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17 abril 2020

RESENHA: Ritmo e melodia no poema lido e musicalizado


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o texto “Ritmo e melodia no poema lido e musicalizado”, de Judson Gonçalves de Lima.

            O trabalho de Judson Gonçalves de Lima procura por pontos de convergência, ou divergência, entre o poema e a canção. Através da análise de poemas musicalizados, o autor observa por exemplo a presença da fala no canto e como o texto pode influenciar a organização da canção. O foco é a análise de acentuação, frequência e a comparação da tessitura na fala (quando recitado) e no canto (após o tratamento musical). O autor utiliza quatro exemplos de poemas musicalizados: dois de Antônio Cícero, interpretados por Adriana Calcanhotto: “Maresia” e “Água Perrier”; um de Haroldo de Campos e interpretado por Caetano Veloso: “Circuladô de fulô”; e um de Manuel Bandeira e interpretado por Ney Matogrosso: “Rondó do Capitão”. Todas canções são também comparadas com a oralização feita pelos próprios poetas.
Com o objetivo de comparar os dois usos da voz, o processo de comparação entre a voz falada e a cantada, o autor utilizará dois softwares, para tornar o sonoro menos abstrato. Para editar as partituras, foi usado o Finale, e para analisar as récitas através de um gráfico, foi usado o SFS/ Wasp que irá decompor as sílabas das récitas no programa, destacando pontos altos e baixos.
No verso de “Maresia” “O meu amor me deixou” a curva melódica da canção segue e mesma curva melodica da fala. As durações das sílabas acentuadas são maiores (duram mais) que as não acentuadas. A partitura musical e o desenho melódico do gráfico da récita seguiram a mesma lógica, mostrando, então, os detalhes sobre a musicalização do poema. Ou seja, há dois pontos importantes a serem destacados: o repouso e a pausa na passagem dos versos, sendo o repouso a redução de frequência ao fim da palavra e o silêncio, a pausa (p. 58), em que se conclui que não há um final ascendente no final dos versos, comum a música popular (p. 59). Segundo Judson, "alguns compositores alteram algumas características do poema para facilitar a musicalização" (p. 39). O verso "Era eu quem tinha partido" é apontado como uma das maiores semelhanças entre récita e canto deste poema/canção, visto que "as sílabas mais longas do verso lido (...) são as mesmas sílabas cantadas com as notas mais longas" (p. 48), por isso "essa canção é um bom exemplo de adequação do acento textual ao acento rítmico" (p. 60).
Sobre a canção “Circuladô de fulô”, Judson nota uma questão referente a estrutura do poema. A falta de recorrências no texto, ou a sua não obviedade, pode complicar a composição de esquemas para a canção. “Na música, sobretudo música popular, lida-se muito com recorrências, e quando o texto é carregado de recorrências melódicas – como rimas por exemplo –, métrica ou rítmicas (todas muito comuns em poemas), isso parece facilitar a musicalização, já que essas recorrências acabam por servir de base motívica na qual as frases musicais podem se apoiar. No caso de textos, como o Circuladô de fulô, que aparentam não possuir essa recorrência, é preciso descobri-las, no sentido mais literal da palavra. Na canção interiormente analisada, Maresia, por exemplo, os versos e estrofes são bem definidos, isso influenciou para que a música fosse composta de dois “esquemas harmônico-melódicos” que se alternam entre uma estrofe e outra; mesmo os versos da primeira estrofe sendo diferentes dos da terceira, a harmonia é a mesma e a melodia se assemelha muito, o mesmo ocorrendo com a segunda e quarta estrofes” (p. 61).
É interessante perceber isso, pois enquanto “Maresia” apresenta uma estrutura que poderíamos dizer “ideal” para a canção popular, o texto original de “Circuladô de fulô” apresenta uma estrutura mais “estranha” para a musicalização, demandando um trabalho diferente do cancionista. “Circulado de fulô” não é um poema, mas uma prosa poética (p. 63). Então, o desafio para o cancionista Caetano Veloso foi tentar trazer para a canção o que Haroldo de Campos propõe no livro Galáxias. Caetano seleciona fragmentos do texto que remetem a um canto de cantador nordestino (p. 66), preocupando-se com a frequência e a acentuação, que mantém o lastro com a palavra falada, deixando-a transparecer no canto.
Judson reflete sobre essa questão baseado em Massini-Cagliari, para quem a própria divisão rítmica da língua — em sílabas e acentos —, já se baseia em recorrências: na produção de sílabas e na produção de acentos. Sendo assim, mesmo a ausência explícita de rimas, métrica e outros usos de estrutura que tenha como efeito produzir recorrências dentro do texto, a própria língua já terá intrínseca as recorrências. O "que nos leva a crer que, podendo ser mais ou ser menos, a recorrência existe em qualquer texto ou mesmo na fala cotidiana. Para uma canção, pode ser desnudado esse padrão de recorrência para a própria facilidade de o compositor organizá-la ritmicamente" (p. 62).
A canção inicia-se pelo refrão, criado por Caetano, constituído por notas longas e definidas. Outra questão pontuada é a diferença existente entre a acentuação utilizada por Campos e a utilizada pelo cancionista, como pode ser verificada no segundo verso, em que "deus" não é acentuado na voz de Caetano, mas é acentuada na récita de Campos. Embora haja essa diferença quanto a acentuação, há algumas semelhanças de acentos também, como se nota nas quartas sílabas e nas últimas sílabas finais. Há na canção, um trecho em que as sílabas são cantadas de maneira mais ligeira e então somos levados a refletir sobre o cuidado que é preciso ter para que não se "comprometa a identidade (inteligibilidade) da palavra" (p.74).
"Água Perrier" é mais um poema de Antônio Cícero interpretado por Adriana Calcanhotto. O poema não tem uma estrutura de métrica regular entre os versos. Portanto, assim como ocorre na canção "Circuladô de fulô", em que Caetano precisou "descobrir" uma maneira de estabilizar a melodia, Adriana estabelece na canção uma forma de escansão do tipo A-A'-B-A'' (p. 97). A tessitura da fala (do poeta) é maior que a do canto (da cancionista). Para Judson, "mesmo que no processo de composição não tenha sido racionalizada a ritmicidade do poema, ela parece ter sido determinante nas escolhas da cantora/compositora. Embora o poema não apresente regularidade de recorrências imediatas, um padrão métrico fixo e claro entre os versos, elas foram encontradas na composição estrófica" (p. 106).
"Rondó do capitão" é um poema de Manuel Bandeira, que foi musicalizado por João Ricardo, integrante do grupo Secos & Molhados. Vocalista do grupo, Ney Matogrosso foi o responsável por cantar o poema. Judson aponta os acentos do metro como sendo uma característica forte do poema de Bandeira e que é bem marcada na récita, o que não é percebido na canção, que segundo o autor, nem sempre são sentidos. Em "Rondó do Capitão" a tessitura da fala é maior que na melodia da canção. Judson anota que na canção há erros prosódicos que impossibilitam que "sentimentos e sentidos" da entoação do texto sejam passados em sua construção rítmica e melódica. Segundo o autor: “Do ponto de vista da presença da oralidade no canto, podemos sugerir que a canção explora pouco, e é pouco fiel, às possibilidades do texto. Não que a melodia devesse ser complexa, mas no sentido em que a música é tão econômica em sua construção rítmica e melódica que beira, durante muitos momentos da canção, a erros prosódicos. E as frases musicais muito semelhantes não representem a entoação do texto, o que parece impedir que os ‘sentimentos e sentidos’, impressos pelos poetas (através da cuidadosa seleção das palavras) na 'música do texto', se realizem” (p. 93).
Um entendimento fixado desde o princípio do texto de Judson é o de que não devemos subtrair a melodia da fala, como bem já ensinaram Fiorin e Tatit. Muito menos a entoação da canção. Melodia e entoação coexistem, marcando suas dessemelhanças mais por um maior enfoque em determinados aspectos em detrimento de outros, sem limá-los completamente. Destaque-se um lugar fronteiriço que faz parte da poética de alguns artistas contemporâneos e que não conseguimos precisar se do canto ou da declamação. O ocasional acompanhamento de instrumentos (ou de objetos imprevisíveis tornados instrumentos; ou de ruídos indistintos na composição do ritmo) dificulta essa delimitação mais ainda: o que por vezes percebemos, ao contrário, é um valor dissonante, (propositalmente?) desarmônico, uma voz desvinculada como a de um declamador perdido, apartada dos seus arredores. Uma tensão/insubordinação do ritmo da fala ao ritmo da música em contraponto à adequação/subordinação mais comum na música popular? Para ele é a existência de uma interpenetração da ritmicidade própria do poema original com os ritmos/as melodias da récita e da canção, mas sempre com uma especificidade de metro e melodia, pelo menos no caso da récita e da canção, que as diferenciam.
Judson ressalta que o nosso conhecimento nativo da língua portuguesa nos permite corrigir certos desvios de acentuação com a ajuda da semântica, o que nos leva a não perceber certos problemas de acentuação.

LIMA, Judson Gonçalves de. Ritmo e melodia no texto lido e musicalizado. Curitiba: UFPR, 2007.

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