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26 julho 2012

Canção que não morre no ar


"Por ser feliz, por sofrer, por esperar eu canto / Por ser feliz, pra sofrer, para esperar eu canto", vocaliza Gal Costa. Os versos de "Minha voz, minha vida", de Caetano Veloso, figurativizam o caráter trágico e sublime do cantante, cuja "vida [que] não é menos [minha] dele que da canção". Sustentado no canto, ele se assemelha à cigarra que, finda a missão, cai para a morte.
Cantar e viver são sinônimos. É da natureza do cantor trazer a vida na voz. E não apenas a própria vida, mas, de viés, a vida do ouvinte mimado e narrado (encantado: música e magia) no canto alheio. No cantar da cigarra e do cantor, médiuns da vida, ou melhor, a própria vida, da felicidade que tudo sofre e espera, há o estar no mundo. Eles não cantam porque preferem, mas porque são "obrigados" a isso.
O cantar surge como uma espécie de gratidão natural, espontânea e ontológica à oportunidade de viver, de ser presença. A diferença entre o cantor-poeta e a cigarra é que enquanto o primeiro consegue se pensar fora do canto, a cigarra simplesmente é toda-canto. A cigarra não filosofa, inspira filosofia. Porém, é por saber - conscientes ou não - finitos que eles cantam.
O cantor-poeta-filósofo pode pensar "se deus existe" e sobre o seu "caminho inevitável para a morte". "A cigarra... ouvi: / Nada revela em seu canto / Que ela vai morrer", como Bashô escreveu em um de seus belos haicais. O canto dela é pura potência sublime do ser na vida, glorificação do estar no mundo, manifestação da natureza sem a mediação da razão. "Casca oca / a cigarra / cantou-se toda", anota Bashô, em outro haicai.
Por mais que algumas pessoas imponham sentido (semântica) ao canto da cigarra e de outros seres canoros, há aí sempre um canto "doação da natureza", sem um Eu passível de diferenciação. O pensar-se e a força imediata distinguem o humano, no primeiro, e a cigarra, no segundo.
Feito cigarra no ato de cantar, o cantor-poeta-filósofo-cigarra investiga e engenha a vida, deixa a vida ser sentida na voz que o distingue dos outros, seus "irmãos na terra". Incorporado daquilo que alimenta a cigarra, o cantor descobre o profundo desperdício de seu gesto: cantar.
Não há "razão" para cantar, tudo é erotismo e os signos que organizam o real entram em estado de suspensão, de crise: retorno da correlação música e magia. Aliás, o excesso de raciocínio, empurrando o mito para a morte, não respondeu às angustias humanas, pelo contrário, nega a interrogação e a afirmação motoras do movimento do indivíduo no mundo.
Daí também que cada ouvinte recebe de um modo próprio o canto que se quer coletivo."Eu vou ficar aqui / até acabar a festa / (...) / podem insistir / mesmo que amanheça o dia / não tenho para onde ir / (...) / por isto toquem a música bem alto / façam o tempo passar / (façam o tempo parar)", canta Elza Soares em pedido à "coisa acesa" que sai da (e é a) voz de alguém cantando.
Móvel e guardada (gravada) nos diversos suportes de mediação, a voz do cantor se infiltra e contamina outros cantores, pois permite a estes o contato atemporal com aqueles. Cigarras que se incorporam em novas outras cigarras. Afinal, se morrem para dar vida à vida (ao cantar), esta não morre nunca.
Os suportes técnicos permitem o registro e a troca de experiências. Aqui, claramente me afasto da defesa sobre o fim da faculdade de narrar defendida por Walter Benjamin. Mesmo entendendo os motivos e os argumentos da teoria benjaminiana, reconheço nas técnicas de reprodução o meio de permanência do mito, da capacidade de linkar mundos no mundo, justamente pela possibilidade de acesso.
Outrossim, sei que meu objeto de investigação é diferente do objeto estudado por Benjamin, bem como o contexto sócio-histórico do espetáculo inenarrável dos eventos da Guerra, não mais mítica ou épica. Mesmo assim, e talvez exatamente por isso, identifico na canção popular brasileira o estofo de uma gente que cantando, geme e ri "por ser feliz, por sofrer, por esperar". O traumático aqui gera vocalizes, toadas, aboios, canção. Estou certo, também, que esta minha generalização requer melhor análise.
"O mutismo traumático que acometeu os sobreviventes da guerra de 1914 constitui, segundo Benjamin, o funesto sintoma da destruição da experiência comunicável na modernidade (...). A narração tradicional corresponde, precisamente, à modalidade de discurso na qual se atualizam incessantemente a dimensão transmissível e o caráter de anamnese da linguagem, a forma de comunicação privilegiada pela qual a experiência, em seu sentido reconhecível e em sua dimensão histórica, pode alcançar uma expressão discursiva", anota Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias, p. 234).
De todo modo, creio que há na era da reprodução e mobilidade técnicas, quando tudo é transmutado em produto e requer um valor em dinheiro, a condição urgente, disponível e precisa da transmissão da experiência. Exemplo disso são as regravações, os "diálogos" entre cancionistas que, sem os instrumentos modernos, não seriam possíveis. Continuaríamos a ler letras de canção "apenas" como poesia. Como fazemos com os textos cantados e emudecidos da Ilíada, da Odisseia, entre tantos outros.
Egresso da banda Sheik Tosado e sua mistura de maracatu, frevo e hardcore, China faz de seu disco solo Simulacro (2007) um espaço para tons baixos e letras autorais. Entre guitarras e programações eletrônicas. O elogio canibal à tradição da canção popular, passando por Bossa Nova e Iê Iê Iê, psicodelia e samba, é o ponto forte de equilíbrio do disco.
Neste sentido, destaca-se entre as canções "Canção que não morre no ar", de China, posto que recupera, já no título, a "Canção que morre no ar" de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli. E é a gravação que Gal Costa deu à canção em 1974 no disco Cantar que será refletida, ecoada, no comentário paródico-crítico de China.
Voz da Tropicália, Gal Costa é emulada na atualização do tema. Porque gravado, seu canto não morreu no ar. China sintoniza o rádio, acha a estação e se permite acelerar o coração. O resultado disso é a (nova) canção: "Sintonize o seu rádio / procure em alguma estação / se eu entrar nos seus ouvidos / acelero seu coração". Moderno, sentencia: "Minha voz vai se espalhar no ar / cada verso que eu cantar / os falantes te lembrarão / minha voz é canção que não morre no ar". Para finalmente atestar "Nunca mais vou te deixar / pois agora sou uma canção".
É quando é canção, quando retorna ao mito, que o indivíduo se eterniza. China trai o verso cantado por Gal Costa - a "Canção que morre no ar" vira a "Canção que não morre no ar" - para renovar a tradição do desejo de cantar. A experiência "autêntica" é um simulacro que, por sua vez, nas palavras de China - na letra de "Pastiche" - é "a aparência, é a imitação, é a reprodução imperfeita, visão sem realidade (...). É plágio e ágil, minha criança, é o retocando e o irretocável. Tudo convergido numa coisa só".
A experiência natural e autêntica, fundada na memória, reivindicada por Benjamin, encontrou novos meios de se realizar. A memória involuntária - que prescinde da vontade lúcida do indivíduo - e a memória voluntária - regida pela inteligência e pela vida prática - se mesclam. Inserido na cultura, o sujeito criado por China é exemplo de quem experimenta e vivencia o passado no presente.
Algo incompatível para Benjamin. Posto que para ele "o elemento aurático encontra-se no cerne da narrativa tradicional, já que o lastro da sabedoria do narrador repousa na durabilidade do transmitido, na autoridade da tradição, na memória da experiência coletiva, na sacralidade do passado épico, na aura do longínquo" (idem, p. 245).
Até a linha melódica muda: ao invés do arranjo grandiloquente que quer figurativizar a morte do resto de canção, uma balada (quase) dançante a embalar a certeza da canção que não morre no ar; ao invés da voz límpida de Gal Costa, a voz de China em sobreposições, criando um efeito de "sujeira", contaminação, interferência sonora.
Importa destacar que o mesmo mote foi re-atualizado por China na canção "Mais um sucesso pra ninguém" (2011): "E eu que fiz tantas canções para você / Não esperava que fosse desistir de mim / A cada verso, me entrega mais para você / Que nunca quis ligar o rádio para me ouvir // Mais um sucesso pra ninguém / Canção que vai morrer no ar". Aqui, desiludido no amor, o sujeito compactua com o sujeito de "Canção que morre no ar". Retorno do mesmo, em diferença.
Seja como for, cigarra-sereia que engendra cigarras-sereias, Gal Costa cantora é canção captada no futuro do presente de China. Este, por sua vez, em um gesto involuntário típico do indivíduo híbrido, cujo lastro da tradição é, na base, desmantelado, aconselha-se, dessacraliza, cita e monta uma Gal. Ambos, irmãos e cúmplices no trabalho de suster a vida na voz, no cantar, na canção.

***

 Canção que não morre no ar
(China)

Sintonize o seu rádio
procure em alguma estação
se eu entrar nos seus ouvidos
acelero seu coração

Mas não esqueça de mim
agora eu corro com o vento
você não pode me ver
me guarde no pensamento

Minha voz vai se espalhar no ar
cada verso que eu cantar
os falantes te lembrarão
minha voz é canção que não morre no ar

Nunca mais vou te deixar
pois agora sou uma canção

19 julho 2012

Força estranha


Narrar é potencializar a memória, evocar o passado, ressignificar a experiência temporal. Toda narrativa coloca o ouvinte no campo das verdades ficcionais, criando entre o narrador e o ouvinte um pacto inaudito, mas subentendido, de cumplicidade para que os efeitos poéticos daquilo que é narrado possam ser recebidos noutra noção de verdade: revelação feita pelo artista - "o tempo não para, no entanto ele nunca envelhece".
É porque resiste às forças do esquecimento que Ulisses consegue compor a sua Odisseia. Para narrar suas astúcias, o herói homérico precisa vencer Lotófagos, Circe e Sereias - elementos do perecimento de muitos de seus companheiros de viagem justamente porque embriagados nas seduções da perda-de-si.
Conforme Luís Inácio Oliveira (Do canto e do silêncio das sereias) anota: "A atividade de narrar desenrola-se com base em uma dialética da memória e do esquecimento, na qual o lembrar conjuga-se ao esquecer, o re-presentar contém o deixar algo ausente, o registrar inclui o suprimir, a retomada pela recordação implica a seleção e o abandono de algo, a de-cisão e a perda" (pág. 49).
Diferente de Aquiles, que não narra as próprias experiências, pelo contrário, a personagem principal da Ilíada passa mais da metade do livro fora de cena, Ulisses é o cantor-de-si. Como sabemos, Aquiles cumpre o destino de morrer jovem, no ápice de seu vigor heróico e é imortalizado no canto glorioso dos aedos (cantores). Já Ulisses entra para a história por aquilo que "ele mesmo" narra quando se senta à mesa dos feácios, ao lado do aedo Demódoco.
Bem diferente do Ulisses que aparece no Canto XXVI, do Inferno de A divina comédia: apagado, silenciado pela morte no mar (do esquecimento), sem o louvor do aedo. Canta Dante: "(...) assim surdiu diante de meus olhos multidão de luzes congregadas. Cada uma, em seu interno, levava, oculta dos fulgores, a alma de um pecador". Unido a Diomedes no castigo, Ulisses purga "a traição do cavalo (de Troia)"; "o ardil que levou a morta Deidamia a chamar por Aquiles"; e "o roubo do sacro Paládio".
Mais adiante Ulisses conta a morte inglória: "Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe (...) nem a forte saudade do filho, nem a lembrança da provecta idade do pai, nem o puro amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em mim o desejo de conhecer o vasto mundo, o aspecto dos demais mortais e a sua valia respectiva. (...) Cinco vezes o Sol que ilumina deixou acender a Lua (...) quando, para nosso espanto, se mostrou envolta em brumas, montanha tão grandiosa. (...) eis que dessa terra nova contra nós investia um furacão. (...) E sobre nós fechou-se o mar".
Ora, sepultado no mar, uma das maiores desgraças para um herói épico, Ulisses não teve tempo de (se) cantar. Perdeu-se sem qualquer lembrança alheia. Além da criação do poeta. E, de viés, Dante aponta a verdade ficcional e as palavras poéticas do texto de Homero, em que Ulisses vence todas as intempéries, tem o que cantar e se converte em narrador.
Salvador Dalí, nas ilustrações que criou para A divina comédia, retrata a falta de alteridade e de diferenciação vivida pelas almas do Inferno na aquarela do Canto XXVI, em que fragmentos de corpos se esboroam em massa compacta e pesada:
Ou seja, se na Odisseia Ulisses é o herói cujo passado humano é glorioso, em A divina comédia Ulisses é mais um a vagar pelo Inferno, sem distinção, oculto. Para Oliveira: "Se, na Ilíada, o mundo humano é descrito com base na guerra de entre troianos e aqueus, na Odisseia, trata-se de narrar as aventuras de Ulisses pelas fronteiras desse mundo, o demorado retorno a essa pátria, a sua difícil reconquista pelo herói errante" (pág. 54). E calcada na tradição oral, a palavra do poeta está associada à memória. Daí as formas fixas dos cantos que tanto ajudam na memorização.
Memória e esquecimento se complementam na fala do poeta. Basta lembrar que Mnemosyne, a deusa que faz recordar, também faz as dores e males do presente serem esquecidos. "A palavra do poeta é como o canto das sereias", anota Marcel Detienne (pág. 40), em Os mestres da verdade na Grécia arcaica.
Ao re-criar ao ações do "passado" interferindo no presente, o narrador engenha astuciosamente um mais-que-presente, uma verdade ficcional, concilia narrativa e ouvinte. "A vida é amiga da arte / É a parte que o sol me ensinou / O sol que atravessa essa estrada que nunca passou", canta o sujeito de "Força estranha".
Tal e qual o Ulisses-aedo, o sujeito da canção "Força estranha", de Caetano Veloso (MTV Ao Vivo Caetano Zii & Zie, 2011), canta suas experiências. "Sem levar em conta a noção moderna de experimentação e de experimento das ciências empíricas nascidas no século XVII, esse termo - "experiência" - designa, não apenas, de modo geral, uma forma de conhecimento sensível adquirido ao longo do tempo, mas abarca sentidos tão diversos como sapiência e sabedoria, prática e perícia exame e prova, ensaio e tentativa" (OLIVEIRA, pág. 47).
"Força estranha" mescla certezas e metáforas de certezas. As estrofes da letra começam com o "Eu vi" abrindo espaço para o canto de experiências plenamente compartilhadas pela mídia e pela fala do cancionista ao logo de seus 70 anos, completos em 2012. O sujeito evoca o passado para argumentar e glorificar seu presente estado de cantor: "Por isso uma força me leva a cantar, / por isso essa força estranha no ar / Por isso é que eu canto, não posso parar / Por isso essa voz tamanha".
O que é história e o que é ficção não importa, enquanto categorias estanques, ao canto do sujeito de "Força estranha", mas sim o engenho de ressignificar o passado glorificando o presente. Narrar-se e não poder parar de narrar, para lembrar e para esquecer, para permanecer vivo ao cantar aquilo que viu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", diz.
O sujeito de "Força estranha", diferente do Ulisses homérico e do narrador do Proust de Em busca do tempo perdido, que aparecem mergulhados na vivência das sensações daquilo que contam, foca o canto naquilo que viu, como alguém que experimentou a tudo pela visão, com poucas referências aos signos dos outros sentidos (como no já citado por "os meus pés no riacho"), e que agora precisa cantar, imortalizar o visto, o vivido. "Ainda canto o ido o tido o dito / O dado o consumido / O consumado / Ato / Do amor morto motor da saudade", canta Caetano noutra canção de sua autoria: "Acrilírico".
Presente "no fundo de cada vontade encoberta", o sujeito de "Força estranha" mimetiza o tempo que a tudo acompanha e comunga. Ele narra a passagem do tempo sobre cada entidade cantada: o menino, a mulher, o artista, os muitos homens. E, aedo ("Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são"), a tudo se conecta para poder cantar as experiências. Cantor-de-si e do coletivo épicos.
Metacanção dobrando-se para dentro de si mesma, "Força estranha" expõe os motores de sua potência: o lembrar e o esquecer - os arranjos narrativos daquilo que o sujeito viu e viveu. "Eu pus os meus pés no riacho / E acho que nunca os tirei", canta. Convertido em narrador, Caetano Veloso baixa os tons vocais, contempla em retrospectiva, cumpre a promessa interna de não-esquecer o que viu, dá continuidade à tradição da passagem do tempo, pela memória narrativa que transmite os acontecimentos de geração a geração, sobre o coro do público que acompanha a canção ao vivo.
A memória do sujeito narrador de "Força estranha", sem a ordem cronológica, consagra eventos múltiplos e diversos, que, "como transcorre nas sagas épicas, são recompostos, reunidos e reconfigurados numa vasta unidade narrativa" (OLIVEIRA, pág. 103). A "organização" dessa unidade está mais próxima dos afetos - do tempo que "parou pra eu olhar para aquela barriga" - do que da sucessão dos fatos, mais perto da invenção poética - e por isso "real" ("O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei") - do que da historiografia dos relógios. Afinal, "a coisa mais certa de todas as coisas / não vale um caminho sob o sol".
Os versos de "Mansidão", de Caetano Veloso - "Esta voz que o cantar me deu é uma festa paz em mim / Violão deita em minha mão, acordar algumas notas / Colocar com exatidão na sombra o clarão sem fim" -, dizem muito da unidade ("colocar com exatidão") cantada pelo sujeito de "Força estranha". Um sujeito-narrador afetado pelo passado que engendra o canto, a canção: "Por isso essa voz tamanha".

***

Força estranha
(Caetano Veloso)

Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino,
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada que eu nunca passei

Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não pára, no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão

Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta,
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
É o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar,
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha

12 julho 2012

Peso e medida

"E há sempre uma canção / Para contar / Aquela velha história / De um desejo / Que todas as canções / Têm pra contar". Recupero este verso da canção "Fotografia" de Tom Jobim para guiar minha audição/leitura de "Peso e medida", de Alceu Maia e Zé Katimba.
As duas canções se aproximam tanto no registro pela simplicidade da naturalidade com que o amor se manifesta na vida de quem ama e é amado, quanto pela potência metacancional, ou seja, pela discussão - interna à canção - da canção ser a melhor tradução do sentimento.
Mas as duas canções se distanciam no tratamento do tema: enquanto aquela foca na visão (fotografia), "Peso e medida" se abastece da sinestesia, da possessão de todos os sentidos do sujeito que canta. E isso intensifica o contraponto entre a batida Bossa Nova (plástica, solar) e a pegada do Samba (sinestésica, trágica).
Os versos "O nosso amor é coisa tão bonita / Canto de sereia em alto mar / Uma canção que faz a gente se entregar" servem de argumento à simplicidade (no dizer) e ao caráter metacancional. Sendo uma canção da canção que o amor é, "Peso e medida" se autocanta figurativizando na letra e na melodia as filigranas que lhe constitui.
Aliada a isso há a voz de Ana Costa (Hoje é o melhor lugar, 2012) conferindo à canção nuances vocais que sublinham a intenção do sujeito. Sutil, equilibrando tons baixos e flashes de serenidade (não socrática, mas física, de êxtase) por aquilo que canta, Ana Costa imprime um sujeito tomado pelo amor: bonito de ver, de se entregar, brisa, calor, fome, comida. Ilustrando a frase de Guimarães Rosa: "O amor é sede depois de se ter bem bebido" (Noites do sertão: Corpo de Baile).
É dessa sede depois de saciada que o sujeito de "Peso e medida" fala. E Ana Costa consegue captar tamanho estado-de-espírito - nem alegre nem triste - na performance vocal. Há uma sensação de desimpedimento ("Jeito de perdão") no gesto da voz da cantora. A canção torna-se ornamento.
Sem saber, compromissado apenas com o canto do amor, com suas vivências íntimas, o sujeito universaliza ("que faz a gente se entregar") as experiências possíveis a todo amante. Porque canção, o amor é abrigo depois de muita procura. É deste lugar que o sujeito de "Peso e medida" canta. E Ana Costa performatiza isso ao dizer na voz que a canção (o amor) se presta à vida.
"Canto de sereia" e "beco sem saída", o amor cantado por Ana Costa é o rendado desejado e por fim alcançado. O sujeito de "Peso e medida" se coincide com o ouvinte (humano), ao cantar suas fragilidades e fazer delas sua fortaleza, sem receio: prazer total. Ele quer viver seu necessário destino de amador e faz isso com afirmação.
O sujeito parecer saber para onde o (nosso) amor - "canto de sereia" - pode leva-lo e mesmo assim, e talvez por ser assim, pela imprevisibilidade, sem egoísmo, ele se entrega cúmplice das sereias, já que também é um cantor: do amor. De um amor físico, alimento do corpo, que se sente no estômago e na boca - fome e comida - e na pele - brisa e calor. A pretensa unidade interna (do sujeito) se dissolve na inconsistência do mundo externo.
"Felicidade em forma de canção", o (nosso) amor cantado pelo sujeito de "Peso e medida" é o mais real dos sonhos, como Ana Costa canta em outra faixa do disco. Há fidelidade entre os olhos dos amantes sensíveis. Canção (ficção) e verdade aqui são a mesma coisa. Não a verdade, mas uma verdade, dos amantes.
Parafraseando a tão incompreendida observação de Schiller, podemos intuir que "séria é a vida, alegre e serena é a arte (e o amor)". A canção (a arte) dá forma - é o peso e a medida - ao absurdo amoroso vivido pelo amador e, deste modo, torna-se a verdade - peso e medida - pronunciada.
Importa não confundir isso com mascaramentos frívolos, muito embora o indivíduo precise deles (de um chão) para suportar a crise de viver. Palavra, melodia e voz, a canção (o amor) é sempre um convite ao canto da sereia (verdades): à uma jovialidade permanente do eterno (estar) presente - ser todo em cada coisa, hoje é o melhor lugar. Do modo como Ana Costa demonstra ser quando canta.

***

Peso e medida
(Alceu Maia / Zé Katimba)

O nosso amor é coisa tão bonita
Canto de sereia em alto mar
Uma canção que faz a gente se entregar
Luzes que se espalham pelo ar
É brisa leve, é calor que espanta o frio
É sonhar

É peso e medida
Beco sem saída
É fome é comida
Jeito de perdão
É cumplicidade
A nossa verdade
É felicidade em forma de canção

05 julho 2012

Maldito rádio

Diante da falta do pré conhecimento do ouvinte, o rádio age com a imprevisibilidade. Em geral, salvo quando o apresentador adianta, não sabemos qual canção será executada no momento seguinte. Outras técnicas de reprodução tentam repetir isso. Mas, por exemplo, o  modo aleatório de nossos equipamentos trabalha com canções previamente escolhidas por nós, faz a procura "aleatória" em arquivos pré montados. Tudo está previsto, tudo é des-surpresa. Ou seja, tais recursos inibem o risco e a graça que o rádio nos proporciona.
E é uma destas armadilhas do imprevisível radiofônico que captura o sujeito de "Maldito rádio", de Adriana Calcanhotto (Micróbio vivo 2012). Sem esperar, já em pretensa profícua recuperação das dores do termino do amor, o rádio toca a canção que detona memórias e esquecimentos. "Maldito rádio / Agora que parecia que eu ia / Deixar o falso amor lá na memória / Agora que parecia que eu ia ser agora", canta praguejando: "Volte pros anúncios / Para para o hit da nova novela".
Amamos a vida pela sua imprevisibilidade. É a vontade livre das coisas o que nos oferece a sensação de liberdade, mesmo quando elas nos parecem fazer mal, como no caso do sujeito da canção. Ferido, ele não percebe isso: quer esquecer aquilo que o rádio teimou em lembrar. O excesso de segurança, vigília e (falso) bem-estar parecem caracterizar a contemporaneidade.
Uso o termo vontade tal e qual Nietzsche definia. Ou seja, como a unificação de toda a multiplicidade dos nossos afetos. Como o querer só se constitui como palavra, é o reconhecimento do domínio que dá a sensação de liberdade. Mas este domínio não pode ser confundido com comodismo, máscara, aparência, ilusão.
Na verdade, é neste imbróglio que o sujeito da canção está enredado. Ele acha que tem o domínio, mas a canção tocada naquele momento pelo rádio vem e desvela tudo. O sujeito pensa comandar os afetos, mas reconhece que não os obedece e culpa - porque ainda carregamos a necessidade de apontar culpados - o rádio por isso.
É a negação da vontade o que move o sujeito da canção "Maldito rádio". Iludido na crença de que teria o domínio-de-si - Agora que parecia que eu ia / Mudar de vez o curso dessa história (...) Não é momento / De revisar emoções que são só minhas" -, ele se defronta consigo mesmo, com situações que não se resolvem no nada, mas, ao contrário, na afirmação dos afetos que ele tenta negar.
De viés, ele descobre que não é independente de outros sujeitos, de outros corpos, muito menos do "falso amor" (ela), nem da história pulsional e cultural que lhe constitui hoje. A canção que lhe rouba a pseuda harmonia, convida o sujeito à vida, ao enfrentamento, ao risco. Ela Indica que ele não está apartado do todo.
Em sua valorização do esquecimento e de sua consequente força plástica fundamental à felicidade, o sujeito esqueceu que a vida é um lance de olhos, um relance, um instante. E é isso que a canção - com melodias que machucam o coração - quer apontar, surgida assim, do inesperado. Não à toa, "Maldito rádio" é dedicada a Ângela Maria, "como representante dessas vozes que amamos escutar no rádio, mas que às vezes podem machucar", como escreve Calcanhotto no encarte.
Podemos entrar ainda em uma rápida, mas pertinente, reflexão sobre o tempo. Como diz outra canção, "o tempo voa mais do que a canção". "Maldito rádio" confirma que o tempo da canção não é o tempo do sujeito. Com sua capacidade de cristalizar momentos, a canção parece estar no eterno presente. "Ficaram as canções e você não ficou", dirá outro sujeito cancional. Enquanto isso o sujeito não está apartado do todo temporal.
O tempo não é espacializável. E é do centro desta constatação dolorosa que surge o canto do sujeito de "Maldito rádio". Adultos, não somos como a criança que esquece no instante imediato a briga com o coleguinha e caímos na interpretação rancorosa do passar do tempo. É nisso que o sujeito se debate. Tudo motivado pela canção que desperta memórias não agradáveis, histórias "mal acabadas".
Voltando a Nietzsche, podemos dizer que o sujeito de "Maldito rádio" está na afirmação do "foi assim", ao invés do "assim eu quis", "assim eu vou querer". Esta mudança na mirada das coisas que somos ainda não atingiu o sujeito e ele sofre. É este "querer para trás" a cura do ressentimento proposta por Zaratustra.
Ou seja, esquecimento não é inércia, acomodação, resignação. É trabalho contínuo, é uma benção laica daquilo que somos e continuamos a experimentar ser. Esquecer é lembrar que somos um todo de afetos em que não há distinção entre corpo e alma, mas um continuar querendo o que foi/é querido, e não maldito.
"O esquecimento, em Nietzsche, remetido à digestão, sugere uma visão do corpo e da relação com a vida radicalmente distintas daquela estabelecida pela lógica da descartabilidade e da obsolescência imediata de tudo (tanto de produtos quanto de relações interpessoais), cara aos modos de vida atualmente valorizados, atrelados à lógica empresarial", destaca a doutora Maria Cristina Franco Ferraz, em palestra intitulada "Atualidade do pensamento de Nietzsche".
Obviamente, é preciso haver uma "paciência do tempo", um dobrar-se ao tempo do luto, da doença, do fim de uma relação amorosa, por exemplos. Mas é do horror contemporâneo ao risco que trato aqui. O sujeito de "Maldito rádio" mostra que a prevenção e a adaptação não deram conta daquilo que ele suponha ter "superado". Esquecer não é negar, isso ele descobre com o retorno da dor, ao ouvir aquela canção inesperada que, entre um hit da novela e um anúncio, lhe arrebata e arrebenta.

***

Maldito rádio
(Adriana Calcanhotto)

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Deixar o falso amor lá na memória
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De machucar meu coração com melodias
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pras notícias
Para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não

Maldito rádio
Agora que parecia que eu ia
Mudar de vez o curso dessa história
Agora que parecia que eu ia ser agora

Não é momento
De revisar emoções que são só minhas
Maldito radio não me faça pensar nela
Volte pros anúncios
Para para o hit da nova novela

Maldito rádio

Não, de novo não
Não quero ouvir não
Agora não