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29 abril 2020

RESENHA: Poesia e outras artes

Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Poesia e outras artes”, de Lúcia Santaella.

Antes de investigar a intermidialidade da poesia, além de sua relação semiótica, estética, semântica, com as outras artes, sobretudo a música, o texto de Lúcia Santaella também é um bom estudo introdutório de semiótica focalizada em questões estéticas. A autora lança mão de Peirce e Pound para confrontar a poesia (arte de signos verbais) com as outras artes e seus próprios sistemas semióticos. "No domínio da literatura, essa teoria das três matrizes da linguagem e do pensamento encontra respaldo em Ezra Pound que, no seu ABC da literatura (1970), postula três categorias fundamentais para explicar todos os processos poéticos: a melopeia, a fanopeia e a logopeia. Melopeia, de acordo com esta poética, refere-se à dimensão acústica das artes verbais, a sua dimensão auditiva, sua musicalidade e ritmo. A fanopeia responde pela dimensão visual e imagética, pela miríade de imagens que a literatura pode evocar, enquanto a logopeia dá conta do impacto verbal, lógico e linguístico da literatura. De acordo com esses três processos da poiesis literária, Pound também distingue três maneiras de alcançar a perfeição literária: (a) por saturação acústica das palavras na sua fusão com os sons, (b) pela projeção de uma imagem na retina mental e (c) por meio “da dança do intelecto entre as palavras" (p. 3). E para uma compreensão mais ampla, menos restrita aos signos verbais, temos em Charles Peirce as matrizes das artes, em graus de coisididade da coisa, de perfeição formal (primeiridade, secundidade e terceiridade).
Santaella destaca que a música é a arte mais próxima da poesia, pois ambas são artes do tempo, têm suas origens comuns na história ocidental. A poesia, sendo essa arte feita por palavras, perdeu suas qualidades sonoras de expressão, visto que passou a ser escrita, num congelamento do idioma falado. A letra é a tradução plástica dos sons da língua (idioma). "Com a convergência das artes em gêneros híbridos, tais como as artes midiáticas e digitais, com o entrelaçamento intermidiático de todas as artes, com a reme(i)diação visual e tonal das artes literárias de um lado, e os elementos de absorção da literatura pelas artes irmãs de outro lado (ver BOLTER e GRUSIN, 2000), o conceito de literatura e a relação entre a literatura e as outras artes mudaram profundamente" (p. 14). Além disso, há outros pontos de diálogo entre as duas artes: a oralidade do discurso e o canto, o substrato musical da fala e da poesia, o ritmo e a língua. Principalmente o ritmo, que parece ser o que guia a poesia desde sua libertação da métrica e formas fixas, aproximando-se da fala e da música, e o som. Mas os mesmos pontos em comum, também revelam suas distinções: "Se a música é feita de sons, a poesia é feita de palavras. As palavras são sons, mas ao mesmo tempo, algo além e aquém do som. É nesse ponto que se dá a distinção entre poesia e música" (p. 7).
A poesia seria uma arte secundária, pois lança mão de um outro sistema de signos já formado com utilidade independente (a língua), ao passo que a música é um sistema primário, já que seus elementos constitutivos têm uma função semiótica fraca ou inexistente fora do contexto de sua criação e apreciação. Isso se desdobra naquilo que Santaella chamará de quali-signo, na classificação de Peirce "aquele tipo de signo que não pode representar outra coisa senão puras formas" (p. 8).
A boca é apresentada como mecanismo de efetivar necessidades fisiológicas, mas também de prazer, como comer, beijar e cantar. A voz é única, possui um tom, uma altura, uma intensidade e duração específicas (p. 5). O canto transvalora as funções mais corriqueiras do aparelho fonador, ressalta sua natureza musical, rítmica, cônscia de uma significação além do sentido proposicional da palavra. De certo modo, o ritmo é um canal de verdadeira importância; e a implosão da métrica pelo verso livre, pode-se dizer, aproximou a autonomia rítmica da poesia àquela da música. Embora esta também tenha, claro, passado por uma libertação de sua própria escritura, notação, na modernidade.
A autora destaca a questão do tempo como essencial nível de análise para nós, enquanto humanos, e seu papel na música, levando em consideração o ritmo (se confunde com a linguagem, é "conteúdo qualitativo e concreto"), o qual também se encontra na poesia e se difere do metro (histórico, medida vazia de sentido) (p. 6-7). O ritmo não se acha apenas na música, mas na arquitetura também, como afirmou Goethe que "a arquitetura é música congelada" (p. 8). Enquanto a escrita gera a perda das qualidades sonoras, faz com que alguns elementos essenciais para a interpretação e experiência da fala, como respiração, vibração, pausa, entre outros, sejam ignorados, mortos (p. 9).
Segundo Santaella, com Mallarmé, a poesia ganhou emancipação da função de representar a linguagem falada e começou a ser percebida a ideogramação existente na escrita desde sempre, no Ocidente (p. 10). Para ela, “torna-se perceptível onde se cruzam as veias da poesia no Ocidente e no Oriente. Se, no Ocidente, a poesia nasceu da submissão ao som, a poesia levou essa submissão a tal ponto de saturação que, explorando até o extremo o potencial da linguagem para os jogos fônicos, gerou estruturas correlativas correspondentes aos processos ideogrâmicos de composição da linguagem, típicos do Oriente. Das formas musicais da poesia, passou-se, portanto, à música das formas. A poesia oriental, por seu lado, poesia inscrita na plasticidade da ideografia e, consequentemente, morfogeneticamente configurada como verdadeira música das formas, também apresenta, nos ritmos visíveis de suas cadeias quase fílmicas, profundas analogias com os modos de formar dos engendramentos melódicos e harmônicos da sonoridade musical” (p. 11).
Santaella expõe as relações intermídias e transmídias para justificar o hibridismo das artes verbais e visuais. Isso se dá por estas representarem objetos em comum, mas que em suas finalidades específicas privilegiam por diferentes modos da poesia. Santaella apresenta a literatura em diálogo com outras artes. A poesia e música, poesia e artes visuais encaradas por uma moldura semiótica, isto é, uma perspectiva que nos proporciona uma abordagem que vai além de características restritivas de cada arte. Essa confluência não se restringe apenas à análise, mas, como conclui, é marca das artes contemporâneas, que cada vez mais encaminham para um entrelaçamento intermidiático.
Santaella finaliza apontando a questão da poesia visual e a discussão entre literatura e as artes visuais clássicas da pintura, gravura, escultura e arquitetura, e ainda ressalta as diferenças que derivam do potencial semiótico específico dos signos verbais e dos visuais, pois tanto a comunicação verbal quanto as artes visuais têm o potencial semiótico da representação.

SANTAELLA, Lúcia. “Poesia e outras artes”. In: Cadernos de Semiótica Aplicada. Vol. 9.n.2, dezembro de 2011.

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