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28 junho 2013

Povo novo



O que caracteriza uma "canção de protesto" é a mirada politizada em atenção aos apelos contextuais externos: políticos, sociais, culturais. Nela a experiência individual do sujeito da canção se identifica de forma potencializada a mais não poder com o que a sociedade quer no momento. E assim a especificação do indivíduo adquire participação no/com o universal. E vice-versa.
Dito isso, penso que a "canção de protesto" serve para mobilizar as multidões e não as massas. Para distinguir uma categoria da outra ("multidão" versus "massa"), evoco aqui a diferenciação básica apontada por Michael Hardt e Antonio Negri já nas primeiras páginas do livro Multidão (2005): "A essência das massas é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas. Todas as cores da população reduzem-se ao cinza. Essas massas só são capazes de mover-se em uníssono porque constituem um conglomerado indistinto e uniforme. Na multidão, as diferenças sociais mantêm-se diferentes, a multidão é multicolorida. Desse modo, o desafio apresentado pelo conceito de multidão consiste em fazer com que uma multiplicidade social seja capaz de se comunicar e agir em comum, ao mesmo tempo em que se mantém internamente diferença" (p. 13).
A "canção de protesto" vista por essa perspectiva, já que ela pode ser analisada a partir de outros aspectos, daí porque uso a expressão "canção de protesto" entre aspas, ou seja, para marcar um modo de uso, entre outros, é fundamental em momentos de "crise da representação". Ao preservar as especificidades micro-coletivas internas à multidão, a "canção de protesto" dá vigor à diversidade macro-coletiva.
Dito de outro modo, o imediatismo contextual – que parece ser a gênese e a tônica da "canção de protesto" – não pode nivelar, reduzir, "tornar cinza" a multiplicidade, a polifonia dos apelos contextuais. O sujeito da "canção de protesto", ao ser cúmplice dos ouvintes múltiplos, plurais, diversos, precisa não se opor às vibrações da palheta de cores que lhe orienta, mas autenticar a unimultiplicidade. Por isso, nesse tipo de "canção de protesto", em que a canção é crítica política, não cabem palavras-de-ordem generalizantes, tais como: "o gigante acordou", "vem pra rua", "chega", "viva a revolução".
Vejamos o exemplo de "Povo novo", de Tom Zé e Marcelo Segreto, canção feita ao calor das manifestações que tomam as ruas das cidades do Brasil neste junho de 2013. Atento ao que grita a menina e o menino, o querer do sujeito da canção está em "gritar na rua / próxima esquina". "A minha dor está na rua / Ainda crua / Em ato um tanto beato, mas / Calar a boca, nunca mais! / O povo novo quer muito mais / Do que desfile pela paz / Mas / Quer muito mais", canta Tom Zé acompanhado de seu "violão de guerra".
O sujeito da canção sabe que sua voz representa a maximização dos protestos de lutas sociais que atravessam o país desde sempre. Portanto, para ele, "o gigante não acordou", pois sempre esteve vigilante: "A minha dor está na rua / Ainda crua", diz. O sujeito criado por Tom Zé sabe que as ruas estão franqueadas, e alerta: "Olha menino, que a direita / Já se azeita, / Querendo entrar na receita, mas / De gororoba, nunca mais".
Com a mesma verve de quem escreveu: "O ar que cada geração respira, em certa idade, é a REBELDIA"; questionando: "Ditadura, democracia, parlamentarismo, que nome daremos à nossa escravidão comum?" (O Estado de São Paulo, 07/11/1987); Tom Zé canta: "Já me deu azia, me deu gastura / Essa politicaradura / Dura, / Que rapadura!".
Tom Zé capta o "lixo lógico" armazenado no córtex das vozes das ruas, enquanto os jornalões investem na fetichização e encaminhamento conservador como seus "kits manifestações". “Quem não estiver confuso não está bem informado”, anotou o poeta Carlito Azevedo. É a este sujeito confuso, olhando os gritos da menina e do menino, a quem Tom Zé dá voz.
Confessadamente orientado pelo pensamento da socióloga Marília Moscou (Marília Moschkovich), Tom Zé reflete sobre os acontecimentos. E é nos versos "A minha dor está na rua / ainda crua" que Tom Zé condensa a crítica ao caráter perigosamente difuso das manifestações: "ato um tanto beato" versus "calar a boca, nunca mais".
Com "Povo novo", Tom Zé insurge como bússola e confirmação da desorientação do momento. Ele vai além da superficialidade das canções de circunstância, tal como "Chega" (2013), de Seu Jorge, Gabriel Moura e Pretinho da Serrinha – em que, tirando o clipe cujas imagens foram captadas nas ruas durante os protestos, nada, ou quase nada, resta além das palavras de "basta" cotidianas feitas para embalar festas: "Brasil, pinta a sua cara / Brasil, é uma chance rara (...) Brasil, tá na tua hora / Brasil, tem que ser agora".
Ou ainda "O Gigante" (2013), de Latino – em que, frases pseudo ufanistas tiradas dos cartazes dos manifestantes se aglutinam ao som do que parece ser uma batucada em estádio de futebol a servirem de pretenso convite ao levante público: "O gigante acordou / Está disposto a lutar (...) Salve o hino da vitória / Salve o povo lutador".
Sem contar os versos sedutores de "Viva a revolução" (2013), de Capital inicial: "Vai ser uma comoção internacional / Faça a sua parte / Nesses dias de gloria / Atravesse o espelho / Desligue a televisão / Então, vamos todos para a rua / Onde todos cantarão / Viva a revolução".
Entre outros, estes três exemplos mostram claramente suas diferenças tanto no campo das intenções (interesses), quanto no campo da crítica, em relação à "canção de protesto" que quer estar em frequência simultânea com os movimentos de resistência política e cultural, sobrevivente à massificação ideológica. Obviamente, tudo depende do "modo de usar", do uso feito de cada canção por cada ouvinte-cidadão, mas não podemos deixar de apontar tais distinções semânticas, semiológicas e intelectuais.
O conteúdo lírico da canção de Tom Zé encapsula a pele social: o sujeito se concilia com o ar da multidão na clave do político, da politização de seu olhar: "Olha menino, que a direita / Já se azeita, / Querendo entrar na receita". O sujeito de "Povo novo", ao saber que "o novo sempre vem" se preocupa e participa. Deste modo, ao apontar as especificidades internas (preocupações individuais), o sujeito da canção de Tom Zé dá vigor à diversidade macro-coletiva que caracteriza os movimentos de agora. Elege uma "outra cosmovisão: pensar é pão".

***

 Povo novo
(Tom Zé / Marcelo Segreto)

Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh

A minha dor está na rua
Ainda crua
Em ato um tanto beato, mas
Calar a boca, nunca mais! (bis)
O povo novo quer muito mais
Do que desfile pela paz
Mas
Quer muito mais

Quero gritar na
Próxima esquina
Olha a menina
O que gritar ah, oh

Olha menino, que a direita
Já se azeita,
Querendo entrar na receita, mas
De gororoba, nunca mais (bis)
Já me deu azia, me deu gastura
Essa politicaradura
Dura,
Que rapadura!

13 junho 2013

Mais um samba popular



Entre outros objetivos, o que mais me interessa aqui é (re)conhecer os "modos de pensar" (voz e escuta) embutidos na canção brasileira. E iluminar o instante em que o cancionista se torna neo-sereia por apontar/cantar a "gaia ciência", como José Miguel Wisnik intuiu e chamou atenção no texto seminal "A gaia ciência: literatura e música popular no Brasil" (2001).
A eficácia do cancionista brasileiro se verifica na competência demonstrada no amalgamar "alta cultura", "folclore" e informação massificada e no disseminar do resultado através dos meios de mediação. Mas sempre volta a pergunta: como diferenciar canção "popular" e canção "folclórica" para além da relação preconceituosa e reducionista que as distingue ao defender que esta é "pura" (do interior) e aquela é menor porque industrial (urbana)?
Recordo aqui as palavras de Antonio Cícero e Marina Lima para o texto de apresentação do disco Fullgas (1984): "Somos brasileiros e estrangeiros. Somos estrangeiros porque a nossa verdadeira casa e a casa da nossa música não têm paredes, nem teto, nem cerca, nem fronteiras. Não vegetamos nem precisamos de raízes. / Mas nascemos aqui, aqui trabalhamos e escolhemos ser brasileiros. Por quê? Porque este país é a nossa casa. A força dele, como a nossa, não pode vir de nenhuma fonte pura. Fontes puras não existem. O Brasil vem da fusão de todas as águas, de todas as correntes culturais, da miscigenação. Por isso ele realmente mete medo em todos que sofrem de agorafobia. (...) Melhor para nós são a descoberta e a liberação dos desejos e gostos autênticos de cada um. / Nossa música é simples, deliberadamente simples e direta. Por isso mesmo ela é mais difícil para aqueles que se viciaram às velhas fórmulas. Sabemos que somos profundos demais e superficiais demais para essa gente. / Não há CAMINHO REAL para fazer algo que enriqueça o mundo. Por mais que certos setores da “vanguarda” sugiram uma evolução linear da Música, a verdade é que às vezes é do mais “vulgar” que vem o toque mais sutil."
Entende-se, embora não se justifique, haja vista o engenho transcriativo de Macunaíma, de Mário de Andrade, de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e de Galáxias, de Haroldo de Campos, por exemplos, que, diante da supremacia da escrita, o argumento de que o registro escritural daquilo que é (em origem) oral promove inúmeras perdas para este. Mas e o registro sonoro-visual?
O fato de os cantos sagrados do ritual feminino do Jamurikumalu (Alto Xingu, MT) serem registrados por Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro para o filme As hiper mulheres (2013) tornam os cantos das índias menos "puros" e desprovidos de força ilocucionária sui generis? Ou esta "traição" à tradição oral torna esta mais sacralizada pela expansão de acesso ao conhecimento de sua existência?
"Conhecemos o longo e continuado esforço dos folcloristas (no Brasil como na Europa) de demarcação da fronteira entra música 'folclórica' e 'popular'. O campo do folclore musical instituiu um objeto em risco permanente de desaparecimento: 'poesia popular' e 'canção popular' definiram-se por uma dupla oposição às congêneres eruditas e aos produtos da nascente indústria cultural. A música popular nasce como objeto de estudo dentro do arco da pesquisa folclórica e foi o vínculo com os campos inter-relacionados dos estudos de folclore e da música erudita nacionalista que a tornou digna de atenção. Portanto, é impossível sondar os discursos sobre a música popular no Brasil sem recuar ao campo dos estudos de folclore", anota com precisão a professora Elizabeth Travassos, em "Pontos de escuta da música popular no Brasil" (in: ULHÔA, Martha. Música popular na América Latina. 2005, p. 96-97).
Se a partitura fortaleceu a ideia de autoria e revolucionou a fixação do fato musical, não resolveu a questão que sugere ser a voz de alguém cantando o signo da unicidade e da autenticação da existência deste alguém. Ou seja, mediatização e mercado, borrando os limites entre folclórico e massivo, também contribuem para o pensamento do tema.
Neste ponto, como não se lembrar do conto "Um Homem Célebre", de Machado de Assis, tão bem comentado por José Miguel Wisnik em Machado maxixe: o caso Pestana (2008)? "À primeira leitura, "Um Homem Célebre" expõe o suplício do músico popular que busca atingir a sublimidade da obra-prima clássica, e com ela a galeria dos imortais, mas que é traído por uma disposição interior incontrolável que o empurra implacavelmente na direção oposta" (p. 7).
A crise de ser/estar no cruzamento entre a polca (folclórico e popular) e "a grande música europeia" parece estar no cerne da formação da cultura nacional brasileira. O "complexo de Pestana" nos constitui, embora não queiramos admitir. "Como sabemos, o maxixe recalcado, virado samba, torna-se o paradigma musical de um Brasil mulato, nas primeiras décadas do século 20, num vasto processo de desrecalque, agora apologético, que constitui a imagem do país moderno sobre os escombros da escravidão, e que tem em Casa-Grande & Senzala um marco" (idem, p.92). Caetano Veloso joga com a questão ao encartar na contracapa do disco Circuladô (1991) a frase nuclear do conto de Machado: "Mas as polcas não quiseram ir tão longe".
"Vamos acabar com o samba / Madame não gosta que ninguém sambe / Vive dizendo que samba é vexame", canta João Gilberto. "E quem se julga a nata cuidado pra não quaiar (...) Pois o mundo real não é o Rancho da Pamonha", canta Criolo. "Eu bem sei que tu condenas / O estilo popular / Sendo as notas sete apenas / Mais eu não posso inventar // Por motivos bem diversos / Escrevi meu samba assim / Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim", cantou Noel Rosa no Coliseu dos Recreios (Lisboa).
Tendo sido cantado também por ninguém menos que Grande Otelo, o samba "Mais um samba popular" (1934), de Noel Rosa e Vadico, registrado por Ivan Lins no CD 3 do Tributo a Noel Rosa (1997), Ana de Hollanda, em Um filme (2001) e Arto Lindsay, em Noel Poeta da Vila (2009), entre outros, com suas torções temporais - "Fiz o coro após os versos / E a introdução eu fiz no fim" -, guarda também os gestos significantes da montagem da triangulação "amorosa, política e musical" (WISNIK, idem, p. 74) que ronda o Brasil.
A sala de cinema não é o contato com os índios Kuikuro, embora, sendo arte, queira mimetizar a experiência. Nem o registro sonoro da performance de um grupo folclórico, nem o CD, essa superpartitura, da performance vocal de um cantor em estúdio, ou "ao vivo", são o "momento sagrado" da emissão vocal. Mas, sim, signos da existência de seres viventes/presentes emissores/destinadores daquelas vozes. "A voz amada vem de trás do monte / Etérea ponte, cruza o oceano e o mar // Estrela Dalva surge no horizonte / tão perto e longe em mim o seu cantar", canta Caetano Veloso em "A voz amada".
Deste modo, "cantométrica, fonética, fisiologia e acústica musical, etnografias da fala e da música estão entre os passos na direção de uma abordagem que tome a voz como fenômeno biopsicossocial e integre som e sentido, interno e externo, nature e nurture", como também anota Elizabeth Travassos agora em "Um objeto fugidio: voz e 'musicologias'" (2008).

***

(Noel Rosa / Vadico)

Fiz um poema pra te dar
Cheio de rimas que acabei de musicar
Se por capricho
Não quiseres aceitar
Tenho que jogar no lixo
Mais um samba popular

Eu bem sei que tu condenas
O estilo popular
Sendo as notas sete apenas
Mais eu não posso inventar

Se acaso não gostares
Eu me mato de paixão
Apesar de teus pesares
Meu samba merece aprovação

Por motivos bem diversos
Escrevi meu samba assim
Fiz o coro após os versos
E a introdução eu fiz no fim

06 junho 2013

Canto de Iemanjá



Mário de Andrade intuiu que o ethos da cultura popular traz consigo as marcas da história: é palimpsesto do tempo. E que, atravessando tecnologias e contextos históricos, os gestos vocais e de escuta guardam os fragmentos de essencialidade da gaia ciência.
De seu contato com os índios Pacáas Novos, Mário anotou: “Pra eles o som e o dom da fala são imoralíssimos e da mais formidável sensualidade. As vergonhas e as partes não mostráveis dos corpos não são as que a gente consideramos assim. (...). Consideram o nariz e as orelhas, as partes mais vergonhosas do corpo, que não se deve mostrar a ninguém, nem pros pais, só marido e mulher na mais rigorosa intimidade. Escutar, pra eles, é o que chamamos de pecado mortal. Falar pra eles é o máximo gesto sexual” (O turista aprendiz. 2002: 85-86). E sobre os “Índios Dó-Mi-Sol”, Mário observa que mais importante do que aquilo que se comunica está o modo de se comunicar.
Para o criador de Macunaíma, mais do que uma colagem de sonoridades indígenas, africanas e europeias a música brasileira deveria ser o amálgama unificador indistinguível das configurações artísticas nacionais. Social (coletiva) e primitiva a música brasileira deveria rejeitar exotismos e estrangeirismos que maculasse a pureza do folclore fonte e matéria prima. Caberia ao cancionista mesclar inconscientemente cultura erudita e cultura popular. Ou seja, promover a utópica mistura da nação com a modernidade.
A questão é que certa hierarquização ainda persiste na classificação de canção.  Não que o popular deva se imiscuir com o popularesco, mas a percepção marioandradina parece ter dado mais argumentação aos apocalípticos do que aos integrados, para usar os termos de Umberto Eco, se é que podemos separar tais instâncias tão nitidamente assim no Brasil.
Parece que herdamos de nossa matriz indígena a fala como espaço da exuberância erótica, da proliferação barroca, da polifonia vocal. “Máximo gesto da expressão vocal”, falar é roçar o outro, entrar em contato, se misturar: falar sempre, falar mais é nossa questão brasileira no eterno retorno da pulsão nacionalista distintiva. Daí que para entender as relações de poder na semiótica Brasil não basta pensar apenas o embranquecimento da população, mas também, em comunhão perspectiva, o enegrecimento: seus pontos de resistência diante das atrocidades do colonizador. E mesmo a indigenização.
Trago à discussão três exemplos que considero significativos de tais resistências. No capítulo 5 do Sermão IX, Padre Antonio Vieira comenta “o milagre da salvação da armada do Príncipe Dom João de Áustria no Mar de Lepanto”. Vieira lembra que, no Apocalipse, São João diferencia as criaturas senhoras do mar. Por exemplo, a baleia que “comeu” Jonas e o peixe que “salvou” João da Áustria.
Anota Vieira: “Passando de Nápoles para Túnis com grossa armada, foi tal naquela travessa a fúria de tormenta, que os pilotos, desconfiados de todo o remédio e indústria humana, se deram por perdidos. Recorrendo, porém, todos aos socorros do céu, e invocando o católico e piedoso príncipe a sua singular patrona, e suplicando-a que, assim como lhe tinha dado vitória contra os inimigos, lha concedesse também contra os elementos, que sucedeu? Caso verdadeiramente raro, e com perigo sobre perigo e milagre sobre milagre, duas vezes maravilhoso. No mesmo ponto cessou a tempestade, mas não cessou o perigo. Cessou a tempestade, porque subitamente ficou o vento calmo e o mar leite; mas não cessou o perigo, porque o galeão que levava a pessoa real, sendo o mais forte e poderoso vaso de toda a armada, visivelmente se ia a pique. (...) Mas a soberana Rainha e Senhora do mar não sabe fazer mercês imperfeitas. Assim como tinha cessado a tempestade do vento, assim cessou a da água. (...) Com a força da tempestade tinha-se aberto um rombo junto à quilha da nau, por onde a borbotões entrava o mar, quando um peixe do mesmo tamanho, por instinto da poderosa mão que o governava, se meteu pela mesma abertura, de tal sorte ajustado ou entalhado nela, que, sem poder tornar atrás nem passar adiante, cerrou totalmente aquela porta. (...). Assim se vê hoje pintado em Nápoles, e pendente ante os altares da Virgem Santíssima, o retrato de todo o sucesso: a tempestade, o galeão naufragante, e o peixe que o salvou atravessado, em perpétuo troféu e monumento do soberano poder e nome de Maria, como Senhora, não só do mar, mas de quanto sobre ele navega ou dentro nele vive”.
Como não reconhecer aqui fragmentos do mito mariano de Nossa Senhora Aparecida, padroeira negra(?) do Brasil? Bem como de Nossa Senhora das Candeias, Nossa Senhora da Ajuda, de Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição. Todas Maria. Todas sincretizadas a Iemanjá, Oxum e outros orixás aquáticos vindos de cantos distintos da África e reunidos no (uno) Brasil. Várias, de cada região geograficamente específica da África, aqui Iemanjá é uma, como Maria, em permanente processo de proliferação e condensação do mito.
Sobre Nossa Senhora Aparecida, no livro Mamãe me adora, o escritor Luís Capucho registra que debaixo da famosa basílica haveria uma gruta onde vive uma sereiazinha, que não fala português nem se comunica com ninguém. Quem sabe não seria Nananborocô, a mãe primeira do panteão afro-brasileiro, orixá das águas paradas, velha sereia?
O segundo exemplo de permanência da resistência vem do livro O outro pé da sereia, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da Virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: “Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem” (COUTO: 2006, p. 113).
Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural, para permanecer sendo o que se é. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem).
E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.
E assim chego ao terceiro exemplo. Como não reconhecer o recolhimento em expansão destas filigranas históricas na grandeza épica e étnica da voz de Virgínia Rodrigues? Ao cantar “Canto de Iemanjá”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell (Mares profundos, 2004), Virgínia tenciona erudito e popular recuperando da Mãe de Jesus a Kianda, de Ulisses amarrado ao mastro (cruz sacrificial) ao culto dos mártires, dos nomes das caravelas portuguesas à índia Paraguaçu.
Divindades e orixás bailam e se misturam na voz de Virgínia. Voz apolínea que guarda profundos mares do estado dionisíaco. A sutileza da presença percussiva dos tambores, em harmonia com o acompanhamento melódico orquestral de cordas, não nega as marcas da história, posto que tudo está em presença na voz. “Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é dona Janaína que vem / Iemanjá, Iemanjá / Iemanjá é muita tristeza que vem // Vem do luar no céu / Vem do luar / No mar coberto de flor, meu bem / De Iemanjá / De Iemanjá a cantar o amor / E a se mirar / Na lua triste no céu, meu bem / Triste no mar”, canta Virgínia sagrando a tragédia de um povo.
Aqui Apolo e Dioniso, arcaico e moderno se liquefazem no canto da deusa sincretizada, núcleo de potência das diversas potencialidades constitutivas do Brasil. E, inconscientemente, Virgínia revocaliza tradições matriarcais historicamente silenciadas. “Brasil, é braseiro de rosas”, verseja Sousândrade. “Para apreciar corretamente a aptidão dionisíaca de um povo, pode ser que tenhamos de pensar não somente na música do povo, mas, com a mesma necessidade, no mito trágico desse povo”, aponta Nietzsche. “Só podemos entender o mundo orecular”, observa Oswald. "Bem mais além / Bem mais além do que o fim do mar / Bem mais além", canta a sereia Virgínia.

***

Canto de Iemanjá
(Vinicius de Moraes / Baden Powell)

Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é dona Janaína que vem
Iemanjá, Iemanjá
Iemanjá é muita tristeza que vem

Vem do luar no céu
Vem do luar
No mar coberto de flor, meu bem
De Iemanjá
De Iemanjá a cantar o amor
E a se mirar
Na lua triste no céu, meu bem
Triste no mar

Se você quiser amar
Se você quiser amor
Vem comigo a Salvador
Para ouvir Iemanjá

A cantar, na maré que vai
E na maré que vem
Do fim, mais do fim, do mar
Bem mais além
Bem mais além do que o fim do mar
Bem mais além