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27 agosto 2023

A solidão tropical


A epígrafe do livro A SOLIDÃO TROPICAL é precisa daquilo que será lido: "quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes do tudo, deve espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como quem revolve o solo", de Walter Benjamin, em "Rua de mão única". Desde aí até as considerações finais sobre o modo como José de Alencar, "atento e polêmico, de seu gabinete flanou por terras próximas e distantes, povoando com a imaginação o imenso território da solidão brasileira", a autora Lúcia Helena questiona as fundações da identidade nacional no Romantismo brasileiro. Como pode um brasileiro encontrar-se consigo mesmo? A questão atravessa os textos do livro, enredando quem lê na trama artificial de nossa singularidade, pensando uma literatura a serviço do Brasil e para os brasileiros. O que isso significa de apagamento e ruína? O que uma obra contém de seu tempo e como essa contenção a coloca no cânone literário? Qual é a importância do Romantismo para a emergência e permanência do critério nacionalista na construção do cânone literário brasileiro? Quais os diálogos entre historiografia oitocentista e historiografia modernista? Essas e outras perguntas cruciais são postas e enfrentadas com originalidade e rigor. A SOLIDÃO TROPICAL emula aqui que Joaquim Nabuco anota em "Minha formação": "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou".

20 agosto 2023

Totens e tabus da modernidade brasileira

A professora Lucia Helena é dessas pessoas que podem, sem pejo, dizer "quando cheguei aqui era tudo mato". O "aqui", no caso, é a "vida acadêmica". Desde o radical e luminoso, porque ensaia resposta à pergunta "como pode um brasileiro encontrar-se consigo mesmo?", sob o título "A solidão tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade", até textos sobre autores mais contemporâneos, passando pelo incontornável "Nem musa nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector" e o "A cosmo: agonia de Augusto dos Anjos" (acho que o primeiro que li, por se tratar de escritor meu conterrâneo), todos são livros de referência, partem de hipóteses originais, antecipam muito do que ainda hoje é mote de teses e cursos nas Letras. Destaco TOTENS E TABUS DA MODERNIDADE BRASILEIRA: símbolo e alegoria na obra de Oswald de Andrade porque, além de ser o resultado da tese de doutorado da professora Lucia Helena, acabo de orientar uma dissertação sobre o poeta modernista e a releitura deste livro está fresca na mente. Concordemos ou não com suas reflexões, a "vitalidade ensaística" da autora, como destaca o professor Eduardo Portella na Apresentação, é inspiradora e demonstra o equilíbrio entre rigor e afeto com que devemos enfrentar criticamente o corpus literário, a "secura anti-lírica e paródica" do homem do pau-brasil. Sem medo, nem esperança, a voz ensaística de Lucia Helena tem uma certa liberdade que hoje nos falta na "vida acadêmica" pautada pela produtividade acrítica.

13 agosto 2023

Uma literatura antropofágica


No livro "Verdade tropical" (1997), Caetano Veloso escreve que "(...) são poucos os momentos na nossa história cultural que estão à altura da visão oswaldiana. Tal como eu a vejo, ela [a ideia do canibalismo cultural] é antes uma decisão de rigor do que uma panaceia para resolver o problema de identidade do Brasil. A poesia límpida e cortante de Oswald é, ela mesma, o oposto de um complacente 'escolher o próprio coquetel de referências'. A antropofagia, vista em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de excelência na fatura), não um drible na questão". Em alguma medida, é exatamente isso que a professora Lucia Helena antecipa e investiga no livro UMA LITERATURA ANTROPOFÁGICA (1982), ou seja, a autora responde o que o adjetivo significa, sem drible no tabu da "dependência cultural". Tomando a antropofagia enquanto ethos da nossa literatura e vertente de nossa cultura, Lucia Helena mapeia e analisa a poesia atribuída a Gregório de Matos, a poesia de Augusto dos Anjos e Mário e Oswald de Andrade (além dos manifestos e do teatro desse, e do Macunaíma daquele), a fim de defender a antropofagia enquanto dicção carnavalizante nossa, muito nossa.

06 agosto 2023

Diário confessional


O melhor do DIÁRIO CONFESSIONAL de Oswald de Andrade é a autorrevisão que o autor do "Manifesto antropófago" faz de seu pensamento sobre a singularidade do Brasil: "Estou convencido de que só a Antropofagia tem razão. Leio um lindo livro de Hesnard, que foi quem introduziu Freud em França. Ele chega às portas da Antropofagia. Mas tropeça no marxismo e para" (07/05/1951). O resto é uma avalanche de tristeza pequeno-burguesa: ressentimento. Como sabemos, só a partir da montagem de "O rei da vela", feita em 1967 pelo Teatro Oficina, que se deu um dos primeiros reconhecimentos públicos da obra de Oswald. Aliada à leitura crítica dessa obra feita pelos poetas concretos, o cinema de Glauber Rocha e a Tropicália musical. Interessante observar como a crítica dos desdobramentos do marxismo une dois importantes escritores do século XX: "Até Marx, / atrelado à rubra moldura, / arrastava os grilhões da usura", escreveu Maiakóvski em "Sobre isto". Aliás, a obra crítica e irônica de Oswald conversa sobremaneira com a ética e a estética de Maiakóvski. Ambos têm o ideal comunista por base: um comunismo comunitário, coletivo, horizontal. A crítica às pessoas da sala de jantar, ocupadas em nascer e morrer, é evidente no pensamento dos dois. Isso está no cerne da obra de Oswald de Andrade, para quem "O povo no Brasil não tem sentimento de culpa (matriarcado). Na Rússia, só tem sentimento de culpa (ortodoxia patriarcal)" (01/04/1951). Grande parte do DIÁRIO CONFESSIONAL é testemunho do embate entre o pensador de olhos livres e ouvidos abertos com a urgência das coisas pequeno-burguesas, cotidianas - contas, dívidas, grana, mágoa, culpa. "Resiste / Coração de bronze", repete e repete Oswald, entre 1948 e 1954. É louvável o trabalho de organização feito por Manuel da Costa Pinto.