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29 janeiro 2023

O som do rugido da onça


 Nesses dias em que a violência contra o povo Yanomami voltou à tona revelando nossa miséria, reli O SOM DO RUGIGO DA ONÇA, de Micheliny Verunschk, e voltou com força a sensação que tive nas primeiras leituras: a sensação da presença de uma voz para a qual nossos ouvidos estão tapados. O que Verunschk realiza, através da autorrepresentação artificial (porque escrita) da linguagem, que, sendo brasileira, se amalgama com a língua dos nossos povos originários, é a presentificação das crianças assassinadas Iñe-e e Juri. Mortas pela ciência, pelo progresso, pela religião. "Onça é toda amor e dente no cangote", lemos em O SOM DO RUGIDO DA ONÇA, livro que nos coloca na encruzilhada em que acontece a metamorfose de Iñe-e em Uaara-Iñe-e. Esse processo que deveria ser ~natural~ parece antecipado, abrupto, violentado em suas etapas, como a história de todo povo indígena. Iñe-e é esse "todo" que de algum modo insiste em existir, estar e ser. Para tanto, Micheliny Verunschk articula dobras temporais e contextuais e joga com as categorias caça e caçador, eu e nós, afinal, o tu (o outro) é uma reconfortante invenção do branco.

22 janeiro 2023

Bem-vindos os bárbaros

  

"Olho por muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não seja corpo", escreveu Ana Cristina Cesar. "Tem dias evito o poema / como um velho conhecido / à fila do pão", escreve Moama Marques, no livro BEM-VINDOS OS BÁRBAROS, logo depois de escrever "A rebelião consiste em olhar / muito tempo / o corpo de um poema / até perder-se de vista". Nesse processo de fazer o leitor perder (perdendo-se) de vista tudo o que seja "método", técnica, artifício, Moama passa em revista seu paideuma - de Antígona a Duras, de Ariadne a Hilst, de Penélope a Ana Martins. A poética de BEM-VINDOS OS BÁRBAROS forja uma voz brejeira (doce) e bárbara (cruel), embaralhando essas características, seja nas torções semânticas, seja na re-apresentação do cotidiano, seja nas fanopeias luminosas - reivindicando em cada referência literária a literatura (o "filete de sangue") que se inscreve em cada poema. Se em sua “cartilha da cura” Ana C. anotou que “as mulheres e crianças são as primeiras que desistem de afundar navios”, em sua "cartilha dos muros (1)", Moama Marques afirma que "As mulheres e as crianças são as primeiras e derrubar muros". Essa presentificação do lido é marca do livro, atravessa seus poemas, que mais parecem cintilações, vagalumes. Ler é reler(-se). "Rematriar", sugere Moama Marques - com forma e força. Façamos!

15 janeiro 2023

Reencantamento do mundo

 

Quando li a notícia da morte de Claudio Willer (13/01/2023) eu estava terminando de ler REENCANTAMENTO DO MUNDO: POESIA, TRANSGRESSÃO, ENTEÓGENOS, livro em que Diógenes Costa maneja Werber, Nietzsche, Kopenawa, Sloterdijk e, entre outros, Willer. Resultado de tese de doutorado, o livro investiga as linhas que unem transe (natureza, ancestralidade) e performance (artifício, modernidade), poeta e xamã, no uso da linguagem selvagem das substâncias linguísticas. "Há uma transformação que não se dá facilmente. Entre ânsia e prazer, o ser humano se torna outro. Ele nasce para uma nova consciência cuja perda dos sentidos o leva a uma Beleza sábia e misteriosa", escreve Diógenes. Se para Claudio Willer interessavam as “relações entre texto e biografia, literatura e vida, criação e loucura”, para Dio Costa também e seu livro REENCANTAMENTO DO MUNDO: POESIA, TRANSGRESSÃO, ENTEÓGENOS sacode a maré mansa da caretice de nossos dias com estudo e paixão.


08 janeiro 2023

Papo porreta

 


Professor, poeta, crítico, Amador Ribeiro Neto reúne em PAPO PORRETA textos breves e leves de sua crítica equilibrada entre o rigor e o humor. Equilíbrio raro, potente, inspirador. Sem facilitar, nem subestimar a competência de quem lê, PAPO PORRETA aproxima teoria acadêmica à fruição "barato total". O livro "sobre música popular e poesia" trata dessas linguagens cruzando o que nelas está em nosso cotidiano de leitor-ouvinte, acionando-nos para correr o risco de pensar sobre, pensar junto. "A vida e a arte, a música popular e a poesia são feitas pra animarem a festa semiótica de nosso dia a dia", escreve Amador. As poéticas de Cazuza, Rûmî, Caetano, Bandeira, Morengueira, Emicida, Ana Marques, Líria Porto, entre outras vozes literomusicais, são singularizadas e lidas na clave dos procedimentos estéticos que elas desenvolvem em busca da coloquialidade - esse nó na vida de quem escreve, e canta. Cada um dos 18 textos é um papo cheio da mirada porreta do autor, a quem tenho o privilégio de chamar amigo e mestre. PAPO PORRETA é joia para a cabeceira de quem estuda e/ou curte ler canções e ouvir poemas no Brasil.

01 janeiro 2023

Ahô-ô-ô-oxe


O título do livro AHÔ-Ô-Ô-OXE, de Amador Ribeiro Neto, é o resultado da condensação trans-barroca e da montagem eisensteiniana entre a “voz de sereia longínqua chorando, cha-mando” da “Ode Marítima” de Álvaro de Campos – “Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô--ô-ô-ô-ô-ô - yyy...... / Ahô-ô-õ-õ-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô - yyy......” – e a interjeição nordestina “ôxe”. Público e íntimo. Amplidão e microesfera. Língua Portuguesa e Nordeste. Pátria e região. Mar aberto e porto seguro. Todos aliados à Paraíba que abriga o poeta e fornece elementos à sua poesia sem cais. É o caso do “apôi / nordestino” do poema “zen-pessoense--paulistano”. O poeta trabalha naquilo que a linguagem tem de mais material: a presentificação não convencional das letras sobre a página, seu desenho, sua arquitetura. O sentimento drummondiano do mundo permeia essa poesia em sua recusa à autorreferencialidade vulgar, na criação de um “eu retorcido” figurativizado nas palavras quebradas e nas torções mórficas e semânticas do verso. Talvez seja “corpo a corpo consigo” o poema que melhor sintetize as filigranas proliferadas ao longo do livro AHÔ-Ô-Ô-OXE. Cito: “quebrar / o // aparta / mento // de fora / de dentro // quebrar o / pensamento / sem lógica / com muito // (confina) feri (mento)”. É essa “lição augusta” (título do derradeiro poema do livro), essa “despauesia”, essa “poundesia”, esse ala-la-ô-ô-ô carnavalizante da língua, o que caracteriza AHÔ-Ô-Ô-OXE. Além da voz da sereia, Amador Ribeiro Neto ouve a voz da musa e, como um privilegiado dessa audição musal possível ape-nas aos poetas, oferece ao leitor sua “canção transnordestina”, sua contra interpretação do mundo resultante do corpo a corpo da/na linguagem.