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10 abril 2020

RESENHA: Língua, ritmo e vida


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Língua, ritmo e vida”, de Henri Meschonnic. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino. Revisão de Sônia Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

            O texto de Henri Meschonnic trabalha com vários conceitos e faz um apanhado de diferentes perspectivas acerca da díade voz-escrita, opondo-se veementemente a este binarismo, pois o autor tem um olhar bastante crítico tanto para a forma como a voz vem sendo instrumentalizada e significada (a própria investidura do signo é posta em cheque) quanto para recortes específicos e limitantes do oral (como a linguagem falada). Ele destaca a combinação, a complementaridade entre oral, falado (“registro popular”, sem interferência de editor) e o escrito. Dá o exemplo de um poema, que escrito, acaba não sendo escrito nem falado, mas pode estar nos dois (escrita e fala), ressaltando que literatura não tem que ser oralidade e escrita (bipartição da literatura), mas fala (tripartição) também (p. 25). O autor cita alguns teóricos e estudiosos que contribuíram para a afirmação deste modelo binário, dentre eles, Céline e Bakhtin (p.26-28).
Por exemplo, para Meschonnic, a análise de Paul Zumthor é incapaz de demonstrar a existência da dicotomia oralidade/escritura e da especificidade da poética oral. Contradições como a que ele observa aqui: “Se a voz é ‘o instrumento da performance’, não é somente como fonia e performance, mas prosódia e sintaxe, visão da voz, as palavras tornando-se visão”. Meschonnic também não é muito afeito aos critérios qualitativos de Zumthor, com sua valorização do ritmo (que Meschonnic chama de “supervalorização”) e da gestualidade performática: nesse sentido, Meschonnic, que já havia se demonstrado crítico em relação à conveniente categorização dos gêneros, aponta para uma confusão entre modalidades de voz, que existem independentes do juízo estético, com especificidades genuínas de uma poeticidade oral. “Toda biologização da linguagem reforça o instrumentalismo do signo” (p. 45), ou seja, focar na voz enquanto um mecanismo para a linguagem ou a palavra é tirar seu real valor, já que ferramentas podem ser substituídas, por exemplo. Ela não é um instrumento para que algo aconteça, ela é a coisa em si, a linguagem, não seu instrumento para ela.
Desde o império da escrita, o poema tornou-se o lugar da crítica para a oralidade, a literatura e a escrita, já que “revela uma solidariedade entre a oralidade e o sujeito, o que leva a colocar de outra maneira a relação estabelecida entre o escrito e o oral” (p. 16). O sujeito foi, durante algum tempo, escondido nos estudos sobre oralidade e escrita, o que deu força para, segundo o autor, o fracasso desse estudo. O intuito do estudo passou a ser a revalorização da análise do discurso com base no discurso, não nos conceitos da língua para o discurso. A crítica começou na linguística, na qual teve o ritmo como o regente do discurso, em que boca e orelha eram os principais órgãos para a análise da oralidade (p.17).
Henri se utiliza de dois campos para falar de oralidade: a tradução, na qual a oralidade altera a forma com que ela é feita; e textos literários antigos (com foco para o estudo e o ensino), que, pela filologia mostra que somos “analfabetos na oralidade” (p.19). Ele exemplifica a questão da pontuação numa edição para tradução ou um texto teatral, considerando o editor como juiz, não o leitor ou o autor, a pontuação pode alterar o sentido do texto, a história de um poema, por exemplo.
A pontuação, na poética de um texto, equivaleria a um gestual, na visão de Meschonnic, pois todos os elementos gráficos atuariam como elementos de ritmo. O autor atribui extrema importância à relação do ritmo e da escritura, mas o ritmo do texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, por conta dos intervalos regulares da poesia. Nesse sentido, Meschonnic dificilmente seria receptivo à ideia de equivaler uma canção a um poema, já que seus juízos de valor ainda são muitíssimo dependentes de paradigmas tradicionais, canônicos, ainda que critique justamente o tradicionalismo (no caso, linguístico) que lhe parece turvar uma realidade que de outro modo seria mais evidente: o falado e a escrita como contrapartes discursivamente organizadas pela oralidade. Sob o jugo do signo, o autor aponta que a oralidade, pelo menos quando entendida em seu sentido estrito, não se resume a esse registro popular, que pode se separar ou virar uma subcategoria do oral: o falado. É nessa esteira que ele cita autores como Joyce, que subtraem do oral e trabalham sua escritura de forma inventiva e singular, cujas contribuições disruptivas enriquecem a língua como um todo ao mesmo tempo em que a subjetivizam com códigos específicos, novos, do mesmo modo que Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas ou, em proporção e relevância muito menores, Paulo Leminski em Catatau.
            No capítulo "A oralidade, poética da voz", ao aproximar o conceito de oralidade a voz do corpo, Meschonnic aponta para a importância da escuta como parte da voz (p. 44). Porém, vale ressaltar que a voz, sendo "ferramenta de expressão de si" (p. 45), é parte indispensável se comparada aos demais instrumentos, pois ela não se refaz (p. 45). A voz também é a expressão íntima que exterioriza estado emotivo, o que não acontece, por exemplo, com as palavras (p. 46). E isso, no texto, será abordado de uma forma interessante quando o autor explícita a relação de independência da voz em relação a linguagem, como ocorre na música. Sendo assim, é importante frisar que a voz antecede o sentido. Para isso, Henri Meschonnic ilustra a prática de ensinar as crianças a se expressarem por palavras e frases, o que anteriormente, elas produziam pela voz (p. 47), ou seja, o som sem o logos.
            Enfim, o texto aborda a diferença e/ou complementaridade entre língua falada e escrita. Henry usa a definição e método de explicação de alguns autores, que apresentam a bipartição ou tripartição da literatura (oral, fala e escrita; fala, escrito e escritura) para definir a oralidade e melhor compreendê-la. O autor ressalta que deve-se levar em consideração a maneira que o oral é ensinado nas escolas e cita o estruturalismo e a semiótica que contribuem mais para a confusão entre língua falada e língua escrita. A discutível conclusão do autor é que a oralidade é da ordem do discurso, da enunciação: ela é uma espécie de liga rítmica entre o falado e o escrito, sendo estes solidários. Na contramão da especificidade, Meschonnic parece acolher uma generalidade. Daí vem a reflexão sobre a “espacialização” ou “essencialização” do oral enquanto “dessubjetivação” da voz.

MESCHONNIC, Henri. Língua, ritmo e vida. Extratos traduzidos por Cristiano Florentino. Revisão de Sônia Queiroz. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2006.

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