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30 dezembro 2016

Discos 2016

Naná Vasconcelos e David Bowie, Sharon Jones e Elke Maravilha - Cauby, Azulão, Carmen, Prince, George, Cohen... Para um ano de tantas partidas, sonoridades intensas - o mel do melhor do "mundo orecular". 
Eis (em modo aleatório) a seleção dos discos de 2016 com os quais mais convivi: 

- Hóspede da natureza (Cátia de Françar); 
- Ascensão (Serena Assumpção); 
- Selvagem (Mariano Marovatto); 
- Monumento ao soldado desconhecido (Clima); 
- Tropix (Céu); 
- MM3 (Metá Metá); 
- Sabotage (Sabotage); 
- Banzeiro (Dona Onete); 
- Canções eróticas de ninar (Tom Zé); 
- O meu nome é qualquer um (Cesár Lacerda e Rômulo Fróes); 
- Duas cidades (Baiana System); 
- Orgunga (Rico Dalasam); 
- Canto de Marajó (Álvaro Lancellotti); 
- Remonta (Liniker); 
- Levaguiã terê (Vitor Araújo); 
- Abraçar e agradecer (Maria Bethânia)

15 dezembro 2016

Angolana



"Uma esperança morta", "uma ferida aberta", "um carnaval onírico". Elementos da alquimia (instalação) sonora engendrada pelos três amigos (para matar): Juçara Marçal, Thiago França e Kiko Dinucci - a alma tríplice do Metá Metá: "um carmim, um fim, um dó / um agogô, um pus, um som".
Esses e outros versos do disco MM3 (2016) refazem os caminhos do trio, de "um canto perdido na voz incomum", canto que é "marca da felina sonsa que tem asa". Felina que é orixá sirênico urbano, é "escultura quebrada, falo partido, presságio infeliz". A intertextualidade entre as letras das canções - nos versos, expressões e temas des-dobrados - afirma esse canto trágico e lírico da vida nua, crua, épica singular. "Meu amor, eu acho que se a gente for pensar / de repente nem dá tempo de se imaginar", canta a tríade.
Nesse sentido, pensar MM3 como uma instalação não será um erro grave. A autonomia da obra é estabelecida nas dobras dos elementos que retornam. Esses retornos não deixam o pensamento travar e fazem o ouvinte pensar a obra a partir da obra. Além de permitirem a experiência de um mundo criado, inventado, cantado. Ou seja, esse re-tornar (sinônimo de sonar, tonar e ecoar) restaura o desconhecimento de mundo do ouvinte. E presentifica um mundo novo, cujo saber vem do embate com a obra-tribo de "uma beleza disforme, sem rosto, sem nome, sem moderação".
Parêntese: a letra da canção "A imagem do amor", de Kiko Dinucci e Rodrigo Campos, oferece matéria para a reflexão sobre a questão trans: trans-sexual, trans-e, trans-formar, trans-piração. O canto do nascimento de "uma menina tardia dos guias de luz" é ambíguo e metafórico (como toda linguagem artística deveria ser) e tematiza um corpo trans-formado, uma "escultura quebrada" a ferir os "olhos desleais". Fim do parêntese.
Se "de repente nem dá tempo de imaginar", o disco MM3 é "circular dentro de si". Ou seja, esculturaliza o corpo vão, faz o certo virar errado e o vazio virar semente, pó. Assim, engolir o mundo e regurgitar é gesto próprio dessa "boca funil" que "faz o torto voltar a ser regra". Boca cujo som é a amálgama da voz, da guitarra e do sax da trindade artística.
Sendo a dissonância a única possibilidade de acesso à verdade, o som do Metá Metá se rebela contra as aparências da arte que se declara insuficiente para si mesma. Daí que, se a obra é autônoma, ela não é independente e contem o histórico. No caso, os arquétipos e seus ensinamentos ancestrais - a afirmação da desterritorialidade (antropofágica?) da potência afro. O mito da democracia racial aparece em contraponto à histórica distorção domesticadora da ancestralidade. A razão canônica versus a filosofia orecular.
A antropofagia é anterior ao conceito. Daí o pedido-motriz: "Me diz de onde é que vem a sede de cantar, a seiva da canção no sangue tom carmim?", da canção "Angolana", assinada pelo trio. Todo o trabalho da voz de Juçara Marçal, da voz e da guitarra de Kiko Dinucci, do sax de Thiago França, do baixo de Marcelo Cabral e da bateria de Sergio Machado é uma investigação disso.
A Angolana do título é musa evocada e cujo canto tríplice é traduzido no som produzido e dado ao público no disco. A Angolana é anterior à antropofagia. "Só podemos atender ao mundo orecular", anota Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago. Orecular é fazer do ouvido oráculo, é estar e ser à escuta. E aqui a Angolana é o oráculo a ser consultado, é "Angoulême" - bússola e desorientação, que "grita um verso a quem passar".
O enigma é mantido, pois os caracteres enigmáticos da Angolana provem do gesto de produzi-la na efemeridade do canto, da canção. Contra o messianismo sem messias do capitalismo, a Angolana está preservada em sua indeterminação matriarcal, no esforço artificialmente frustrado de cantar sua forma. Assim, a Angolana fala como as sereias nas mitologias: uma fala em ruidoso silêncio e que se aproxima do ouvinte através da circularidade do ordinário: "Pra o onde quer que eu vá / vou ao redor de mim", diz o sujeito.
Tomemos como exemplo desses retornos internos que miram "a sina de correr ao redor de mim (de si)" a cor vermelha, o encarnado, a carnação da canção que a Angolana é, o carmim espraiado em todo o disco. "Tem um carmim, um fim, um dó"; "pele tatuada, carne mutilada, o seu dente sangra", "o bisturi, a toalha"; "no sangue tom carmim"; "o vermelho do vinho"; "o be ri omon".
Lembremos que "a cor do pecado é rouge carmim", no canto de Alceu Valença; "eu não consigo evitar / desejo esse seu corpo / cheiro de carmim", canta Benito di Paula; "me suja de carmim / me põe na boca o mel", pede Wando; "uma ponta de cigarro / manchada de carmim / foi a única lembrança / que ficou pra mim", canta Ary Barroso; "guardo o lencinho branco / que esqueceste ao me abandonar / manchado assim pelo carmim que / tirei dos meus lábios quando te beijei", canta Dalva de Oliveira; "Eu quero, quero, quero, é claro que sim / iluminar o escuro com meu bustiê carmim / mesmo quando choro e adivinho que é esse o meu fim", afirma Maria Bethânia; "mamã mamãe, eu quero sim / quero ser mandarim / cheirando gasolina / na fina flor do meu jardim / assim como carmim / da boca das meninas / que a vida arrasa e contamina / o gás que embala o balancê" canta Moraes Moreira. E os exemplos continuam e se condensam no tom da "esperança morta", da "ferida aberta", do "carnaval onírico" do Metá Metá.
Vermelho, vermelhaço, vermelhusco, vermelhante, vermelhão. Se, como diz Riobaldo, "o sertão está em toda parte, o sertão está dentro da gente, levo o sertão dentro de mim e o mundo no qual vivo é também o sertão", a cor vermelha [o encarnado] tinge a escultura sonora erguida no tripé Metá Metá. E evoca os sertões narradores, da “barra do dia foi avermelhando o céu” (O quinze, de Rachel de Queiroz), à “catinga [que] estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas” (Vidas secas, de Graciliano Ramos).
"(Quem dera) respirar / no peito um novo ar / me perder por um caminho enfim", canta o sujeito de "Angolana". Localizamo-nos na platibanda de onde o sentinela Mano Légua mira e nos ensina a caminhar na trinca e pede: vamos lá, meu bem, experimente a terceira margem. Desse modo, os versos "a imagem do amor / não é pra qualquer / fere os olhos desleais / impele os imortais" são a síntese dos tempos de hoje, quando experimentar ainda é a única trans-perspectiva possível para quem deseja o axé das folhas ("l'ase ewe o"). E "se embrenhar no oco do vulcão / e acender o fogo do estopim: explodir, cantarolar".

***

(Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal)

Me diz de onde é que vem a gana de voar
A fome de mirar o horizonte, o fim
Me diz de onde é que vem
A sina de correr
Pra o onde quer que eu vá
Vou ao redor de mim

(Quem dera) respirar
No peito um novo ar
Me perder por um caminho enfim

Me diz de onde é que vem
A sede de cantar
A seiva da canção
No sangue tom carmim

Se embrenhar no oco do vulcão
E acender o fogo do estopim
Explodir, cantarolar
Malabares, bicho, cão
No vermelho do vinho
Na flecha partida
No chão
Querubim
  

12 novembro 2016

Benedita



“Uma coisa? Um homem? Uma mulher?”, pergunta-se Roland Barthes em S/Z (1992, p. 24) a cerca da personagem Sarrasine, de Balzac. E sugere: “un mot glissant” (p. 99). “Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher / Sou a mesa e as cadeiras desse cabaré / Sou o seu amor profundo, sou o seu lugar no mundo / Sou a febre que lhe queima, mas você não deixa / Sou a sua voz que grita mas você não aceita”, canta Ney Matogrosso – esse colecionador de peles – em “Mal necessário”, de Mauro Kwitko: canção que condensa elementos de cadeias significantes variadas, a fim de fazer surgir “o que não tem governo nem nunca terá”, como canta o sujeito de “O que será”, de Chico Buarque.
Ao responder a essa pergunta, ou seja, “o que é ser travesti?”, Indianara replica: “ser travesti é ser feliz, ser alguém... Travesti é luxo (...) é não ter os seus direitos respeitados. Isto já é um maltrato... Você ter que deixar sua família, seus amigos de infância, esquecer todas essas pessoas e, muitas vezes, até a família” (DENIZART, 1997, p. 19). Por sua vez, Pâmela afirma: “É alegria e pavor” (DENIZART, 1997, p.23).
Para Hugo Denizart, em Engenharia erótica, “a erotização de detalhes funciona como escudo contra a banalidade. Volumes, cavidades e plissados fazem um convite ao maior bem de todos: a pulsação da inquietude” (1997, p. 8). Corpo aberto, corpo barroco, logo, erótico e paródico, a travesti vive a tropical melancolia de quem se dispõe a “colocar a cara no sol”, a afrontar, a confrontar.
Trans-criação dos gêneros, “se o travesti inicialmente imitou uma mulher foi para livrar-se dela, como um dia se livrou do homem. A repetição sistemática – o ensaio – acaba por trans-formar o material: revela outro que não o referente”, escreve Marcia Cabral (In: DENIZART, 1997, p. 14).
O sujeito da canção “Close” (1984), de Erasmo Carlos e Roberto Carlos parece concordar: “Quase que ela engana minha zoom / seu pecado mais comum / uma pinta nos lábios carnudos / e um par de seios fartos e desnudos / uma maravilha de pequena / carioca cena / supervitamina pros reflexos / tão complexos de ambos os sexos”.
O refrão evoca a musa da canção – a modelo Roberta Close – e revela as contradições do desejo do sujeito que canta na voz de Erasmo Carlos: “dá um close nela / não fosse o gogó e os pés / a minha lente tava na dela / no conto da mulher nota 10 / dá um close nela”.
Mas, antes que o ouvinte “da história do tritão que era a sereia mais bonita” desconfie da macheza e questione o desejo do sujeito, este se justifica elencando feminilidades – “fêmea pra ninguém botar defeito / exemplar perfeito / um tesouro de mulher dourada / com sua tanga que pra mim é nada / esse inenarrável monumento / (...) / tão quente que o sol se ressente” e deixa evidente a interdição que ratifica seu lugar social: “não fosse o gogó e os pés (...)”.
Vale lembrar que a afirmação da travestilidade nas artes – do artista como travesti, Mefistófeles, Andrógino – encontrou um espaço fértil no Brasil dos anos 1970. Coube ao desbundado sonhar com uma nova vida, mais espiritual e menos materialista, mais libertária e menos moralista.
O ano de 1974 é bastante significativo dessa espécie de “realidade paralela”, dessa terceira margem proposta pelos malucos-beleza da época. Como exemplo, lembremos dos Dzi Croquettes nublando as fronteiras entre feminino e masculino e exaltando a androginia; dos Secos e Molhados e suas misturas de rock, psicodelia caipira, violões folk, Bob Dylan, estética glam, vivendo “entre os sacis e as fadas”; da sociedade alternativa cantada por Raul Seixas – “Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei”; da “imunização racional” cantada por Tim Maia; das elucubrações alquímicas de Jorge Ben – “os alquimistas estão chegando”; do realismo mágico, da diáspora nordestina e do isolamento do imigrante em Ednardo: “Não temas, minha donzela / Nossa sorte nessa guerra / eles são muitos / mas não sabem voar”; e do submundo dos entendidos [gíria para homossexual] de Edy Star – “Chega de brincadeira / já estamos bem-entendidos / concubinados, convencidos / que para um bom entendido / meia cantada basta”.
Todas essas subjetividades pareciam afirmar aquilo que Virgínia Woolf, em Um teto todo seu, citando Coleridge, sugeriu ao entender que as grandes mentes são andróginas: “a mente andrógina é ressoante e porosa, transmite emoções sem empecilhos, é naturalmente criativa, incandescente e indivisa” (WOOLF, 2014, p. 139). “Só um corpo polívoco suporta o trágico e longo trabalho de produzir um corpo não domesticado”, anota Denizart (1997, p. 9).
Por sua vez, composta por Caetano Veloso em 1977 para Ney Matogrosso, a canção “Três travestis” só foi registrada em 1982 por Zezé Motta, numa afetada e divertida interpretação, enfatizando suas rimas em /is/ e /a/. Na letra, o sujeito cria uma cadeia metonímica para traçar a imagem de três travestis que se expõem numa praça. Ele explora as especificidades da travesti como figura da noite e como produto de exportação do Brasil. Diz o final da letra: “Três travestis / três colibris de raça / deixam o país / e enchem Paris de graça”.
No livro Devassos no paraíso (2000), João Silvério Trevisan destaca que “o travestismo brasileiro exilado na Europa deixou pegadas também na música popular. Em 1999, o cantor Sting incluiu em seu novo álbum musical [Brand New Day] uma canção homenageando os travestis brasileiros, conhecidos durante as filmagens de um documentário sobre eles, realizado por sua mulher, em Paris” (TREVISAN, 2000, p. 423). A canção é “Tomorrow we’ll see”, com letra em primeira pessoa e cujo refrão dá suporte a um pedido de liberdade contra o julgamento moral: “Don’t judge me / You could be me in another life / In another set of circumstances / Don’t judge me / One more night I’ll just have to take my chances / And tomorrow we’ll see”.
Em resenha intitulada “Sting troca índios por travestis em novo CD”, publicada no jornal Folha de São Paulo (8 de outubro de 1999), a jornalista Malu Gaspar escreve que “o Brasil, que em outros tempos já serviu de palco para a militância política do cantor em favor da preservação da Amazônia e dos povos indígenas, agora está presente no disco em forma de homenagem aos travestis brasileiros que trabalham na França”.
Sting declarou ao jornal: “Para mim foi uma experiência extraordinária, porque percebi que eles estavam no show business. E eram orgulhosos de sua aparência”. Essa interpretação do fato social está refletida no trecho da letra em que ouvimos: “I’m walking the streets for Money / It’s the business of love, ’hey honey’ / C’mon, don’t leave me lonely, don’t leave me sad / It’ll be the sweetest five minutes you ever had”.
Impossível não fazer a intertextualidade com as “três travestis” cantadas pelo sujeito de Caetano Veloso: “Quem é que diz? / Quem é feliz? / Quem passa? / A codorniz / O chamariz / A caça”. O artigo que antecede a palavra “travesti” (o ou a?) merece atenção: confunde o entendimento. Caetano revolve isso sem definir: mantem a neutralidade e o enigma da figura “totalmente terceiro sexo”: “uma interrogação”.
Ao relacionar o corpo montado da travesti à leveza do colibri, o sujeito da canção enfatiza aspectos próprios de quem está em mutação, de quem não finca raízes. Ou cujas raízes já foram devidamente perdidas, proliferadas na elaboração de uma “obra em progresso”, em mutação.
Sobre o termo “montagem”, Indianara comenta que: “se montar” é uma palavra pesada. Parece que pega um pedaço de cada coisa e monta uma coisa qualquer... Seria “se transformar”, se transformando... Eles usam montagem porque ficou muito aquela coisa de travesti que usa peruca, usava... Há muito tempo atrás, não havia hormônio nem silicone, então o que eles faziam?... Usavam espuma... Aí, se montavam e se desmontavam... Montavam um corpo por baixo da roupa de desmontavam... Então, montava a hora que quisesse e desmontava a hora que quisesse... Vai para um show... Não precisa hormônio nem silicone, mas basta ficar 24 horas vestido com roupas femininas... Para mim, é travesti!” (DENIZART, 1997, p. 34).
A canção “Três travestis” voltou à cena no espetáculo BR-trans, de Silvero Pereira. Justapondo o resgate estético (antropofágico, carnavalizado, brasileiro) do travestismo em nossa cultura à luta pela conquista de uma sociedade mais justa, o ator-diretor afirma o “permanente estado de devir que constitui tanto a alteridade transgênera quanto a identidade brasileira”, como João Silvério Trevisan anota na orelha do livro BR-trans (PEREIRA, 2016).
O próprio Silvero Pereira escreve: “As músicas nesta peça têm um papel específico na construção da dramaturgia. Não as uso como ilustração ou criação de atmosfera, mas como parte essencial do texto. Elas são parte da dramaturgia. “Born to Die”, título da música de Lana Del Rey, em português significa ‘nascida para morrer’. É nesse contexto que se constroem as primeiras cenas do espetáculo: no campo da denúncia, da violência”. (PEREIRA, 2016, p. 48)
Por exemplo, depois de lê trechos do livro Pequenas epifanias, do escritor Caio Fernando Abreu, falando dessa “gente habitando aquela camada casca-grossa da vida” (PEREIRA, 2016, p. 28), o ator em cena canta a canção de Caetano Veloso, desdobrando a alegria trágica do corpo da “prostituta travesti” que chora “sem escândalo, sem gemidos nem soluços (...) devagar, de verdade” do conto de Abreu (2014, p. 54).
Em cena, esse corpo é rastro, contorno (superfície) desenhado a giz no chão. “Eu sou Ofélia, aquela que o rio não conservou. A mulher na forca, com as veias cortadas, a cabeça no fogão de gás. Ontem deixei de me matar. Estou só, com minhas coxas, meus seios, meu ventre. (...) Exumo do meu peito o relógio que foi o meu coração e vou para a rua, vestida em meu próprio sangue” (PEREIRA, 2016, p. 29), recita o ator enquanto apaga os corpos desenhados no chão.
“Esta Ofélia que quase se matou é um eco do caso de Oseias, transexual potiguar que fez um vídeo anunciando que iria tentar tirar a própria vida enquanto relatava a morte de uma amiga travesti. As palavras de Ofélia, em Hamlet Machine, de Heiner Müller, fazem ecoar em mim a dor de Oseias na vida real” (PEREIRA, 2016, p. 50).
O fato é que o frevo de Caetano Veloso – na voz de Zezé Motta, ou na voz de Silvero Pereira – humaniza subjetividades historicamente marginalizadas, “feita para apanhar, boa de cuspir”, como a Geni muda e messiânica da canção “Geni e o Zepelim”, do teatro de Chico Buarque.
Nessa perspectiva de expansão dos conceitos de gêneros e dos costumes, coube mais uma vez a Caetano Veloso desconstruir a figura do macho e que viria a ser o sujeito da canção “Close”, de Erasmo Carlos e Roberto Carlos, ao apresentar-se em 1973 na TV cantando a antológica “Tenho ciúmes de tudo”, de Orlando Silva, acompanhado de Ditinha Soares – vestida com roupa de palco e plumas.
Se Orlando, ao final de suas interpretações carregadas de letras dramáticas e bolero, ajoelhava-se para o “obrigado, minhas fãs”, Caetano ajoelhou-se aos pés da travesti negra e confessou: “Tenho ciúme até / da roupa que tu vestes”. Ora, se em Silva o sujeito tem ciúmes da cobiça de outros machos sobre a “criatura mais linda que meus olhos já viram”, em Veloso o sujeito quer usar as roupas que ela usa.
De objeto, Ditinha torna-se sujeito. Além disso, na versão de Caetano Veloso, o acompanhamento melódico eletrizante denuncia o quão espalhafatosas eram as performances de Orlando, confirmando a provocativa tese de Severo Sarduy, no livro Escrito sobre um corpo, para quem o macho é a travesti ao contrário. Isto é, ambos são estereótipos a serem problematizados: “Sou louco por ti, eu sofro por ti, te amo em segredo / adoro teu porte divino / pela mão do destino a mim tu viestes”, diz o sujeito interpretado por Caetano.
Ditinha nasceu em Puribi, no interior de São Paulo. Tinha doze irmãs (“acho que foi por isso que comecei a desmunhecar”), que a vestiam de mulher, pintavam, brincavam com ela, de comidinha, casinha e costureira. Ditinha se chamava Benedito e, aos oito anos, quando perdeu a mãe, era um menino pobre, feio, preto, que a molecada do lugar já gostava de gozar: “eu saia na rua e era um tal de todo mundo fazer ai ai, ui ui e de me chamar de florzinha, coisinha...” O consolo de Ditinha era a paixão por Antônio, o filho de um fazendeiro, com quem conviveu intimamente (“O meu primeiro e único amor”) até que ela deixasse a cidade” (Jornal EX, 11ª edição, 1974)
Publicado no jornal independente EX e assinado por José Antonio Nonato, o perfil de Ditinha Soares – a travesti negra invejada por Caetano Veloso – dá conta de apresentar a trajetória de grande parte das travestis: “As circunstâncias em que Ditinha abandonou o chamado hinterland foram trágicas: o pai surpreendeu-a em plena imitação de Carmen Miranda e apontou a porta da rua”.
Benedito transformou-se em Ditinha Soares, a Benedita cantada por outra Soares: Elza? No disco de 2015 – A mulher do fim do mundo – a cantora dá voz a uma Benedita que: “Ela leva o cartucho na teta / ela abre a navalha na boca / ela tem uma dupla caceta / a traveca é tera chefona”. O uso do termo “traveca” é menos pejorativo e mais afirmativo do impacto agressivo diante da personagem.
A voz de Elza Soares humaniza – torna do mundo, devolve ao destino da errância – a Benedita ex-Benedito. A canção de Celso Sim [que divide os vocais com Soares], Pepê Mata Machado, Joana Barossi, Fernanda Diamant encontra o suporte ideal na voz palimpsesta de Elza – sua capacidade de reutilização do suporte vocal dá vida a seres que não medem esforços para cantar – ir indo – até o fim.
Será a Benedita? Será x Beneditx? Ditinha Soares? “E se a escrita travesti aponta para a conformidade à superfície, para a difração, para o ‘mot glissant’, para uma ‘nomination en expansion’, para a máscara, para o que se furta, se esconde, para a abstração sensível, para o ideogramático, é certo que o que preside este corpo de escrita é a morte prévia da subjetividade do autor” (CHIARA, 2004, p. 222). E cita Indianara: “Na realidade, por dentro, eu sinto que já morri” (DENIZART, 1997, p. 61).
Na transição de “Benedito é uma fera ferida / traz na carne uma bala perdida / uma bala de prata guardada / pro meganha incauto” para a Benedita “homicida, suicida, apareceu, aparecida / é maldita, é senhora, é bendita, apavora / vem armada, não rendida, faz do beco sacristia / crack agora, não demora, joga pedra, nessa hora”, há um intermédio – a trapaça, a indefinição, o olhar nublado [tal Riobaldo diante de Diadorim] do sujeito da canção: “Ele que surge naquela esquina / é bem mais que uma menina / Benedita é sua alcunha / E da muda não tem testemunha” – versos cantados de modo mais passional (vogais mais alongadas), diferente da carga dramática do restante da vocoperformance de Elza e Celso.
Quem testemunha a mu-dança, a trans-formação? “A montagem tem que maravilhar: a exigência é menos existir e mais ser vista” (DENIZART, 1997, p. 14). Encontrando referências na Rainha Diaba interpretada por Milton Gonçalves, filme de 1974, dirigido por Antonio Carlos da Fontoura e inspirado nos mitemas em torno da figura mitológica e real de Madame Satã [também interpretada por Lázaro Ramos em filme dirigido por Karim Aïnouz, de 2002], a virilidade malandra e marginal de Benedita se vinga e libera o sujeito macho da canção “Close”. Além de dar poder às “três travestis”: da “bicha, preta e pobre” Liniker ao “rapper gay” Rico Dasalam, e do indígena androide em Jaloo – cancionistas contemporâneos preocupados com a trans-valorização da vida, criadores de trans-cançãos num país que ocupa o primeiro lugar no ranking de assassinatos de travestis e transexuais no mundo.
Em close-up nessas canções, Oeiras, Ditinha, Benedita [a bendita, "filho certo de tudo que é santo"], Diadorim... são oásis do reconhecimento do outro, da alteridade, da outridade possível.

***

(Celso Sim, Pepê Mata Machado, Joana Barossi, Fernanda Diamant)



Benedito não foi encontrado
Deu perdido pra tudo que é lado
Esse nêgo que quebra o quebranto
Filho certo de tudo que é santo

Benedito e uma fera ferida
Traz na carne uma bala perdida
Uma bala de prata guardada
Pro meganha incauto, arremata
Arremata, arremata, arremata

Ele que surge naquela esquina
É bem mais que uma menina
Benedita é sua alcunha
E da muda não tem testemunha

Ela leva o cartucho na teta
Ela abre a navalha na boca
Ela tem uma dupla caceta
A traveca é tera chefona

Benedita da zona é o crack
(É o crack, é o crack, é o crack)
A poliça miliça e o choque
Na surdina preparam o ataque
(É o crack, é o crack, é o crack)
Ela jura que era um achaque
Na bocada os cliente só rock
Ela morre ela, ela mata, ela é craque
(Ela é craque, ela é craque, ela é craque
Ela é craque, craque, craque)

Homicida, suicida, apareceu, aparecida
É maldita, é senhora, é bendita, apavora
Vem armada, não rendida, faz do beco sacristia
Crack agora, não demora, joga a pedra, nessa hora