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13 maio 2016

Desbunde geral



Sob uma base sonora pscodélica, Os Mutantes cantavam em 1972: "Estava passeando / Mascando chiclets / Quando eu vi na minha frente / Uma perna inesquecível / Eu vi também uns olhos / De raro esplendor / Que diziam: Venha logo, / E me beije, meu amor! / Yeah, yeah, yeah, yeah / Que beijo muito louco / Eu desbundei".
Segundo os dicionários, desbundar é perder o auto-controle, perder as estribeiras, tirar o disfarce, causar espanto e impacto. Daí a possibilidade de relacionar o desbundado e o louco, alienado e vagabundo. A imagem do hippie estadunidense servirá de modelo para a dicionarização do desbundado entre nós: cabelos longos, roupas largas, uma flor em uma das mãos e o símbolo "paz e amor" na outra mão.
Sobre esse aspecto, Caetano Veloso escreve em Verdade Tropical, que desbunde é "esse nome que a contracultura ganhou entre nós - a bunda tornada ação com o prefixo des a indicar antes soltura e desgoverno do que ausência - deixava o hip - quadril - dos hippies na condição de metáfora leve demais. Desbundar significava deixar-se levar pela bunda, tomando-se aqui como sinédoque para "corpo" a palavra afro-brasileira que designa essa parte avizinhada das funções excrementícias e do sexo (mas que não se confunde totalmente com aquelas nem com este), sendo uma porção exuberante de carne que, não obstante, guarda apolínea limpeza formal".
O fato é que, vivendo o sufoco do regime militar, o desbundado se via numa encruzilhada: mudar o mundo ou "curtir um barato"? Diferente da esquerda armada, os desbundados não pretendiam tomar o poder, ou impor um modelo de sistema melhor. Ao contrário, os desbundados queriam cair fora de todo e qualquer sistema.
Fazendo uso das estéticas convergentes da Tropicália, o desbundado vivia no corpo seus ideais de contracultura e de contestação dos modos de vida ocidental. A fuga pelo misticismo, orientalismo, terapias alternativas, psicologia corporal, sexualidade libertária e ecologia regiam a ética dos desbundados pós-tropicália. Fuga, nesse caso, é mais o reconhecimento do fracasso das velhas formas de viver e menos uma recusa do enfrentamento dos problemas. Se a revolução implicava em mudança nas instituições, os desbundados resistiam no e pelo devir deleuziano: algo da ordem do inapreensível, do inclassificável, do “ir indo” visceral do movimento, do deslocamento da asfixia paralisante. 
Mas, ao contrário da energia permanentemente solar imposta à imagem dos desbundados, eles pareciam agir entre aquilo que Oswald de Andrade chamou de "uma consciência participante" e "uma rítmica religiosa". Agiam "contra todos os importadores de consciência enlatada”, buscando “a existência palpável da vida", como também escreve Oswald no seu "Manifesto Antropófago". Essas expressões servem para pensarmos o desbundado, para além do lugar comum.
A consciência da falência dos modelos disponíveis levava o desbundado - sendo de esquerda - a questionar os procedimentos da própria esquerda. Ou seja, o desbundado era marginal por excelência, se podemos usar essa contraditória expressão, pois afrontava tanto a direita conservadora, quanto a esquerda militante; tanto o regime militar, quanto quem combatia o regime com a luta armada. Talvez a canção que melhor sintetize essa ideia seja “Maluco beleza”, de Raul Seixas e Cláudio Roberto: “e esse caminho que eu mesmo escolhi / é tão fácil seguir por não ter onde ir / controlando a minha maluquez misturada com minha lucidez”, dizem os versos.
Coube ao desbundado sonhar com uma nova vida, mais espiritual e menos materialista. O ano de 1974 é bastante significativo dessa "realidade paralela", dessa terceira margem proposta pelos malucos-beleza da época. Por exemplo, lembremos dos Dzi Croquettes nublando as fronteiras entre feminino e masculino; dos Secos e Molhados e suas misturas de rock, psicodelia caipira, violões folk, Bob Dylan, estética glam, vivendo "entre os sacis e as fadas"; da sociedade alternativa cantada por Raul Seixas - “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”; da imunização racional de Tim Maia; das elucubrações alquímicas de Jorge Ben - “os alquimistas estão chegando”; do realismo mágico, da diáspora nordestina e do isolamento do imigrante em Ednardo: “Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / eles são muitos / mas não sabem voar”; e do submundo dos “entendidos” de Edy Star - "Chega de brincadeira / já estamos bem-entendidos / concubinados, convencidos / que para um bom entendido / meia cantada basta”.
Voltando um pouco no tempo, ainda em 1968, e voltando a citar Caetano Veloso, lembremos que é desse artista os versos "Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento", hino da contracultura desbundada, que se justapõem aos versos de "Caminhando e cantando e seguindo a canção" ("Pra não dizer que não falei das flores"), de Geraldo Vandré. Se o sujeito da canção de Vandré ainda acredita num levante coletivo - a letra está na segunda pessoa do plural -, o sujeito da canção de Caetano foca em ações individuais: "Eu vou!". Aliás, nessa mesma letra de Caetano temos os versos que parecem ser a síntese do projeto (inconsciente?) dos desbundados: "Por entre fotos e nomes / Sem livros e sem fuzil / Sem fome sem telefone / No coração do brasil".
Também em "Alegria, alegria" - essa canção do elogio à dupla alegria, à alegria duplicada, uma alegria que, de acordo com Clement Rosset não nega a tristeza - temos os versos "Ela nem sabe até pensei / Em cantar na televisão / O sol é tão bonito / Eu vou". Essa afirmação nietzschiana da vida e, principalmente, esse uso dos meios de comunicação de massa, num período em que a televisão servia de instrumento de propaganda do golpe, incomodava bastante a determinado setor da esquerda. Não esqueçamos que “desbunde” surge como um termo pejorativo, quase um xingamento, entre os jornalistas que resistiam ao golpe. Só muito mais tarde essa esquerda vai incorporar as narrativas dos desbundados.
Nesse sentido, a pop music, surgida em meados da década de 1950 na imprensa inglesa para definir o rock’n’roll e os estilos musicais que ele influenciou, incorpora os signos do desbunde. Vale lembrar que "pop era música para consumo maciço, na forma de canção, de duração curta (dois a quatro minutos, em média), escrita em forma simples de estrofe-refrão-estrofe e com repetições de partes, visando a rápida assimilação pelo ouvinte. Era, basicamente, uma canção para tocar no rádio e dirigida ao público jovem", escreve André Barcinski, no livro Pavões misteriosos.
Para Heloisa Buarque de Hollanda, em Impressões de viagem, "os que se recusam a pautar suas composições ou apresentações nesse jogo de referências ao regime, ou que preferem não adotar o papel de porta-vozes heróicos da desgraça do povo, são violentamente criticados, tidos como 'desbundados', 'alienados' e até 'traidores'". Caetano Veloso, que em “Odara” (1977) cantou "deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara / minha cara minha cuca ficar odara /  deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara" e Gilberto Gil, que em "Realce" (1979) cantou "realce / quanto mais purpurina, melhor / realce / com a cor do veludo / com amor, com tudo / de real teor de beleza", serviram para reforçar esses argumentos críticos.
Passados tantos anos, não é à toa que no filme Tatuagem (2013), ao resgatar esse período de nossa história para narrar o amor entre um jovem soldado e um desbundado, o diretor Hilton Lacerda recupere essa ambiência amalgamada de ideais de fraternidade, amor à arte, sustentabilidade, anticonsumismo e pacifismo. O fictício coletivo Chão de estrelas é uma representação exata das ilhas de calor humano criadas pelos desbundados. Aliás, é ainda Caetano Veloso, em "Podres poderes" (1984), quem canta: "eu quero aproximar o meu cantar vagabundo daqueles que velam pela alegria do mundo, indo mais fundo". E quem são esses que velam pela alegria (alegria) do mundo? O sujeito da mesma canção responde: "índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes".
Não é à toa, portanto, que um dos hinos do Chão de estrelas fílmico seja "Desbunde geral", de Johnny Hooker. Assim como os desbundados, Hooker entende bem o aforismo oswaldiano: "Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval". Hooker traz para a cena os sons e os ritmos de corpo dos carnavais de Recife. "Me assumo, me jogo, me arrisco de fato", ele canta noutra canção do disco sarcasticamente intitulado Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito! (2015). Disco que mistura David Bowie a Dona Onete, Caetano Veloso a Madonna. Disco que é um híbrido entre o pop, o cafona e as narrativas cujas pautas são as liberdades individuais. E isso passa pela sensualização da linguagem no corpo.
Esse "corpo todo carnaval" cantado por Hooker, em versos como "vem, a noite inteira / descendo ladeira / no maior festival / e a gente se pega, se bole e se morde", dialoga com os caetânicos versos "a gente se embala se embora se embola / só pára na porta da igreja / a gente se olha, se beija, se molha / de chuva suor e cerveja". Esse corpo que recebe o desbunde geral é o corpo das Mutações do sensível, para usar a feliz expressão que dá título ao livro de Paulo Tarso Cabral de Medeiros.
Vale ressaltar que, diferente do hippie estadunidense, o desbundado brasileiro tinha consciência (misturando maluquez com lucidez) de que a folia de seu corpo é "filho dos rituais das bacantes / do coro das tragédias gregas / das religiões afro-negras / das procissões portuguesas católicas", entre outros signos, como canta o Orfeu criado por Caetano Veloso para o filme de Cacá Diegues. O carnaval, essa segunda vida - paralela, marginal - serve de ambiência para afirmar que "o futuro é agora e a vida não freia / tem fé, amor, creia na vida futura / o desbunde é geral", como canta Hooker.
"Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada", escreveu Oswald. "Experimentar o experimental", disse Hélio Oiticica. O lance é "botar meu bloco na rua / brincar, botar pra gemer / gingar, pra dar e vender", como cantou Sergio Sampaio. O desbunde estava intimamente relacionado à ação performativa em seu instante-já, a um jeito de corpo: de Caetano Veloso interpretando “Tenho ciúmes de tudo” a Maria Alcina interpretando “Fio Maravilha”. E, se concordamos com Judith Buther, para quem uma performance que funciona é a que alcança o realismo a ponto de não poder ser lida, "pois ler significa rebaixar alguém, expondo o que não funciona no nível da aparência, insultando-o ou ridicularizando-o", pensar o desbunde, longe temporalmente de sua "era de ouro", já é algo fadado ao fracasso e ao erro.
Mas os gestos de desbunde, de dessacralização, de transformação do exótico em óbvio, do tabu em totem; essa mistura entre a lírica e a participação, o engajamento e a polifonia, a consciência de “subdesenvolvimento” e a antropofagia podem ser percebidos em outros artistas contemporâneos. Da “bicha, preta e pobre” Liniker ao "rapper gay" Rico Dasalam; da imagem do índio tecnizado em Jaloo ao empoderamento - "do gueto ao luxo / do luxo ao gueto" - de Karol Conká.
No Brasil, desbundar é resistir, é engendrar gestos antiprovincianos e ser contra a mentalidade conservadora e domesticadora dos corpos. É ainda a recusa dos discursos populistas, é criticar os projetos de tomada de poder, diante da certeza da falência do sistema. O desbundado faz do desbunde a crítica como resistência, a resistência como desvio, o desvio como enfrentamento. Afinal, como Raul Seixas e Os Mutantes cantaram: “Enquanto você se esforça pra ser / um sujeito normal e fazer tudo igual / eu juro que é melhor / não ser o normal / se eu posso pensar que deus sou eu”.

***

(Johnny Hooker)

Quando chegar fevereiro
Eu quero ser carnaval
Meu corpo no seu
No Desbunde Geral
Geral, Geral!

Vem,
A noite inteira
Descendo ladeira
No maior festival
E a gente se pega, se bole, se morde
Num chão de estrelas
Do meu corpo receba
O desbunde geral

Vem, Vem
Que meu corpo agora é todo carnaval
Vem, Vem
Quem não bole se sacode no Desbunde Geral

Vem balançando a bandeira
Levantando poeira
No maior festival
O futuro é agora e a vida não freia
Tenha fé, amor, creia
Na vida futura
O desbunde a geral