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24 janeiro 2013

Iemanjá carioca



É o ritmo que faz uma canção cuja língua desconhecemos nos assaltar. Mas haveria aí a eficácia da canção já que para se configurar como tal é necessário, como temos mostrado, a priori, a voz de alguém "dizendo" algo de modo singular e reconhecível para os ouvidos de outro alguém? Salvo engano, esse reconhecimento, essa "harmonia imensa" entre ouvinte e coisa-cantada ultrapassa a decifração do código verbal.
Ou seja, quando o assunto é canção, há algo que acima da utilidade verbal valoriza o modo de emissão da mensagem. Para tanto trabalham a voz, o arranjo, a situação da audição e, sobretudo, a disposição (mesmo que sobressaltada) do ouvinte. O meio - a canção - em si já é a mensagem. Ao comentar sobre a origem da poesia, Nietzsche anota: "Mediante o ritmo, um pedido humano deveria se inculcar mais profundamente nos deuses, depois que as pessoas notaram que a memória grava mais facilmente um verso que uma fala normal; também acreditavam que por meio do tiquetaque rítmico podiam ser ouvidos a distâncias maiores; a oração ritmada parecia chegar mais perto dos ouvidos dos deuses" (Gaia ciência, p. 112).
Deste modo, é no desempenho rítmico da voz de alguém cantado que mora a eficácia da canção. E aliada a isso a competência inata de todo ouvinte em estar com os ouvidos abertos aos convites da poesia. Obviamente, ao descobrirem isso, fez-se do ritmo uma maneira de coagir multidões: um exercício de poder, pedagógico. Mas há que se atentar para aquilo que o ritmo é de "ferocidade do ânimo" incutindo no indivíduo o não querer ser rebanho (escravo), indo na contramão do interesseiro binômio bem e mal, bom e mau: dançar seguindo a cadência do cantor, como um ajuste (terapêutico) na alma.
Ainda de acordo com Nietzsche "Melodia significa, conforme sua raiz, um calmante, não porque seja calmo em si, mas porque seus efeitos acalmam. - não somente nos cânticos rituais, mas também nos cantos profanos mais antigos há o pressuposto de que o ritmo exerce uma força mágica" (p. 112). Por exemplos: a exaustão após uma dança, o cansaço da quarta-feira de cinzas, os instantes após o ritual religioso - o corpo, sendo a alma, encontraria aí, o ajuste necessário. Eis a utilidade do ritmo, do cancionista, da canção, da arte. "Sem o verso não se era nada; com o verso, quase um Deus", anota Nietzsche (p. 113).
É também Nietzsche quem lembra a frase que Aristóteles atribuía a Homero: "Mentem demais os cantores!". Ora, como não encontrar nos versos de "Drama", de Caetano Veloso, na voz de Maria Bethânia, a justa resposta à proposição homérica: "Eu minto, mas minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de uma pessoa / Se produz a palavra eu / Dessa garganta, tudo se canta / Quem me ama, quem me ama". Repito: É no desempenho rítmico da voz de alguém cantado que mora a eficácia da canção. E a voz não mente, ela indicia a existência de alguém, um par do ouvinte no mundo.
Acredito que já está mais do que sugerido que a máquina de ritmos é o demasiado humano em nós, ouvintes-cantores: a alma - a voz por trás, à frente, dentro da canção. É Gilberto Gil, cancionista que já declarou que "O cérebro eletrônico faz tudo / Faz quase tudo / Mas ele é mudo", quem canta a tal "Máquina de ritmo": "Tão prática, tão fácil de ligar / Nada além de um bom botão / Sob a leve pressão do polegar (...) Apesar do seu computador / Ter samba bom, samba ruim / Se aperto o botão, meu coração / Há de dizer que é samba sim".
Poeta, Gil está brincando com signos entre o coração (máquina orgânica de ritmização da vida) e os equipamentos (cérebros eletrônicos) de armazenamento e potencialização de canção. Isso fica mais evidente quando já nos últimos versos da canção ele evoca: "Moreno, Domenico, Kassin / Assim meus filhos, filhos seus / E Bandos da lua virão se encontrar / Numa praia toda lua cheia pra lembrar / Só pra lembrar / Você e eu". Isso porque os três cancionistas citados, ao lançarem o disco Máquina de escrever música (2000), apresentaram novos modos de usar e fazer canção ao misturar harmonicamente sons sintetizados e acústicos.
Gil fala da passagem do tempo, das necessidades de adequações dos mecanismos de feitura de canção, evoca e revigora também o Bando da lua - como agente cancional lá do início do fazer canção popular no Brasil - para finalizar lançando luz sobre o futuro das canções preservadas no tempo, mais do que guardadas em arquivos digitais, na voz índice do humano. Isso sugere que enquanto houver humano haverá canção, pois sempre será o coração o responsável por dizer se algo é ou não samba.
Comentando sobre as “mitologias tecnicistas”, Fernando Iazzetta anota: “imaginar que a máquina retira o que há de humano na música é esquecer que não há nada mais representativo do que é humano do que as máquinas que fazemos” (Música e mediação tecnológica, p. 25). Para o autor, é preciso analisar a simbiose, não a dependência na relação entre música e tecnologia.
Ao escrever sobre o rock nos anos 80 do século passado, Arnaldo Antunes aponta os sintomas da "crise da canção": "A incorporação do berro e da fala ao canto; o estabelecimento de novas relações entre melodia e harmonia; o reprocessamento e colagem de sons já gravados; os ruídos, sujeira, microfonias; as novas concepções de mixagem, onde o canto nem sempre é posto em primeiro plano, tornando-se, em alguns casos, apenas parcialmente compreensível; a própria mesa de mixagem passando a ser usada quase como um instrumento a ser tocado. Tudo isso altera a concepção de uma letra entoada por uma melodia, sustentada por uma cama rítmica-harmônica. O sentido das letras depende cada vez mais do contexto sonoro" (40 escritos, p. 46).
Para Antunes, o rock, como canção-para-dançar, "parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma função vital - religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar chuva" (idem, p. 47). Nossa competência brasileira na criação de canções para dançar, portanto, nos reposiciona na origem da poesia, do desafogar a alma dos excessos "do medo, da mania, da compaixão, da sede de vingança", como lista Nietzsche (idem). O corpo do ouvinte que dança ao ritmo do cantor quer reviver uma inocência perdida. Individualizado, ele quer se perder na massa. Para sair dela mais único que antes.
Penso nisso enquanto ouço "Iemanjá carioca", do DJ MAM e Aleh (Sotaque carregado, 2012). Misturando sons de guitarras e percussão, orquestra e afrobeat, a canção-para-dançar, porque grávida de sintagmas de elementos afrobrasileiros, convida o ouvinte a mais do que o simples mexer-do-corpo: intenciona-se um estado-de-alma que tangencia o ritualístico ao unir ritos de tradição afro-brasileira com a dança a princípio esvaziada de conteúdo religioso. Rito e techno misturados invocam corpo e ação corporal à primazia primária da celebração: transvaloração da imersão sensual e sensorial.
"No poema primitivo o ritmo retoma, concentra e realça os acentos da linguagem oral", anota Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (p. 82). É exatamente isso que "Iemanjá carioca" faz: unindo os signos da Iemanjá local, íntima do sujeito ("Negra, índia, em casa portuguesa, / A nossa Iemanjá d’Akari oka") e projetando a geografia por onde o ser rege ("Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem / Cosme Velho, lá de cima, você pode ver também / Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar / Pro Catete ou Flamengo, Glória a esse orixá"), a canção figurativiza uma entidade que reina sobre todas as cabeças: "O Rio encontra seu lar / No ventre de Olokum".
"A Iemanjá criada no Brasil, que viajou para o Sul e para o Norte, é outra, embora conserve o título de 'Rainha do Mar'. As vezes é sereia, outras ninfa e recentemente até virgem, identificando-se mais com a Virgem Maria, a tal ponto que suas devotas no Rio ficam ofendidas lendo casos da Iemanjá africana, de grande força sexual", escreve Zora A. O. Seljan em Iemanjá Mãe dos Orixás (p. 15).
A mistura rítmica-harmônica na canção é a cama sonora exata para essa Iemanjá amalgamada, brasileira, carioca: "Filha de Tamoios com a África dos Yorubás", atravessada pela língua portuguesa. Ela, por sua vez, por ser como é, livre, abala o cânone da uniformidade: o fluxo oral joga com o fluxo da melodia reiterativa na tentativa de métrica no texto da letra. O todo cancional resulta na criação de um ambiente sonoro mítico e como Roger Bastide observa: "O mito é anterior ao rito; ele é, primitivamente, uma tentativa de explicação dos fenômenos da natureza, uma primeira cosmogonia, e o rito viria depois, moldando-se na sua estrutura, sobre os temas míticos já preexistentes" (Imagens do Nordeste místico em preto e branco, p. 11-112).
"O ritmo provoca uma expectativa, suscita um anelo. Se é interrompido, sentimos um choque. (...) Todo ritmo é sentido de algo. Assim, o ritmo não é exclusivamente uma medida vazia de conteúdo, mas uma direção, um sentido. O ritmo não é medida, mas tempo original. (...) No ritmo há um 'ir em direção a', que só pode ser elucidado se, ao mesmo tempo, se elucida quem somos nós. (...) Rituais e narrativas míticos mostram que é impossível dissociar o ritmo de seu sentido", escreve Octávio Paz em O arco e a lira (p. 68-70).
É assim, da "harmonia imensa" entre sujeito da canção e ouvinte, que surge o sujeito cancional. Como "diz" o sujeito da canção "Love, love love", de Caetano Veloso: "Eu canto no ritmo, não tenho outro vício / Se o mundo é um lixo, eu não sou / Eu sou bonitinho, com muito carinho / É o que diz minha voz de cantor / Por nosso Senhor". Ou senhora: "Ogunté, Iamassê, Euá / Olossá, Ya, Assabá, / Iemowô, Assessu, Yemojá".

***

(DJ MAM / Aleh)

Filha de Tamoios com a África dos Yorubás
A nossa Iemanjá

Negra, índia, em casa portuguesa
A nossa Iemanjá d’Akari oka

Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem
Cosme Velho, lá de cima, você pode ver também

Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar
Pro Catete ou Flamengo, Glória a esse orixá

O Rio encontra seu Lar
No ventre de Olokum

Beira do Aterro, no mar
Vive mamãe Iemanjá

Ogunté, Iamassê, Euá
Olossá, Ya, Assabá,
Iemowô, Assessu, Yemojá

17 janeiro 2013

Rainha das cabeças



No discurso 'Ler e escrever' do livro Assim falou Zaratustra, Nietzsche escreve: "E quanto a mim, que amo a vida, parece-me que os que melhor entendem a felicidade, são as borboletas e as bolas de sabão, e todos os que se lhes assemelham. / Ao ver voejar essas pequenas almas leves e prazenteiras, graciosas e volúveis, Zaratustra sente tomá-lo uma vontade de chorar e de cantar. / Só posso acreditar num Deus que soubesse dançar. / (...) / Aprendi a andar; deste então corro sem esforço. Aprendi a voar; desde então já não espero que em empurrem para mudar de sítio. / Vede como me sinto leve; vede, vôo; vede, sobrevôo-me; vede, há em mim um Deus que dança". Muito citado, o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as corporalidades sonoras brasileiras.
Poderíamos divagar sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas quero me ater à bola de sabão, metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente estou pensando na teoria das esferas de Peter Sloterdijk, que dedica grande parte de sua obra à interpretação nietzschiana de esferas leves e delicadas.
Entre outras questões, Sloterdijk escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar esferas imunológicas: as tais causas e razões das ilhas desertas de Deleuze, como queiram. É por viver - sentir-se - "ameaçado" pelo mundo de mobilidade ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual, objetivando a abundância perdida desde a saída do útero.
E é aqui que ajusto meu foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (reconhecimento). A arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas (o indivíduo fica sendo parte do mundo), muito embora exploda outras: as canções de fora levam o indivíduo a sair ao mundo.
O indivíduo moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d'água (abundância) materno está solto, leve. Ele é bola de sabão: irrelevante, sem estabilidade, privado de objetividade ela precisa de um ar propício ao vôo, ao não estouro. E são muitos os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da verdade - com a permissão de experimentações de modos de vida -, e o fato do homem não estar pronto para não ser o centro do universo, são alguns deles.
Poderíamos também entrar aqui na paranóia por segurança intrínseca ao indivíduo de hoje, posto que esferas (família, escola, religião...) são sempre tentativas de solidariedade imunológica, mas não é o objetivo principal aqui. Quero avançar na leitura da citação de Nietzsche para chegar ao "Deus que soubesse dançar". E onde entrar em contato com este Deus (ou Deusa? ou deuses?) senão através das religiões de origens africanas? Brasileiro, não posso deixar de observar nessas religiões o tal Deus que dança "no" indivíduo.
Guardadas dos conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. "Na verdade, os maus impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis quanto os bons: - apenas é diferente a sua função" (...) "A decisão cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim", anota Nietzsche em A gaia ciência (respectivamente p. 57 e p. 151).
Além do bem e do mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Yorubá são os orixás. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição cultural desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em imagens dos orixás, até então cultuados "apenas" como forças da natureza.
Metal Metal (2012), disco do trio Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões.
Um ótimo exemplo do modo como o trio bebe o sangue (a poética) de uma língua-mãe do Brasil - Yorubá - está disposta em "Rainha das cabeças", de Douglas Germano e Kiko Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo, mas estranho, porque imbricado de forma inovadora.
A letra da canção em si já detona o incômodo estético. Cheia de palavras e/ou expressões, repito, íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano, a letra presentifica no imaginário do ouvinte Awoió, tida como a Iemanjá - sim, há deuses e semi-deuses no panteão - que mais concentra feminilidade: familiar, fiel companheira, materna.  
"Awoió ori dori re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar". A primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não estamos - nós, ouvintes comuns, não iniciados - em lugar cômodo. A força sonora e rítmica, aliada às palavras da letra, por vezes não deixa o ouvinte entender, de pronto, a mensagem da canção. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo, precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos arrebatados pela potência ali dançante. "O ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso" (Nietzsche, idem, p. 112).
Há que se atentar sobre isso, aliás: várias canções apresentam textos muito densos e bonitos, mas também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto, plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada e promover o mergulho do ouvinte? Diferente da canção-para-ser-ouvida.
Seja como for, o Ori sagrado em "Rainha das cabeças" promove a dança da intuição do ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o ouvinte entra em estado-de-poesia: não importa muito decodificar as palavras, mas entra no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com aquele ritmo, promovem - com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do ouvinte: a bola de sabão e seu alfinete altamente explosivo.
Iemanjá-Awoió cuida do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (No horizonte do infinito) e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: "tupi or not tupi", é a pergunta. "Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de Olokun / É iya kekerê ", diz o refrão. Olodumaré vagava pelo mundo quando por aqui havia apenas pedras e fogo. Devido ao vapor produzido, grande quantidade de nuvens precipitou sob a forma de chuva. Eis a origem dos grandes oceanos e do nascimento de todas as Yemanjás do mar. Já Olokun é, como o próprio nome revela, o proprietário do Oceano.
Se, como Nietzsche anotou: "O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado" (idem, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como canta Gilberto Gil: "Quando, hoje, alguns preferem condenar / O sincretismo e a miscigenação / Parece que o fazem por ignorar / Os modos caprichosos da paixão // Paixão, que habita o coração da natureza-mãe / E que desloca a história em suas mutações / Que explica o fato da Branca de Neve amar / Não a um, mas a todos os sete anões". 

***

(Douglas Germano / Kiko Dinucci)

Awoió ori dori re
Iyemanjá cuidou
Ade, ala, beijou
E encheu o ori de mar

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Ela é filha de Olokun
É iya kekerê

Iya olori
Mojuba Olodumaré

Carregou uma cabeça
Sobre o adirê
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Iya olori

03 janeiro 2013

Quando a canção acabar



"(...) tudo pode ser estória tudo depende da hora tudo depende / da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada / de nada de nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas / e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e / nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total / tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro (...).
Acredito que não há melhor tradução poético-verbal para aquilo que tenho chamado aqui de sujeito cancional do que este conjunto de palavras extraído da primeira página do livro Galáxias, de Haroldo de Campos. Sendo um ponto luminoso no turbilhão plano/opaco do cotidiano, o sujeito cancional surge no estado de similaridade entre o sujeito da canção (a voz que "fala" de dentro da canção) e o ouvinte: tudo, nada, agora, nunca - eco que vai de um para o outro.
O sujeito cancional é o tempo-espaço de aproximação concreta entre a voz que sai da boca de alguém-cantor (ou das caixas acústicas, mediadoras da voz humana) e o entendimento que entra pelos ouvidos de outro alguém-ouvinte. Um depende do outro, como a mãe depende do filho para ser mãe e o filho depende da mãe para ser ninado, ser pavão. E é nesta relação complexa que a gaia ciência se nutre.
Não há objetivos específicos no cantar, ou um estado final a ser alcançado, a não ser o simples, natural e humano êxtase do gesto de cantar e ser cantado. Canção (estar em estado-de-canção) é a não calmaria, é o naufrágio prazeroso em mar aberto sem cais. E, imediatamente cônjuge ao estado anteriormente descrito, a canção é o cais sem cais: enquanto ela durar, enquanto o ouvinte se sentir mimado, íntimo do sujeito da canção em sua certeza da fragilidade de existir, o ouvinte se fortalece e segue.
Encontro um exemplo primoroso deste movimento na canção "Quando a canção acabar", de Luiz Tatit. Tatit cria uma personagem-cantora que tem o agora (já) e o mar no nome: Jacimara - sereia indígena do "eterno presente", da lua boa para a guerra, do estado-presente das mensagens das canções. Ao mesmo tempo em que o "jaci" sugere algo que passou, já se foi enquanto está passando, sendo: presente-do-futuro-do-pretérito. Eis o tempo das canções: "tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro", anota o narrador-cantor de Galáxias. "Quando é neste momento / E neste lugar (...) Já é", diz o sujeito da canção de Tatit.
Mas, contrapondo-se à personagem Jacimara, "a rainha da farra / para ela o verão / é tocar guitarra / parece a cigarra", surge Jaqueline: aquela que virá "quando o inverno chegar / quando a canção acabar". Ou seja, a canção não morre nunca, pois com uma (Jaqueline) rendendo a outra (Jacimara) sempre haverá canção - sempre haverá o já-cantável porque sempre há o humano - representado pelos nomes de mulheres - necessitando cantar e ser cantado.
Não é à toa que Luiz Tatit utiliza a narrativa da cigarra e da formiga para criar "Quando a canção acabar" (Sem destino, 2010). O que fica sugerido é a continuidade do cantar, mesmo através da formiga, que, como sabemos, é mais compositora do que cantora. "E se toda a cultura / Periclitar / E se o canto mais simples / Silenciar / É sublime encontrar / Quem se anime a cantar / Jaqueline [formiga] fará". As metáforas aqui abrem a compreensão do ouvinte à finalidade sem fim da canção.
Semelhante à voz de Jacó, sua contrapartida masculina no nome, a voz de Jaqueline - gêmea da voz de Jacimara, embora nascida depois - substituirá Jacimara e cantará a vida. Porém, diferente do conto javista, Jaqueline não precisará enganar ninguém, a substituição virá no eterno retorno da existência. "A voz é a voz de Jacó", dirá Isaac diante do ardiloso filho e esperando ouvir a voz de Esaú. Este detalhe para nós serve como destaque da diferença: a voz de Jacimara difere da voz de Jaqueline e isso marca a mudança de ciclo, a evolução, a troca de turno, o fim da (para o começo de outra) canção.
É deste modo que, sensível às questões humanas, a narrativa ficcional criada por Tatit, a partir de outras narrativas ficcionais, finda por narrar (ficcionalizar) o real: a necessidade humana de narrativas, de canto, de canção. Portanto, usar o modo narrativo para tematizar a narrativa acaba sendo um artifício estético sofisticado e complexo: canção dentro de canção; real dentro do real - voz que se desdobra.
E aqui a gestualidade vocal (entoativa) do cancionista, sua dicção sempre muito perto da naturalidade da fala, reitera o caráter narrativo da canção, da história das personagens, ou melhor, do desejo de colocar as personagens dentro de uma história. Tudo sendo auxiliado pela melodia samba-de-roda-quase-baião, remetendo o ouvinte a extratos básicos (puros?) do impulso de cantar, pois, como sabemos, o samba e o baião são duas matrizes brasileiras do fazer cancional mais utilizadas pela canção popular.
Há, portanto, em "Quando a canção acabar", todo um requinte em traduzir aquilo que é dito (e no modo como é dito) na melodia e vice-versa. "Quando a canção acabar" é um libelo aos momentos de transição da linguagem cancional: de quando a cigarra dá lugar à formiga para que a canção não acabe de fato, mas seus meios de ser possam evoluir: mudar para permanecer. Basta observar que ao passar de uma personagem (Jacimara) a outra (Jaqueline) o acompanhamento melódico continua o mesmo. A esperança na vinda de Jaqueline confirma isso.
"A canção vem de situações muito primárias. A mãe embalando o filho, a cozinheira mexendo sua panela no fogão, o lavrador e sua foice pra lá e pra cá, o cara em cima do trator, a colhedeira colhendo trigo, o cara na linha de montagem, você no chuveiro. O homem canta. Sempre haverá canções. Em Marte, no futuro, eu já não estarei vivo, mas imagino um astronauta fazendo um dueto com um robô", disse Gilberto Gil, em entrevista para a revista Voe Gol.
É nisso que o sujeito da canção de Luiz Tatit parece acreditar também: no cuidado eterno que a canção imprime ao ouvinte. E é este ouvinte grávido do desejo de canção, daquilo que dá vigor e o sustenta na vida, em contato com este sujeito da canção (a voz da mensagem da canção: o eu-lírico-poético), que promove o surgimento do sujeito cancional no instante-já de quando dura a canção. Eterno retorno do sabiá-cigarra-sereia. Posto que, intuitivamente o ouvinte sabe, tal e qual o sujeito da canção também sabe, que o fim da canção equivale ao apagamento da ferida acesa que é a raça humana.

 ***

(Luiz Tatit)

Jacimara
A rainha da farra
Pra ela o verão
É tocar a guitarra
Parece a cigarra
Nasceu pra cantar
Sua vida
É um eterno presente
Pois canta o que sente
E não pensa na frente
Se o tempo anda quente
Sua voz vai soar
Nem precisa chamar
Já tá aqui pra cantar
Jacimara é pra já

Quando a mãe natureza
Vai se expressar
Quando é neste momento
E neste lugar
Já se ouve seu som
Já se sabe que é bom
Jacimara já é
Um luau
Assim natural
Já é

Jaqueline
Compõe noite e dia
São tantas cantigas
Que às vezes intriga
Parece a formiga
Só quer trabalhar
Sua vida
É um cuidado eterno
Pois passa o verão
A compor pro inverno
E guarda as canções
Pra se um dia faltar
Quando o inverno chegar
Quando a canção acabar
Jaqueline virá

E se toda a cultura
Periclitar
E se o canto mais simples
Silenciar
É sublime encontrar
Quem se anime a cantar
Jaqueline fará
Seu sarau
Será o final
Será?