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09 setembro 2014

Barulho feio



Os versos "Por seres tão inventivo / E pareceres contínuo", de Caetano Veloso soam para mim como síntese da audição do disco Barulho feio (2014), de Rômulo Fróes. Mas penso também no conto “Ideais do canário”, de Machado de Assis. Primeiro porque a certa altura Rômulo faz uma referência direta a uma "gaiola de ouro, canário sem choro (...) Vida sem gosto, não te quero mais / Mas os animais, lambem meu rosto". Segundo porque nesse conto temos tanto o discurso do narrador, que só aparece diretamente em contato com o leitor no primeiro parágrafo, já que ele empresta a voz da narrativa, numa consciente falsa tentativa de capturar o real, ao seu protagonista; quanto a narrativa em si, o relato de Macedo a cerca dos acontecimentos que lhe fizeram se tornar “todo canário”. Algo muito próximo do gesto do sujeito-flaneur criado por Rômulo.
Os dois planos se entrecruzam para a textura do texto. Assim também acontece nas canções desse disco. O fio narrativo da "vida real" - o som direto capturado nas ruas de São Paulo - é significado qual colar de pérolas que as canções são. A "vida real" permite a Rômulo a criação de uma narrativa complexa, fragmentada, mas melódica, tanto pela entrada e saída de foco das vozes das ruas, quanto pelo encadeamento das canções-adornos.
A semelhança com o discurso do canário de Machado é pertinente, ou seja, a arte e os acontecimentos cotidianos surgem como uma perspectivação da realidade. O canário lembra à personagem Macedo, e ao leitor, que o mundo é uma criação do homem, assim como os sujeitos das canções lembram ao ouvinte que os acontecimentos são invenções, ficções. “Fora daí (da loja do belchior, da canção, da ficção), tudo é ilusão e mentira”, escreveria Machado. "Mente pra mim, mas não mente pra mim / Me diz a verdade, fica à vontade", canta Rômulo. Cantando, o cancionista rearranja o real.
Ao longo de “Ideias de canário” o narrador cria a ilusão de que quem está narrando é Macedo: “disse ele”, pontua no segundo parágrafo. Porém, o conto é, de fato um “resumo da narração” de Macedo, como está destacado já no primeiro parágrafo. Ora, não é outro o gesto de Rômulo Fróes ao sugerir que quem está cantando é a rua e suas personagens "anônimas". O sujeito-flaneur criado por Rômulo é metonímia do próprio ouvinte contemporâneo de canção, que tem suas audições em aparelhos móveis interferidas pelos diversos sons da cidade ao redor.
O sujeito-flaneur ouve as ruas porque sabe que o acaso mostra novas trilhas. E a rua, por sua vez, participa das canções reivindicando para si a origem da palavra cantada. Desse plano, os referentes devem ser buscados dentro da própria textura do disco. Destaco aqui a canção que dá nome ao trabalho: "Barulho feio", de Rômulo Fróes e Nuno Ramos.
A canção demora a entrar, está engasgada, há um "barulho feio" interferindo. Um ruído que parece ser o som de um microfone roçando um tecido. Entra o violão e em seguida a voz. Montando a base cancional. Mas aos poucos entram em cena também outros sons: o baixo acústico de Marcelo Cabral e a guitarra de Guilherme Held. E o barulho não desaparece por completo, apenas está fora do foco, ou foi incorporado, ou tornou-se naturalizado dentro da canção.
Esse jogo de protagonismo e coadjuvância entre a canção assobiável e o barulho atravessa o disco. É o motor da obra. Sons que se acumulam e se dispersam, como as vozes de uma metrópole. Essas vozes ocupam os espaços deixados pela ausência da voz do cantor. E vice versa. “Mas atenção, escuta o rádio / Minha canção vai acender teu silêncio como um raio”, diz o sujeito de "Como um raio", outra canção de Romulo Fróes e Nuno Ramos presente no disco. Desse modo, podemos dizer que não há diferenciação nítida das instâncias rua e canção. Uma está e é na outra.
Essa busca de beleza, ou de harmonia na dissonância é o estímulo dos sujeitos cancionais. Ao final, a canção devolve o protagonismo às ruas. Ouvimos o que parece ser uma manifestação, restos de um depoimento exaltado - "Eu já tô de saco cheio" - como a referendar e ratificar aquilo que o sujeito da canção acabou de dizer: "Ninguém cantará, ninguém vai chorar / Por mim". Antes disso, o sujeito canta apontando de onde vem a canção: "Taí meu gogó, é só pra você / Me pega aqui dentro, você vem no vento / Não quero você, invento você / Tô cheia de ódio, quebrei o agogô / Criei a serpente, furei o meu bumbo / Porém lá no fundo, ouvi de repente / Toda essa gente".
Ouvir gente é exercício de quem canta. Para capturar nos modos da palavra falada os elementos de formação e invenção da palavra cantada. O som das ruas também é manipulado a serviço do estético. "Quero você, invento você", canta o sujeito. Artista inventivo, Rômulo Fróes trabalha forçando os limites da canção. Seu trabalho como cancionista vai se caracterizando pela diversidade de técnicas e procedimentos. Mas é sobretudo nas combinações intrigantes e acumulativas de materiais sonoros que reside a ética de sua obra.Canário e urubu.
Barulho feio é um disco que equilibra invenção e tradição, afirmando, como fez Gal Costa ao cantar que "o autotune não basta pra fazer o canto andar pelos caminhos que levam à grande beleza", que "barulho feio tem gente no meio". O resultado parece sempre ser um ensaio geral do gesto em direção à potência-ó.

***
 (Romulo Fróes / Nuno Ramos)

Barulho feio, tem gente no meio
De ponta cabeça, a minha cabeça
Bicho sem dono, sofro sem sono
Cadê todo mundo? Será que no fundo?
Gaiola de ouro, canário sem choro
Dentro do quarto, pássaro preto
Vida sem gosto, não te quero mais
Mas os animais, lambem meu rosto
Mente pra mim, mas não mente pra mim
Me diz a verdade, fica à vontade
Pele de cobra, coxa de atriz
Fui infeliz, sou eu quem te diz
Ninguém cantará, ninguém sofrerá
Ninguém pintará, nem publicará
Ninguém filmará, ressuscitará
Ninguém sambará, ninguém lembrará
De mim
Láialáialáialáia...

Tomo o metrô, tô no shopping sem dó
Taí meu gogó, é só pra você
Me pega aqui dentro, você vem no vento
Não quero você, invento você
Tô cheia de ódio, quebrei o agogô
Criei a serpente, furei o meu bumbo
Porém lá no fundo, ouvi de repente
Toda essa gente, laialalaiá
Um cara de sorte, quem é que me morde
Pessoa esquisita, frase esquisita
Amor sem futuro, por isso ele é puro
Tô dentro dum corpo, procuro outro corpo
Meu corpo é jardim, um sol só pra mim
Na veia da noite, no umbigo da noite
Carícia total, um cara legal
Ninguém cantará, ninguém vai chorar
Por mim
Láialáialáialáia...

04 setembro 2014

Retrato da vida



Num país solar, tropical, o período das chuvas é sempre sinônimo de reclusão, de recuo interior, de ficar em casa, de amar em segredo, de cantar oitavas abaixo. É isso que o sujeito da canção “Retrato da vida” de Dominguinhos e Djavan faz. “Esse matagal sem fim / Essa estrada, esse rio seco / Essa dor que mora em mim / Não descansa e nem dorme cedo // O retrato da minha vida / É amar em segredo”, diz.
A vereda de onde canta o sujeito de “Retrato da vida” está mais próxima do sertão de Guimarães Rosa de que do sertão de Graciliano Ramos. Justapõe “matagal sem fim” e “rio seco”, a fim de encenar ao mesmo tempo a esperança e o atual estado de solidão, em que o outro “não quer saber de mim / e eu vivendo da tua vida”. O sertão do sujeito da canção é úmido, tem esperança no verde novo da “boa colheita” que ele acredita está por vir.
Gravada por Djavan no disco Bicho solto (1998) e por Mariene de Castro em Colheita (2014), nas duas versões temos o uso da passionalização. Ou seja, dos tons baixos, do prolongamento das vogais, da continuidade melódica, na intenção de modalizar o percurso do estado da paixão presente na letra. As tensões internas do sujeito lírico são transferidas para a voz que canta lenta e continuadamente. À exceção da derradeira estrofe, quando o sujeito cancional é tomado pela esperança e canta uma oitava acima: “O teu beijo em meu destino / Era tudo o que eu queria / Ser teu homem, teu menino / O ser amado de todo dia”. O reduto emotivo da inter-subjetividade dá lugar à vontade de ter o outro “aqui”, oscilando a tessitura da canção, da voz dos intérpretes.
Esse gesto do plano da letra interferindo no plano da voz importa para pensarmos a cena apresentada pelo sujeito da canção. A última estrofe cantada uma oitava acima é quase uma exasperação que não chega a se configurar, já que ele não quer interferir no ciclo que se mostra anunciando a presença futura do ser amado.
“Retrato da vida” é uma canção de maio: “Esses campos não tardam em florir”. O ciclo da colheita que recompensará “a dor que mora em mim” está próximo. As noites frias de junho, a festa do milho verde, o aconchego em torno da fogueira beneficiará os amantes, em especial, o sujeito que canta esperançoso. A voz de Mariene de Castro, por exemplo, é acompanhada por uma sanfona melancólica, ajudando a retratar a vida do sujeito, uma vida que depende da vida do outro: “Deus no céu e você aqui”.
No plano da intertextualidade, “Retrato da vida” dialoga com “Deusa da minha rua”, de Newton Teixeira e Jorge Faraj. Enquanto aquela pergunta: “Mas e você o que faz / Que não repara no chão / Por onde tem que passar / E pisa em meu coração?”; essa diz: “Minha rua é sem graça / Mas quando por ela passa / Seu vulto que me seduz / A ruazinha modesta é uma paisagem de festa / É uma cascata de luz / Na rua uma poça d'água, espelho da minha mágoa / Transporta o céu para o chão”. Temos nas duas canções uma narratividade ancorada na voz de um sujeito dependente e resignado (“E tudo parece seguir / Fazendo a vida tão direita”). Organizadora do sentido global do texto, a narrativa tem sua função efetivada no gesto da inter-subjetividade mimética, no modo como Mariene e Djavan registram a canção, já que “Retrato da vida” e “Deusa da minha rua” são serestas, repletas de passagens que, cantando a paisagem, cantam o estado interno do sujeito.
A lírica do amor romântico normatiza e universaliza a mensagem da canção. O conteúdo afetivo da letra investe na disjunção entre o sujeito da canção (enunciador) e o outro (objeto de desejo). A “dor que mora em mim” une um ao outro. Tudo ocorre como se, pela narrativa bem circunscrita, o sujeito aproximasse a colheita. E o fragmento do ciclo da existência, o “retrato da vida” apresentado no título, é traduzido na sensibilidade dos intérpretes da canção.

***

Retrato da Vida
(Dominguinhos / Djavan)

Esse matagal sem fim
Essa estrada, esse rio seco
Essa dor que mora em mim
Não descansa e nem dorme cedo

O retrato da minha vida
É amar em segredo

Não quer saber de mim
E eu vivendo da tua vida
Deus no céu e você aqui
A esperança é quem me abriga

Esses campos não tardam em florir
Já se espera uma boa colheita
E tudo parece seguir
Fazendo a vida tão direita

Mas e você o que faz
Que não repara no chão
Por onde tem que passar
E pisa em meu coração?

O teu beijo em meu destino
Era tudo o que eu queria
Ser teu homem, teu menino
O ser amado de todo dia