou bom / Fez até um som / Ling, ling, leng / Ling, ling, leng, ling // Cantando um rock com um toque diferente / Dizendo que era um rock do oriente pra mim" também. Já que é a procura (o teste, o ensaio) do "toque diferente" o que move o engenho de Caetano; e de Gil.
Se a poesia verbivocovisual de Sousândrade investe na elaboração intelectual e linguística, a canção de Caetano Veloso forja a improvisação para elogiar o logos cantado pelo ser canoro: Gilberto Gil, digo, o rouxinol a "ave imortal" da "Ode to a Nightingale" de Keats (1819): metáfora dos poetas. Dito de outro modo, da impossibilidade da representação inventa-se, via fragmentos, multipluralismo idiomático, urros, balbucios, cacofonias e inversões, o sujeito americano na e pela linguagem. Autenticidade pessoal (montagem) e lucidez da criação artística (técnica de colagem) unem Sousândrade a Caetano Veloso. Gilberto Gil é o vértice deste triângulo amoroso da investigação de uma forma original da experiência física do mundo: ser é fazer.
"Tem a nação vaidosa, que enlevada / Dentre os espelhos cem outras nações, / De todas toma os gestos – e alienada / Perde o próprio equilíbrio das razões", anota Sousândrade no corpo do Guesa. Ora "rouxinol", ora "rouxínol" canta Caetano. O erro da prosódia é assumido como traço distintivo. Como vimos com Augusto de Campos, "a arte sonora sousandradina (...) é uma arte que não se volta apenas para o acorde, mas se deixa torturar até a ruptura ou a explosão pelo sentimento do desacorde".
O próprio Augusto de Campos oraliza o episódio do "Inferno de Wall Street" no disco de Cid Campos Música para espetáculos de dança (2015). O disco é dividido em duas partes. A primeira é esta de Augusto e foi realizada para o balé de Elianae Sofia Cavalcante (2012). A segunda chamada Profetas em movimento tem oralizações de o Guesa por Décio Pignatari, Arnaldo Antunes, Walter Silveira, José Mindlin, Lauro Moreira, Ricardo Araújo e Danilo Lôbo para coreografia de Soraia Silva (1988). Cid tem sido o responsável por compor e interpretar músicas ligadas à poesia experimental. Os discos Poesia é risco, Ouvindo Oswald, Emily são alguns exemplos de sua verve.
Augusto lê acompanhado de camadas sonoras sobrepostas - pós-utópicas - que mimetizam o tom bíblico-apocalítico montado no texto. E chega à estrofe "Por sobre o fraco a morte esvoaça... / Chicago em chama, em chama Boston, / De amor Hell-Gate é esta frol... / Que John Caracol, / Chuva e sol, / Gil-engendra em gil rouxinol... / Civilização... ham!... Court-hall!". Sobre o trecho, Augusto anota "inclino-me a acreditar que o vocábulo 'gil', que também aparece no composto 'gil-Jam', na estrofe 123, referido ao jornalista James Gordon Bennet, tem seu significado ligado à ideia de astúcia, esperteza, como consignam alguns raros dicionários" (ler Poesia antipoesia antropofagia & cia, p. 223).
"Brasil, é braseiro de rosas", escreveu Sousândrade. "Um disco para entendidos", escreveu Caetano Veloso no encarte do disco Araçá Azul. "Entendido" como gíria para homossexual; "entendido" como quem sabe. E quem há de entender sem se desentender na trama sousandradina? "Ir, ir indo", "Eu vou, por que não?", "Destino eu faço não peço / Tenho direito ao avesso" são versos de Caetano que afirmam a errância do Guesa de Sousândrade. Há um cruzamento das dramatis personae, "a de herói romântico (...) e a do herói indígena", segundo Luiza Lobo (ler Épica e modernidade em Sousândrade, p. 12). Por sua vez, há a justaposição da voz do romântico exilado - "Viola, meu bem" - e da voz apocalíptica que diagostica a degradação - "Épico". É nessa encruzilhada, nestes estados de amor à linguagem, de valorização do mistério americano, que Sousândrade (Guesa) e Caetano (Araçá azul) se encontram e nos convidam à reflexão da nação.

***

72 (W. CHILDS, A.M. elegiando sobre o filho de SARAH STEVENS:)

— Por sobre o fraco a morte esvoaça...
Chicago em chama, em chama Boston,
De amor Hell-Gate é esta frol...
Que John Caracol,
Chuva e sol,
Gil-engendra em gil rouxinol...
Civilização... ham!... Court-hall!

15 setembro 2019

O meu desejo


No livro Um teto todo seu Virginia Woolf chamou atenção para a urgência de compreender a mudança - "de maior importância do que as Cruzadas ou as Guerras das Rosas" - promovida pela emergência da mulher que escreve (da escrita de autoria feminina) no século XVIII inglês. 
No nosso caso, o que pensar do exemplo da maranhense Maria Firmina dos Reis (1825–1917)? Escritora, negra, com o livro Úrsula (1859) Maria antecedeu o Navio Negreiro (1869) de Castro Alves na discussão antiescravista no Brasil. Além de tematizar a opressão imposta às mulheres. Mas, diferentemente do poeta baiano, só recentemente a professora, romancista, poeta, cronista e jornalista Maria Firmina dos Reis tem recebido o merecido destaque da crítica e das editoras. Reconhecimento advindo muito por causa do trabalho de pesquisadores como os do Grupo Literafro (UFMG), entre outros. No centenário de sua morte, em 2017, Maria foi homenageada no Mulherio das Letras, movimento liderado por Maria Valéria Rezende e Susana Ventura e que revisita e valoriza escritoras silenciadas pela historiografia literária.
Autodidata, Maria Firmina lia e escrevia em Francês, recebeu o título de mestra régia e fundou a primeira escola mista e gratuita do país, causando desconforto na sociedade de Maçarico (MA). A escola foi fechada alguns anos depois e isso dá a proporção do contexto da vida e da obra de Maria Firmina, autora que ousou apresentar em pleno Romantismo brasileiro um "ecrã para a apreensão do sujeito, da sua vida e das condições de produção" (ler Crítica da razão negra de Achille Mbembe). E fez isso utilizando-se das regras de composição nacionalistas da época.
Tomemos como exemplos, além do já citado Úrsula, o conto "A escrava" (1887), o conto indianista "Gupeva" (1861) e o livro de poemas Cantos à beira-mar (1871). Neste livro - publicado pela Typografia do Paiz - Maria Firmina dedica à memória da mãe cinquenta e seis poesias. A praia é o tempo-espaço de meditação e melancolia, alegrias e cismas. "Aqui minh'alma expande-se, e de amor / Eu sinto transportado o peito meu; / Aqui murmura o vento apaixonado, / Ali sobre uma rocha o mar gemeu. // (...) // Quanta doce poesia, que me inspira / O mago encanto destas praias nuas! / Esta brisa, que afaga os meus cabelos, / Semelha o acento dessas frases tuas", diz em "Uma tarde no Cuman". E convida "Vem comigo gozar destas delícias, / Deste amor, que me inspira poesia; / Vem provar-me a ternura de tu'alma, / Ao som desta poética harmonia".
Assim como em Castro Alves ("Como Agar sofrendo tanto, / Que nem o leite de pranto / Têm que dar para Ismael"), Maria Firmina dos Reis usa o conhecimento bíblico para sensibilizar: "Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz, / Raio infinito de esplendente luz", diz no seu poema "O meu desejo". Afinal, como dizer-se cristão, reconhecer o poder do nazareno torturado e morto e mesmo assim fechar os olhos para o horror da escravidão?
Por ocasião do Mulherio das Letras, a cancionista Socorro Lira musicou poemas de Maria Firmina dos Reis. O projeto se desenvolveu em disco com o mesmo nome do livro Cantos à beira-mar (2019) e tem direção e arranjos de Jorge Ribas. Dentre os dez poemas cantados, destaco "O meu desejo". O poema é composto de nove partes: oito sextilhas e uma nona parte composta de uma quadra (em que o eu-lírico se apresenta) mais um terceto (em que o desejo é pronunciado). 
Depois de declamar (falar, oralizar) todo "O meu desejo" Socorro Lira canta o nono trecho: "Eu não te ordeno, te peço, / Não é querer, é desejo; / São estes meus votos - sim. / Nem outra cousa eu almejo. // E que mais posso eu querer? / Ver-te Camões, Dante ou Milton, / Ver-te poeta - e morrer". Para o canto, Socorro altera os versos "são estes sim os meus votos", "te ver Camões, Dante ou Milton" e "te ver poeta - e morrer". Estas alterações em direção à prosódia cotidiana da língua falada aproximam o desejo do sujeito cancional do ouvinte. "Tudo que a letra desconecta da enunciação, a melodia se encarrega de reconectar", anota o professor Luiz Tatit (ler "Ilusão enunciativa da canção").
Musicalmente, Socorro Lira investe "do Espanhol as cantilenas / requebradas de langor" sugeridas pelo Navio Negreiro de Castro Alves; e no ritmo das redondilhas do texto de Maria. Texto que, por isso, pelo uso das regras métricas, se insere no uso da tradição assentada por Camões, Dante, Milton. Há uma nostalgia da palavra encarnada em cada alongamento da última sílaba poética cantada por Socorro, dando conta de figurativizar o sujeito cancional à espera de ver o desejo - dito na letra - realizado.
A primeira estrofe do poema releva a corda merencória utilizada como mote sonoro por Socorro Lira: "Na hora em que vibrou a mais sensível / Corda de tu'alma - a da saudade, / Deus mandou-te, poeta, um alaúde, / E disse: Canta amor na soledade. / Escuta a voz do céu, - eia, cantor, / Desfere um canto de infinito amor". O poeta é o alaúde que vibra a alma da saudade, a voz do céu.
Ao dobrar a própria voz no canto do verso "e que mais posso eu querer?", Socorro Lira tanto une o desejo de Maria Firmina ao seu, quanto reconhece Maria Firmina como poeta, por vê-la Camões, Dante, Milton. Ou seja, no canto de Socorro Lira, Maria Firmina dos Reis ativa a voz aédica que - transgredindo a tradição e o império da escrita - canta sua escrevivência, reconstrói a imagem de si. Por exemplo, em Úrsula, sem fabular a mulher negra escravizada, Maria Firmina problematiza as regras românticas de representação e autorrepresentação.
Vale a pena destacar o testemunho de Mãe Susana no livro: "Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes de nossas matas, que se levam para recreios dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos".
"No centro da épica, existe uma questão de voz. Homero não é simplesmente um contador de histórias. Recebendo-as da Musa, ele as coloca na voz humana e no canto", escreve Adriana Cavarero (ler Vozes plurais). Não é isso que Maria Firmina engendra ao fazer do epos de sua ancestralidade matéria para restituir a phoné (a voz de Mãe Susana) desta mesma ancestralidade (agora cantada na nação em formação)? O relato de Mãe Susana diz aquilo que o albatroz de Castro Alves não conseguiu dizer, por não ter estado nos porões. "Canta, poeta, a liberdade, - canta. / Que fora o mundo sem fanal tão grato... / Anjo baixado da celeste altura, / Que espanca as trevas deste mundo ingrato. / Oh! sim, poeta, liberdade, e glória / Toma por timbre, e viverás na história", diz o eu-lírico de "O meu desejo".
Aliás, tendo sido o livro Canto à beira-mar lançado após o Navio negreiro de Castro Alves, poderíamos pensar que Maria Firmina estaria exaltando os versos do poeta baiano, mas a dedicatória "a um jovem poeta guimaraense" não deixa dúvida sobre o endereçamento do eu-lírico: "E a liberdade, - oh! poeta, - canta, / Que fora o mundo a continuar nas trevas? / Sem ela as letras não teriam vida, / menos seriam que no chão as relvas: / Toma por timbre liberdade, e glória, / Teu nome um dia viverá na história".
Os versos acima registram a esperança que reverberia no "Hino à liberdade dos escravos", composição com letra e música de Maria Firmina dos Reis de 1888 - "Salve o sol que raiou hoje, / difundindo a liberdade, // Quebrou-se enfim a cadeia / da nefasta escravidão! / Aqueles que antes oprimias, / Hoje terás como irmão". Infelizmente, a história mostrou que o desejo - movido pelo contexto da Lei Imperial n.º 3.353, sancionada em 13 de maio de 1888 - não se realizou. O silenciamento perpetrado sobre a obra de Maria Firmina e de tantos intelectuais e artistas negros no Brasil é exemplo disso.
Cantar um poema é ler, interpretar, reanimar o logos da voz do poema. Voz que guarda o tempo histórico: a memória. De que modo cancionistas dos séculos XX/XXI estão lendo poemas de séculos anteriores e repensando o cânone literário? Neste caso, ao cantar os versos de Maria Firmina dos Reis, Socorro Lira ressignifica e ativa o desejo. Isto é, toma por timbre a liberdade e recoloca o nome Maria na história.


***

O meu desejo
(Maria Firmina dos Reis / Socorro Lira)

                         A um jovem poeta guimaraense

Na hora em que vibrou a mais sensível
Corda de tu'alma - a da saudade,
Deus mandou-te, poeta, um alaúde,
E disse: Canta amor na soledade.
Escuta a voz do céu, - eia, cantor,
Desfere um canto de infinito amor.

Canta os extremos duma mãe querida,
Que te idolatra, que te adora tanto!
Canta das meigas, das gentis irmãs,
O ledo riso de celeste encanto;
E ao velho pai, que tanto amor te deu,
Grato oferece-lhe o alaúde teu.

E a liberdade, - oh! poeta, - canta,
Que fora o mundo a continuar nas trevas?
Sem ela as letras não teriam vida,
menos seriam que no chão as relvas:
Toma por timbre liberdade, e glória,
Teu nome um dia viverá na história.

Canta, poeta, no alaúde teu,
Ternos suspiros da chorosa amante;
Canta teu berço de saudade infinda,
Funda lembrança de quem está distante:
Afina as cordas de gentis primores,
Dá-nos teus cantos trescalando odores.

Canta do exílio com melífluo acento,
Como Davi a recordar saudade;
Embora ao riso se misture o pranto;
Embora gemas em cruel soidade...
Canta, poeta, - teu cantar assim,
Há de ser belo enlevador enfim.

Nos teus harpejos juvenil poeta,
Canta as grandezas que se encerram em Deus,
Do sol o disco, - a merencória lua,
Mimosos astros a fulgir nos céus;
Canta o Cordeiro, que gemeu na Cruz,
Raio infinito de esplendente luz.

Canta, poeta, teu cantar singelo,
meigo, sereno com um riso d'anjos;
Canta a natura, a primavera, as flores,
Canta a mulher a semelhar arcanjos.
Que Deus envia à desolada terra,
Bálsamo santo, que em seu seio encerra.

Canta, poeta, a liberdade, - canta.
Que fora o mundo sem fanal tão grato...
Anjo baixado da celeste altura,
Que espanca as trevas deste mundo ingrato.
Oh! sim, poeta, liberdade, e glória
Toma por timbre, e viverás na história.

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Eu não te ordeno, te peço,
Não é querer, é desejo;
São estes meus votos - sim.
Nem outra cousa eu almejo.

E que mais posso eu querer?
Ver-te Camões, Dante ou Milton,
Ver-te poeta - e morrer.