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27 dezembro 2014

Sons de 2014

Lista em modo aleatório dos sons que (me) tocaram em 2014 e continuarão (me) tocando depois da virada:
- Rádio lixão: Filarmônica de Pasárgada
- Asa: Gustavo Galo
- Encanto: Rita Benneditto
- Arpoador: Leo Tomassini
- Vira lata na via láctea: Tom Zé
- Das coisas que surgem - Marcia Castro
- Convoque seu buda: Criolo
- Encarnado: Juçara Marçal
- Cores e valores: Racionais MC's
- Coisa boa: Moreno Veloso
- Barulho feio: Rômulo Fróes
- Ilhas de calor: Negro Leo
- Código Daúde: Daúde
- Anelis Assumpção e os amigos imaginários: Anelis Assumpção
- Nem: Cid Campos
- O Terno: O Terno

18 dezembro 2014

Fecho encerro



A canção, o teatro, a escultura, a arquitetura, a pintura, a poesia são linguagens em progresso, são exercícios de experimentação do gesto artístico. Até chegar ao formato consolidado que temos hoje – e que, por resistência e conformismo com o mercado, ainda vai imperar por longo tempo – a canção passou (passa) por várias transformações. Muitas dessas impostas pelo suporte. Mas, se no século XX a forma-canção parecia definitivamente assentada, consensualmente, os sons eletrônicos e a internet vieram destruir essa certeza. São muitas e descentradas as possibilidades de se fazer canção hoje.
Penso que compramos por muito tempo (por vezes acho que não a entendemos e/ou forçamos sua pertinência para nós brasileiros) a impossibilidade de transmissão da experiência, tal e qual Walter Benjamin nos apresentou e Adorno referendou. Embora esse tenha feito revisões no conceito de “aura”. Mas, pergunto-me: sendo as experiências outras, num mundo outro, cada vez mais veloz, as transmissões não precisam se realinhar? Há impossibilidade ou os canais de transmissão e recepção ficaram obsoletos?
Pensando sobre essas e outras questões, posso sugerir que o disco Nem (2014) é mais um trabalho de excelência de Cid Campos. Da primeira – canção que dá título ao disco e parece dialogar com “Uns”, de Caetano Veloso – à derradeira canção, Nem é Cid Campos dando forma sonora à forma verbal. Mas é mais que isso: há um desejo arcaico e moderno muito bem engendrado.
Não citei Caetano Veloso à toa. Caetano gravou “Circuladô de fulô”, trecho da proesia Galáxias, de Haroldo de Campos. “Fecho encerro”, gravada por Cid como canção, vem da mesma obra literária de Haroldo. E é sobre esse trabalho de musicar a palavra escrita que quero comentar, já que Cid Campos tem desempenhado tão bem tal função poemusística. Em Nem, por exemplo, temos textos de Rimbaud, Emily Dickinson e Augusto de Campos. Além do já mencionado texto de Haroldo.
No livro Galáxias o trecho que inicia com “Fecho encerro”, metalinguisticamente, encaminha o texto para o fim. Por sua vez, a voz de Cid Campos entra no ritmo passional de um livro que finda. Ele faz da voz de um narrador literário a verdade do sujeito da canção que encerra o disco.
Para tanto, Cid Campos alonga vogais e faz semi-pausas e pausas próprias da voz, do ato de falar e cantar. Ele age sobre um texto sem vírgulas nem pontos finais. Um texto que pede a interferência do leitor na construção significativa do percurso sonoro. Aliás, Galáxias é uma obra cuja estrutura permite mobilidades e construção de significações no trânsito entre materialidades possíveis. O trecho que se inicia com “Fecho encerro” destacado por Cid Campos é grafado em itálico, assemelhando-se à primeira página (“E começo aqui”), mas diferenciando-se do restante de todo o miolo (travessia) do livro. Encerrar como quem inicia. Eterno retorno.
Importa lembrar que, encartado ao livro Galáxias, o CD Isto não é um livro de viagem, traz Haroldo de Campos lendo sua escrita. Inclusive a página “Fecho encerro”. Mas se ali a voz do poeta é fala, com Cid Campos é canto, gestualidade cancional. Com Haroldo, a cítara de Alberto Marsicano; com Cid, além de suas guitarras, seu baixo e seu teclado solo, temos o teclado de Moisés Alves e a bateria de Alexandre Damasceno, oferecendo os sons cósmicos que as galáxias pedem. Em Haroldo, a entoação. Em Cid, a canção, a semiótica da melodia em movimentos de distensão e tensão: andamentos, deslocamentos, acelerações, recuos, pausas.
Como sabemos, o fato de alguns poemas terem a palavra “canção” no título não confere cancionalidade implícita ao poema. Aliás, temos canções cujos títulos são “Canção necessária”, “Canção que morre no ar”, “Canção pra você viver mais”. Bem como “Poema”, “Estado de poesia”, “Poesia”. Adriana Calcanhotto, por exemplo, inspirada por um poema de Wally Salomão, lançou um disco chamado A fábrica do poema (1994). É por aí, nessas afirmações da impureza das linguagens que podemos ouvir Cid Campos cantando, por exemplo, “me libro enfim neste livro”. O disco como livro: “como” do verbo comer. Temos aqui um questionamento das categorias, ou das tipologias, livro e disco.
Dito de outro modo, quando lemos mentalmente um poema imaginamos entoações, melodias, mas cabe a um cancionista traduzir, ou não, a linguagem verbal em linguagem cancional. Defendo que não devemos mais confundir poemas que pagam tributo às cantigas medievais – de amor, de amigo, de maldizer –, e que mais tarde foram assentadas em canções líricas populares e, depois, com a difusão da escrita, em poemas lírico/dramáticos, com aquilo que hoje entendemos – depois de Luiz Tatit, principalmente, aqui no Brasil – por canção.
Achar que canção é poesia musicada reduz a potência da canção enquanto linguagem artística e mantém a hiper-valorização da poesia escrita. Creio que Caetano Veloso respondeu a essa, a meu ver, falsa dicotomia quando cantou “Minha música vem da / Música da poesia de um poeta João que / Não gosta de música // Minha poesia vem / Da poesia da música de um João músico que / Não gosta de poesia”. Ou seja, canção é um “outro retrato”, aglutinador, porém diferente. Desse modo, o que Cid Campos apresenta em “Fecho encerro” é canção.
É importante observar: Galáxias não é um livro de canções. Assim como um livro de partituras, ou de letras de canções, também não é um livro de canções. A canção só é no instante-já cancional. No entanto, exatamente, por não ser canção, Galáxias pode ser, digamos, cancionável no trabalho do cancionista. Cid Campos demonstra isso.
Reforço: a letra de canção não é a canção. Por sua vez, a versão instrumental de uma canção é música, é trabalho do musicista, não do cancionista (que pode acumular funções), deixou de ser canção, já que suprimiu a voz de alguém cantando. Canção é performance vocal calcada na intencionalidade do emissor e na necessidade do receptor. Essa definição, obviamente, difere, por questões contextuais, sociais, éticas e estéticas, por exemplo, das trovas de Arnaut Daniel, dos lieder e, também, das songs without words de Schubert ou Mendelssohn.
Em “Fecho encerro”, Cid Campos aponta a restauração da voz do texto, a partir dos esquemas rítmicos oferecidos pelo próprio texto, libertando-o do silêncio da página e/ou da memória sonorafetiva do leitor. Cid encontra uma forma-canção transmissora da experiência do encerramento, ao capturar uma das possíveis dinâmicas vocais do texto. Ele localiza a abertura para a ponte que liga uma linguagem (palavra escrita) à outra (palavra cantada), posto que as linguagens estejam sempre negando suas auto-suficiências. Nesse sentido, uma está sempre aberta a outra, puxando a outra, supondo a outra.
Memória e imaginação são mecanismos utilizados pelo cancionista a fim de “melhor cantar”. Vem daí a eficácia do trabalho de Cid Campos. Não é o texto cabendo na voz, porém, o amálgama. Aqui não interessa colocar a poesia escrita em primeiro lugar. A canção é voz. Não saber sobre o que a letra trata também é um modo de ouvir canção. Dançar é outro jeito de ouvir. Viajar no som também. A palavra-som já basta. Não é preciso a palavra-sentido. Feito desse modo, o gesto de “musicar um poema” é, em si, uma teorização do próprio gesto, um ordenamento, uma posição ética, um investimento estético. No mais: “me zero não canto não conto não quero”.

***


(Cid Campos / Haroldo de Campos)

Fecho encerro reverbero aqui me fino aqui me zero não canto não conto não quero anoiteço desprimavero me libro enfim neste livro neste vôo me revôo mosca e aranha mina e minério corda acorde psaltério musa não mais não mais que destempero joguei limpo joguei a sério nesta sêde me desaltero me descomeço me encerro no fim do mundo o livro fina o fundo o fim o livro a sina não fica traço nem sequela jogo de dama ou de amarela cabracega jogo da velha o livro acaba o mundo fina o amor despluma e tremulina a mão se move a mesa vira