Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa
POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Ritmo e melodia no poema lido e
musicalizado”, de Judson Gonçalves de Lima.
O
trabalho de Judson Gonçalves de Lima procura por pontos de convergência, ou
divergência, entre o poema e a canção. Através da análise de poemas
musicalizados, o autor observa por exemplo a presença da fala no canto e como o
texto pode influenciar a organização da canção. O foco é a análise de
acentuação, frequência e a comparação da tessitura na fala (quando recitado) e
no canto (após o tratamento musical). O autor utiliza quatro exemplos de poemas
musicalizados: dois de Antônio Cícero, interpretados por Adriana Calcanhotto:
“Maresia” e “Água Perrier”; um de Haroldo de Campos e interpretado por Caetano
Veloso: “Circuladô de fulô”; e um de Manuel Bandeira e interpretado por Ney
Matogrosso: “Rondó do Capitão”. Todas canções são também comparadas com a
oralização feita pelos próprios poetas.
Com o objetivo de comparar os
dois usos da voz, o processo de comparação entre a voz falada e a cantada, o
autor utilizará dois softwares, para tornar o sonoro menos abstrato. Para
editar as partituras, foi usado o Finale, e para analisar as récitas através de
um gráfico, foi usado o SFS/ Wasp que irá decompor as sílabas das récitas no
programa, destacando pontos altos e baixos.
No verso de “Maresia” “O meu amor
me deixou” a curva melódica da canção segue e mesma curva melodica da fala. As
durações das sílabas acentuadas são maiores (duram mais) que as não acentuadas.
A partitura musical e o desenho melódico do gráfico da récita seguiram a mesma
lógica, mostrando, então, os detalhes sobre a musicalização do poema. Ou seja,
há dois pontos importantes a serem destacados: o repouso e a pausa na passagem
dos versos, sendo o repouso a redução de frequência ao fim da palavra e o
silêncio, a pausa (p. 58), em que se conclui que não há um final ascendente no
final dos versos, comum a música popular (p. 59). Segundo Judson, "alguns
compositores alteram algumas características do poema para facilitar a
musicalização" (p. 39). O verso "Era eu quem tinha partido" é
apontado como uma das maiores semelhanças entre récita e canto deste poema/canção,
visto que "as sílabas mais longas do verso lido (...) são as mesmas
sílabas cantadas com as notas mais longas" (p. 48), por isso "essa
canção é um bom exemplo de adequação do acento textual ao acento rítmico"
(p. 60).
Sobre a canção “Circuladô de
fulô”, Judson nota uma questão referente a estrutura do poema. A falta de
recorrências no texto, ou a sua não obviedade, pode complicar a composição de
esquemas para a canção. “Na música, sobretudo música popular, lida-se muito com
recorrências, e quando o texto é carregado de recorrências melódicas – como
rimas por exemplo –, métrica ou rítmicas (todas muito comuns em poemas), isso
parece facilitar a musicalização, já que essas recorrências acabam por servir
de base motívica na qual as frases musicais podem se apoiar. No caso de textos,
como o Circuladô de fulô, que aparentam não possuir essa recorrência, é preciso
descobri-las, no sentido mais literal da palavra. Na canção interiormente
analisada, Maresia, por exemplo, os versos e estrofes são bem definidos, isso
influenciou para que a música fosse composta de dois “esquemas harmônico-melódicos”
que se alternam entre uma estrofe e outra; mesmo os versos da primeira estrofe
sendo diferentes dos da terceira, a harmonia é a mesma e a melodia se assemelha
muito, o mesmo ocorrendo com a segunda e quarta estrofes” (p. 61).
É interessante perceber isso,
pois enquanto “Maresia” apresenta uma estrutura que poderíamos dizer “ideal”
para a canção popular, o texto original de “Circuladô de fulô” apresenta uma
estrutura mais “estranha” para a musicalização, demandando um trabalho
diferente do cancionista. “Circulado de fulô” não é um poema, mas uma prosa
poética (p. 63). Então, o desafio para o cancionista Caetano Veloso foi tentar
trazer para a canção o que Haroldo de Campos propõe no livro Galáxias. Caetano seleciona fragmentos
do texto que remetem a um canto de cantador nordestino (p. 66), preocupando-se
com a frequência e a acentuação, que mantém o lastro com a palavra falada, deixando-a
transparecer no canto.
Judson reflete sobre essa questão
baseado em Massini-Cagliari, para quem a própria divisão rítmica da língua — em
sílabas e acentos —, já se baseia em recorrências: na produção de sílabas e na
produção de acentos. Sendo assim, mesmo a ausência explícita de rimas, métrica
e outros usos de estrutura que tenha como efeito produzir recorrências dentro
do texto, a própria língua já terá intrínseca as recorrências. O "que nos
leva a crer que, podendo ser mais ou ser menos, a recorrência existe em
qualquer texto ou mesmo na fala cotidiana. Para uma canção, pode ser desnudado
esse padrão de recorrência para a própria facilidade de o compositor
organizá-la ritmicamente" (p. 62).
A canção inicia-se pelo refrão,
criado por Caetano, constituído por notas longas e definidas. Outra questão
pontuada é a diferença existente entre a acentuação utilizada por Campos e a
utilizada pelo cancionista, como pode ser verificada no segundo verso, em que
"deus" não é acentuado na voz de Caetano, mas é acentuada na récita
de Campos. Embora haja essa diferença quanto a acentuação, há algumas
semelhanças de acentos também, como se nota nas quartas sílabas e nas últimas
sílabas finais. Há na canção, um trecho em que as sílabas são cantadas de
maneira mais ligeira e então somos levados a refletir sobre o cuidado que é
preciso ter para que não se "comprometa a identidade (inteligibilidade) da
palavra" (p.74).
"Água Perrier" é mais
um poema de Antônio Cícero interpretado por Adriana Calcanhotto. O poema não
tem uma estrutura de métrica regular entre os versos. Portanto, assim como
ocorre na canção "Circuladô de fulô", em que Caetano precisou
"descobrir" uma maneira de estabilizar a melodia, Adriana estabelece
na canção uma forma de escansão do tipo A-A'-B-A'' (p. 97). A tessitura da fala
(do poeta) é maior que a do canto (da cancionista). Para Judson, "mesmo
que no processo de composição não tenha sido racionalizada a ritmicidade do
poema, ela parece ter sido determinante nas escolhas da cantora/compositora.
Embora o poema não apresente regularidade de recorrências imediatas, um padrão
métrico fixo e claro entre os versos, elas foram encontradas na composição
estrófica" (p. 106).
"Rondó do capitão" é um
poema de Manuel Bandeira, que foi musicalizado por João Ricardo, integrante do
grupo Secos & Molhados. Vocalista do grupo, Ney Matogrosso foi o
responsável por cantar o poema. Judson aponta os acentos do metro como sendo
uma característica forte do poema de Bandeira e que é bem marcada na récita, o
que não é percebido na canção, que segundo o autor, nem sempre são sentidos. Em
"Rondó do Capitão" a tessitura da fala é maior que na melodia da
canção. Judson anota que na canção há erros prosódicos que impossibilitam que
"sentimentos e sentidos" da entoação do texto sejam passados em sua
construção rítmica e melódica. Segundo o autor: “Do ponto de vista da presença
da oralidade no canto, podemos sugerir que a canção explora pouco, e é pouco
fiel, às possibilidades do texto. Não que a melodia devesse ser complexa, mas
no sentido em que a música é tão econômica em sua construção rítmica e melódica
que beira, durante muitos momentos da canção, a erros prosódicos. E as frases
musicais muito semelhantes não representem a entoação do texto, o que parece
impedir que os ‘sentimentos e sentidos’, impressos pelos poetas (através da
cuidadosa seleção das palavras) na 'música do texto', se realizem” (p. 93).
Um entendimento fixado desde o
princípio do texto de Judson é o de que não devemos subtrair a melodia da fala,
como bem já ensinaram Fiorin e Tatit. Muito menos a entoação da canção. Melodia
e entoação coexistem, marcando suas dessemelhanças mais por um maior enfoque em
determinados aspectos em detrimento de outros, sem limá-los completamente.
Destaque-se um lugar fronteiriço que faz parte da poética de alguns artistas
contemporâneos e que não conseguimos precisar se do canto ou da declamação. O
ocasional acompanhamento de instrumentos (ou de objetos imprevisíveis tornados
instrumentos; ou de ruídos indistintos na composição do ritmo) dificulta essa
delimitação mais ainda: o que por vezes percebemos, ao contrário, é um valor
dissonante, (propositalmente?) desarmônico, uma voz desvinculada como a de um
declamador perdido, apartada dos seus arredores. Uma tensão/insubordinação do
ritmo da fala ao ritmo da música em contraponto à adequação/subordinação mais
comum na música popular? Para ele é a existência de uma interpenetração da
ritmicidade própria do poema original com os ritmos/as melodias da récita e da
canção, mas sempre com uma especificidade de metro e melodia, pelo menos no
caso da récita e da canção, que as diferenciam.
Judson ressalta que o nosso
conhecimento nativo da língua portuguesa nos permite corrigir certos desvios de
acentuação com a ajuda da semântica, o que nos leva a não perceber certos
problemas de acentuação.
LIMA, Judson Gonçalves de. Ritmo e melodia no texto lido e musicalizado. Curitiba: UFPR, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário