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26 fevereiro 2016

Baiana



Iemanjá é a orixá mais explicitamente cantada no Brasil. Não à toa, ela é considerada a grande mãe. Digo explicitamente porque a criatividade de nossos cancionistas gera canções em que significantes míticos aparecem impressos, por vezes, de modo bastante sutil na superfície das letras.
Hoje em dia, portanto, para cantar Iemanjá e apresentar elementos novos, ou seja, fazer a energia das águas (salgadas) ser ouvida de forma original, requer, além de criatividade, empenho com as discussões estéticas e éticas do contexto sócio-político-cultural. Emicida aceita o desafio. E faz isso evocando outra musa da canção brasileira, já tantas vezes e de diferentes formas evocada e cantada: a baiana.
Estou falando da canção “Baiana”, de Emicida e DJ Duh, gravada no disco Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa (2015). Nessa canção, Iemanjá se presentifica como o entrecruzamento da crítica social e da valorização da África. E a baiana transcende os estereótipos e revela sua promissora beleza ancestral.
Convidar Caetano Veloso para dividir os vocais do refrão da canção e fazer os sons sirênicos que atravessam toda a canção ajudou a ampliar os cruzamentos geográficos: o baiano Caetano cantou "Sampa" e agora o paulista Emicida canta "Baiana". Além disso, a letra remete-nos à “água de Amaralina”, espaço mítico cantado por Raul Seixas (“Menina de Amaralina”), Clara Nunes (“Conto de areia”), Maria Bethânia (“Trampolim”), Mart'Nália ("Nas águas de Amaralina") e, claro, Caetano Veloso (“Tropicália”). Aliás, a estrutura cinematográfica e as sobreposições de imagens da letra de “Tropicália” aparecem refletidas na letra de “Baiana”. Em ambas, o sujeito da canção passeia os olhos pelo mundo, focando determinados pontos de beleza que mimetizam o seu estado de espírito.
Tudo para desaguar no refrão sinestésico: “A cabeça ficou louca / Só com aquele beijinho no canto da boca / Louca, louca, louca / Só com beijin”, um beijin”. Ou seja, de cantor da sereia, o sujeito da canção é recompensado com “o canto da sereia [que] vem de boa, eu à toa, é / Prejuízo, pretinha, briso nesse axé”. Um sustenta o outro no canto, no encantamento sonorovisual.
A baiana corporifica a paisagem. E vice-versa - "Salvador de cá, Salvador dali". Na primeira parte da letra, a baiana é ritmo – “Pirei em tua cor nagô, tua guia / Teu riso é Olodum a tocar no Pelô / Dia de Femadum, tambor alegria / Cê me lembra malê, gosto pra valer” – e magia – “Império Oió / A descer do Orum, bela Oxum / Cujo igual não há em lugar nenhum”. Na segunda parte, ela é tradição – “Maria pela mão de mestre Didi / Do sol de escurecer os tons de Kariri” – e tradução “É o mito Ioruba, bonito pode pá / Água de Amaralina, gota de luar / Deleite ocular, rito de passar / Me lembrou Clementina a cantar”.
Esses últimos versos remetem o ouvinte a: "Um dia a morena enfeitada / de rosas e rendas / abriu seu sorriso de moça / e pediu pra dançar. / A noite emprestou as estrelas / bordadas de prata / e as águas de Amaralina / eram gotas de luar”, da canção “Conto de areia”, de Toninho Nascimento e Romildo Bastos. De "morena" a "pretinha", são várias as referências à ancestralidade da canção, do ritmo e da cultura a descer do Orum. Tudo enfeita e encanta a baiana, a que é a primeira na posição do coração do sujeito cancional.
Para além dos atributos físicos, já fartamente estereotipados em prosa, verso e canção, a baiana é cantada em sua afirmação Ioruba. E eis que ressurge Iemanjá, “que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha / igual Nossa Senhora [Aparecida], padroeira minha”, e sua festa: “2 de Fevereiro, dia da Rainha / (...) / Banho de pipoca, colar de conchinha / Pagodeira em linha da Ribeira”.
De Salvador de cá, Salvador dali (fictícia e real, de longe, de perto, de dentro, surreal), Oxum, Iemanjá, Clementina e a baiana cantada por Emicida recuperam a História para renovar a certeza de um novo e iluminado protagonismo do feminino, engendrado sobre “uma realidade que mói”, a saber: “Só é feliz quem realmente sabe que a África não é um país (...) Respeito sua fé, sua cruz / Mas temos duzentos e cinquenta e seis Odus / Todos feitos de sombra e luz bela / Sensíveis como a luz das velas”, como Emicida canta em “Mufete”.

***

 (Emicida / DJ Duh)

Baiana cê me bagunço
Pirei em tua cor nagô, tua guia
Teu riso é Olodum a tocar no Pelô
Dia de Femadum, tambor alegria
Cê me lembra malê, gosto pra valer
Dique do Tororó, Império Oió
A descer do Orum, bela Oxum
Cujo igual não há em lugar nenhum
O branco da areia da Lagoa de Abaeté
Tá no teu sorriso, meu juízo perde o pé
O canto da sereia vem de boa, eu à toa é
Prejuízo, pretinha briso nesse axé

A cabeça ficou louca
Só com aquele beijinho no canto da boca
Louca, louca, louca, louca
Só com beijin', um beijin'
Minha cabeça ficou louca
Só com aquele beijinho no canto da boca
Louca, louca, louca, louca
Só com beijin', um beijin'

Baiana é bom de ter aqui
Na Salvador de cá, Salvador dali
Maria pela mão de mestre Didi
Do sol de escurecer os tom de Kariri
É o mito em Orubá, bonito pode pá
Água de Amaralina, gota de luar
Deleite ocular, rito de passar
Me lembrou Clementina a cantar
2 de Fevereiro, dia da Rainha
Que pra uns é branca, pra nóiz é pretinha
Igual Nossa Senhora, padroeira minha
Banho de pipoca, colar de conchinha
Pagodeira em linha da Ribeira, eia, Cajazeira
Baixada o tubo tudo, firme e forte na ladeira
Uma pá de cor, me lembrou Raimundo de Oliveira
Meu coração, tua posição, a primeira