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30 abril 2020

Dor elegante


Letra de canção e poema de livro são duas formas de exploração poética da palavra. Uma pede a voz, a outra pede o papel. A mudança de suporte é fundamental para receber e pensar as especificidades dessas linguagens tão convergentes. Dizer que letra de canção é (ou não é) poema, portanto, não deve servir nem de justificativa para quem ainda defende que o suporte elementar do poema seja o papel, esquecendo-se que a voz, a palavra cantada está na gênese da poesia, aliás, estes, em geral, não compreenderam (não aceitam) a revolução que as experimentações vanguardistas engendraram no poema: no Brasil, destaque-se o projeto verbivocovisual dos poetas concretos; nem de subterfúgio para "elevar" o status dos letristas ao hall dos poetas eleitos por parte da elite cultural. Os dois movimentos tendem a obliterar a incompetência teórico-crítica de quem não sabe, por preguiça, preconceito, ou idiossincrasia maior, lidar com a natureza múltipla da canção popular.
Neste elitista jogo de valor entre letra de canção e poema de livro, entre música popular e literatura, há quem diga que o poema perdeu para a canção grande parte do espaço existencial que ocupava no imaginário da sociedade, na história e no cotidiano das pessoas. E que esta transferência ocorrera por volta dos anos 1960, ou seja, durante a ascensão da censura imposta pela ditadura militar no Brasil em choque com as lutas identitárias na Europa e nos EUA.
De fato, muitos poetas que naquele momento - e nos anos 1970 e 80 - usaram a voz e o corpo como suporte do poético, até porque a publicação de poemas, este gênero subversivo por tradição, estava sob a mira dos censores, anos depois renderam-se a "legitimidade" que o livro impresso ainda exerce. Mas há que se perguntar quem eram aquelas pessoas cujo espaço existencial era ocupado por poemas, naquele tempo idílico pré-1960. "Eles não vão entender o que são riscos / E nem que nossos livros de história foram discos", diria Emicida em "Ubuntu Fristili". Como todo signo é ideológico (BAKHTIN, In: Problemas da poética em Dostoiévski, 1997), toda valoração estética reflete a ética das estruturas sociais e históricas. E a questão do privilégio do acesso aos livros de poemas também importa para pensar a distinção entre letra de canção e poema de livro.
Em Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin, o professor Carlos Alberto Faraco comenta bem o uso que Bakhtin faz do termo "ideologia": "A palavra ideologia é usada, em geral, para designar o universo dos produtos do 'espírito' humano, aquilo que algumas vezes é chamado por outros autores de cultura imaterial ou produção espiritual (talvez como herança de um pensamento idealista); e, igualmente, de formas da consciência social (num vocabulário de sabor mais materialista). Ideologia é o nome que o Círculo [de Bakhtin] costuma dar, então, para o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a política, ou seja, todas as manifestações superestruturais (para usar uma certa terminologia marxista)", (FARACO, 2003, p. 46).
Letra de canção e poema de livro são unidades de vários elementos simultâneos e inseparáveis, entre eles, forma/conteúdo, som/sentido, significante/significado, entoação/ideologia, no caso da canção, e papel/ideologia, no caso do poema impresso. Isso se deixarmos de lado, por enquanto, a verbivocovisualidade concretista e a verbivocoperformance tropicalista. Porque quero chamar atenção para a defesa de que a melodia, o ritmo, a performance são elementos ideológicos tanto quanto a palavra estática, impressa. Letra de canção e poema de livro são seres orgânicos e autônomos, ao mesmo tempo em que são mistos. O significado dependerá sempre de uma série de fatores intra e extrapoéticos. Dito de outro modo, o significante literário, tão importante à elite cultural, subsiste no conjunto encapsulado pela voz, em um; e pelo impresso, no outro.
Quem canta precisa encontrar a entonação eficaz, justa, adequada para dizer (voz) o que diz (texto); assim como quem escreve, distribui as palavras na página, trabalha sobre uma estrutura. A recepção desses trabalhos de arte não é passiva. Tanto o ouvinte quanto o leitor veem-se instados a agir junto com o eu poético. Ou não. E isso também depende de uma série de fatores ideológicos e de formação do ouvinte e do leitor.
Substância e expressão ideológicas estão na estrutura do dito e do modo de dizer; do escrito e do modo de escrever. Métricas, rimas, dores, alegrias são matérias formais e conteudísticas da letra de canção e do poema de livro. Mesmo quando o texto da letra de canção é criada antes da melodia, esse texto tem um ritmo que deverá ser acionado e potencializado na voz do cancionista. A expressão da entoação embrionária das palavras do textos é exatamente o trabalho do cancionista. Assim como a leitura "silenciosa" de um poema de livro aciona mentalmente a melodia das palavras, base para a compreensão do ritmo engendrado pelo poeta.
Embora esteja ancorada da entonação embrionária das palavras, a adequação entre letra e voz não é exata, o que eliminaria as várias interpretações possíveis dadas a um "mesmo" texto. Ao contrário do que comumente se pensa, a letra de canção não está aprisionada à melodia; a cada interpretação é possível violentar a sintaxe através dos usos da respiração, da quebra da correlação semântica/fonologia em busca de (uma nova) intenção, da (renovada) expressão não-vulgar, costumeira das palavras. É a interpretação singular e diversa o que torna o cancionista coautor, parceiro de quem escreveu o texto, por exemplo.
Talvez seja este medo da coautoria, o medo de deixar de ser o único eleito das Musas, o que move quem se recente do poema ter "perdido espaço" para a canção. Para estes é absolutamente impensável a parceria num poema. Como se as Musas não tiveram mudado através dos tempos; como se a relação entre musa e poeta estivesse intacta desde um tempo mítico em que o poema carregava toda a subjetividade do poeta, impondo a autoria. Ou ainda como se, por ter sido feita sob encomenda, muitas vezes após a criação da melodia instrumental, uma letra de canção não carregasse a subjetividade do letrista. "Minha amiga / indecisa / lida com coisas / semifusas // usando confusas / mesmo as exatas / medusas / se transmudam / em musas", escreveu Paulo Leminski (Caprichos & relaxos, 1983); e "já fui coisa / escrita na lousa / hoje sem musa / apenas meu nome / escrito na blusa" (idem), tematizando estas novas relações musais.
Não bastassem estes dois exemplos de que a obra de Leminski não se limita ao lirismo narcísico e à sociabilidade do universo do consumo, temos inúmeros versos, poemas, letras do autor que dão conta dos mais variados temas da humanidade. Essa maturidade seria resultado do trânsito de Leminski entre a letra de canção e o poema de livro, diriam alguns. Mas não poderia ser exatamente o contrário? A maturidade ética e estética do autor não estaria no estímulo necessário à compreensão diversa da exploração poética da palavra? Leminski estava interessado nas novas formas de escrita e escuta de poesia.
No texto "Na cadeia de sons da vida: literatura e música popular na obra de Paulo Leminski", Marcelo Sandmann anota que Leminski "confirma toda uma tendência geral da época, de ruptura de limites entre a arte culta e a arte popular e de massa, entre a poesia informada e a letra de canção, entre a experimentação formal e o desejo de comunicação. Produz sua obra a partir de certas coordenadas, que delimitam um campo de boa tensão interna, coordenadas que vão da Poesia Concreta, passam pela Contracultura internacional (sobretudo na sua vertente anglo-americana: beat generation, hippies, rock) e chegam à expressão dessa mesma Contracultura em termos brasileiros, com o Tropicalismo e o Pós-tropicalismo. Nesse campo, a música popular surge como gênero da maior importância, seja como objeto de fruição e referência estéticas, seja como lugar de atuação criativa" (p. 202, In: A pau a pedra a fogo a pique: dez estudos sobre a obra de Paulo Leminski, 2010).
Na esteira da dicção de Catulo da Paixão Cearense, Orestes Barbosa, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Wally Salomão, Arnaldo Antunes, entre outros, Paulo Leminski tensionou linguagem estandardizada, engajamento ético e vida urbano-industrial. Daí que limitar-se ao gosto concebido pela Academia grafocêntrica não faz mais sentido. Na introdução do livro Caprichos & relaxos, Leminski escrevera: "Aqui, poemas para lerem, em silêncio, / o olho, o coração e a inteligência. / Poemas para dizer, em voz alta. / Poemas, letras, lyrics, para cantar. / Quais, quais, é com você, parceiro". O projeto é claro: os modos de usar a potência da palavra não está mais dado a priori pelo poeta.
Neste jogo entre expressão e comunicação, Leminski aprofunda e embaralha o que João Cabral anotara na orelha do livro Duas águas: "de um lado, poemas para serem lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo aprofundamento temático quase sempre concentrado exige mais do que leitura, releitura; de outro lado, poemas para auditório, numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos" (1956).
É sem dúvida um desses poemas para ser relido que Itamar Assumpção decide cantar. Assinando a coautoria da obra com Leminski, Itamar dá à canção o título de "Dor elegante" (Pretobrás, 1998). O poema está publicado sem título no livro póstumo La vie en close (1991). Ao adjetivar a dor de "elegante", e não "o homem com uma dor", como sugere o poema impresso, Itamar desloca o sentido, abre o texto à plussignificação. Tanto ao ler o poema, quanto ao ouvir a canção somos inclinados a refletir dançando com um sujeito cancional que sabe usar o "assim" - "caminha assim de lado" - para criar intimidade com quem ouve e presentificar-se no instante-já do dizer. Do mesmo modo como a dor que faz o homem ter elegância. "Não me toquem nessa dor", diz o sujeito poemático e cancional, afirmando a intimidade com a dor e com quem ouve, outro passível de dor.
À passionalização proposta pelo poema, Itamar justapõe um acompanhamento de cordas, um quase blues, um quase reggae. Depois da introdução instrumental, Itamar fala: "Leminski disse" e divide os vocais da canção, do poema cantado com Zélia Duncan. Assim, como o eu poemático que fala para outrem - "não me toquem nesta dor" -, o sujeito da canção precisa compartilhar a experiência e o aviso. Assumpção faz a ponta entre um e outro quando na segunda vez em que o poema é cantado introduz "Leminski disse e Zélia vai repetir pra vocês". Neste segundo momento da canção Duncan declama parte do texto, o acompanhamento continua o mesmo e alterna-se palavra cantada com palavra falada. Ecos e coros "por favor" soam aqui e ali para reforçar a partilha do sensível. "Leminski disse e a Zélia repete aqui pra vocês", diz Itamar presentificando a dor: o "aqui" da voz do cancionista almagama-se semanticamente ao "assim" do poema.
Os versos leminskianos "carrega o peso da dor / como se portasse medalhas / uma coroa um milhão de dólares / ou coisa que os valha" e confirmam o que Fábio Vieira (2010) anota em Oriente ocidente através - a melofanologopaica poesia de Paulo Leminski: "Através da concisão, da justaposição de imagens e da sintaxe atrativa de opostos, a poesia de Leminski faz crítica à visão linear dos fatos. O recolhimento do desprezível, através de um humor contido, revela muitas vezes uma forma de ver coisas pela ótica do sensível" (pág. 118).
Esses mesmos versos dialogam com os versos da canção "Luz do sol", de Caetano Veloso, gravada por Gal Costa em Minha voz (1982): "Marcha o homem sobre o chão / Leva no coração uma ferida acesa / Dono do sim e do não / Diante da visão da infinita beleza / Finda por ferir com a mão essa delicadeza / A coisa mais querida, a glória da vida". Eis a dor elegante compreendida por Itamar? O sofrer promotor do amadurecimento como última obra do homem? A elegância é resultado da compreensão interna e corporal da dor de um corpo calejado da existência?
Caetano e Leminski, cada um a seu modo, identificados com o desbunde, incorporam em suas obras reflexões filosóficas, épicas e trágicas. Um movimento característico de uma geração que diz "sim" à vida, apesar do sofrimento. "Existirmos, a que será que se destina?", pergunta Caetano em "Cajuína". Os dois são bons exemplos de letristas que no Brasil não se restringem à recepção fácil, ao mero entretenimento. Ambos tensionam subjetividade (eu, público específico) com cultura de massa (canção para tocar no rádio). "Um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que eu fabrico", dissera Oswald de Andrade. Caetano e Paulo sabem que distinguir quem deve ou não comer o "biscoito fino" é gesto classicista, repressor, cafona.
Itamar cria uma melodia que não dilui o pensamento, ao contrário. Ele compreende que o eu do poema está em trânsito, caminhando "de lado / como se chegando atrasado andasse mais adiante". Por isso o blues, o reggae para figurativizar o movimento (o fazer) do eu. Itamar incorpora a sinestesia sugerida no poema: o ritmo do caminhar, o diálogo interno, a experiência partilhada, o humano. Questões que não se esgotam na primeira leitura do poema, nem na primeira audição da canção. Itamar prova que o poema não é um texto autônomo, depende do leitor, depende das condições de leitura (mesmo silenciosa) para ter e fazer sentido. O homem do poema é um e é todos.
No texto "No corpo da voz: a poesia-música de Paulo Leminski", Ricardo Aleixo anota que "a canção popular, o processo que leva à sua criação, sobretudo quando esta envolve parceira, parece atrair Leminski pelo que contém de convite à alteridade. (...) Músico ou 'meio músico', Leminski quer que seus textos - transformados ou não em canções - transcendam a mudez da página" (pág. 290, In: A linha que nunca termina, 2004). Para Aleixo, "por mais que 'especialistas', 'letristas', literatos e bicões entreguem-se a discussões bizantinas sobre as diferenças qualitativas entre poesia e música, é fato inquestionável que no Brasil a canção popular atingiu um nível de excelência raro, mesmo quando confrontada com a de outros contextos" (pág. 292).
Depois desta versão de Itamar Assumpção e Zélia Duncan (1998), a canção "Dor elegante" já foi cantada por Edvaldo Santana (Edvaldo Santana, 2000), Zélia Duncan e Naná Vasconcellos (Pré-pós-tudo-bossa-band, 2005), Estrela Leminski (Leminskanções, 2014) e Chico César (Aos vivos agora, 2012). "Ver / é dor / ouvir / é dor / ter / é dor / perder / é dor // só doer / não é dor / delícia / de experimentar", escreveu Paulo Leminski em Caprichos & relaxos. "Viver vai ser a nossa última obra", parodiou Itamar Assumpção parceiro de Leminski.
***
Dor elegante
(Paulo Leminski)

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Como se chegasse atrasado
Andasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios édens analgésicos
Não me toquem nessa dor
Ela é tudo que me sobra
Sofrer vai ser minha última obra.

2 comentários:

fatimorj@gmail.com disse...

Leonardo, revisitar Leminski através de sua abordagem tão apurada e sensível foi um respiro, neste momento, em que estamos imersos na dor das perdas, da indiferença, da falta de sentido, mas sem conseguir caminhar com elegância Leminski era o eleito das Musas, flertava com todas elas: as clássicas, as românticas, as simbolistas, as modernistas, as concretistas, as tropicalistas, mas não foi fiel a nenhuma delas! O compromisso dele era com a plurissignificação dos signos. Leminski era uma espécie de encantador das palavras, mas como você bem observou, não as queria presas no papel, na página, no livro. O poeta de Curitiba queria a poesia solta nas ruas, enfeitando os muros, os guardanapos dos bares que frequentava, as cartas que escrevia aos amigos, circulando de boca em boca ou ganhando ritmo e melodia nas cordas de um violão ou de uma guitarra. Era um artista de múltiplas habilidades que os Deuses ou quem sabe, as Musas, levaram cedo de nosso convívio. Paulo Leminski, o ex-estranho, o artista dos ensaios e anseios crípticos.

fatimorj@gmail.com disse...

O Unknown do comentário é a Fátima Oliveira.