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27 junho 2014

Lá e cá

Moreno Veloso tem feito dos experimentos com os extratos do Recôncavo Baiano e das metrópoles uma característica de sua obra. Entre o solo e o coletivo, faca-e-prato e equipamentos eletrônicos há o engenho de um cancionista atento ao mundo contemporâneo e disposto a criar relicários sonoros cheios de (auto)ninar e acalantos.
Cego e guia em cada canção, procurando o sossego e o amor, como sugere em "Lá e cá" (Rodrigo Bartolo, Moreno Veloso e Quito Ribeiro), Moreno parece sugerir a convivência criativa do "perto" com o "distante", já que na voz o espaço é posto em suspensão.
Temos no disco Coisa boa (2014) sujeitos cancionais que, chapinhando nas poças d'água ("Um passo à frente", de Moreno Veloso e Quito Ribeiro) e olhando a aranha fazendo teia ("Num galho de acácias" versão de J. Carlos para "Un peu d'amour", de Stanislao Silesu e Nilson Fysher), transmitem ao ouvinte sensações e ambiências infantis, como a decupar o urbano, usado aqui como metáfora do adulto ensurdecido.
O urbano não é negado, ao contrário, é absorvido, seja nas filigranas sonoras oferecidas pelos equipamentos eletrônicos, seja no desenho da solidão tematizada nos vazios (silêncios) entre os acordes. "Vez em quando eu me pego sozinho / a cantar / uma melodia pra me ninar (...) E da minha voz se faz um poema / pra guardar / dentro de uma concha branca do mar", canta. E mais adiante: "Eu quero chegar / A um dia dizer: / De tanto ficar só, / Vivo bem sem você" - versos de "Hoje" (Moreno Veloso), canção que deu nome a disco de Gal Costa (2005).
Seja a lembrança, seja a saudade dos folguedos do tempo de criança, há nos sujeitos cancionais gerados na voz de Moreno Veloso uma vontade de estar-criança, de estar na rua entre o asfalto e o mar. E que precisa de arrelia e de proteção. "Fico aqui a noite toda / Eu não vou sair daqui" ("Coisa boa", de Domenico Lancellotti e Moreno Veloso). Criança que revira as coisas da avó ("Não acorde o neném", de Domenico Lancellotti e Moreno Veloso) e as traduz para sua própria realidade, para o seu tempo-hoje.
Produtor e integrante fundamental de coletivos que têm repensado os modos de fazer canção no Brasil (+2 e Orquestra Imperial, por exemplo), Moreno canta in-paciências, lembranças e saudades reveladas "por um vento vindo de outro lugar", vento caymminiano amalgamando tradição e rupturas do gesto de cantar.
Há intimidade profunda entre o cantado e a voz que canta na tentativa de humanizar o mundo ao redor. No caso de "Lá e cá", a introdução instrumental se abre à enunciação de um texto que tematiza a feitura de canção, o equilíbrio entre melodia e poesia na voz que precisa ser guardada "dentro de uma concha branca do mar" à espera da audição ocasional. É metacanção, canção que, investigando o que é ser canção, sugere o que é ser humano.
Ressaca do Choque entre a água do mar e a água doce, o sujeito é ninado quando o outro escuta a canção guardada. "Quem ouviu os seus segredos não esquece / e quer cantar / essa melodia pra me ninar", diz. É quando há a troca de um sorriso por um beijo ("De tentar voltar", de Domenico Lancellotti e Moreno Veloso). É quando o empenho do cancionista encontra sua eficácia. E se "amores são águas doces" e "paixões são águas salgadas", como sugere o sujeito de "Memória das águas" (Roberto Mendes e Jorge Portugal), o sujeito de "Lá e cá" faz da vida a mistura dessas águas, dos espaços e dos tempos.

***

Lá e cá
(Rodrigo Bartolo / Moreno Veloso / Quito Ribeiro)

Vez em quando eu me pego sozinho
a cantar
uma melodia pra me ninar

É que nunca me cansei de sentir
e de lembrar
dessas ondas que caminham no ar

E da minha voz se faz um poema
pra guardar
dentro de uma concha branca do mar

E o destino dela foi revelado
desde lá
por um vento vindo de outro lugar

Quem ouviu os seus segredos não esquece
e quer cantar
essa melodia pra me ninar

E água doce vem sorrindo bonita
pra dançar
com quem junto a sua margem cantou

Em cada canção sou cego e sou guia
lá e cá
procurando o sossego e o amor