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08 julho 2015

Trovoa



Ouvir canção em tempos de reprodução técnica é ter a possibilidade de comparar versões de uma "mesma" canção. Não se trata de dizer qual é a "melhor". Mas perceber os investimentos voco-melódicos de cada intérprete. É o caso de "Trovoa", de Maurício Pereira (Pra Marte, 2007), registrada na voz de Juçara Marçal (Metá Metá, 2011) e de Maria Gadú (Guelã, 2015). As três versões plasmam um trovador urbano: o canto-falado acompanhado por instrumentos que marcam a melodia, desenham o ritmo da mensagem a ser recebida pelo ouvinte.
Trovoar é trova que voa, escorre no tempo veloz. É fazer trovas, versejar intimidades de modo tão simples quanto sofisticado. No caso de "Trovoa", é cantar o encontro-trovão entre o eu-que-fala e o outro-motivo-da-fala: "Para um instante único / Em que o poema mais lírico / Se mostre a coisa mais lógica".
No mergulho para dentro de si, a partir do contato com o outro, o eu se desdobra em trovas. E canta: "Minha cabeça trovoa / Sob meu peito te trovo / E me ajoelho / Destino canções / Pros teus olhos vermelhos / Flores vermelhas, vênus, bônus / Tudo o que me for possível / Ou menos / (mais ou menos)".
Exprimir-se em cantigas é gesto organizador de si, daquilo que trovoa na cabeça: é instinto de conservação. Foram os poetas provençais da Idade Média quem fixaram esse modo de fazer poesia lírica. Pouco ou quase nada restou da poesia trovadoresca, essencialmente oral e espontânea. É preciso um esforço imaginativo para reconhecer essa poesia de um tempo pós-escrita e pré-técnicas de reprodução. E investigar a pertinência de uma "poeticidade oral específica" tem sido o trabalho de muitos pesquisadores.
Narrar cantando é uma forma de manter na memória - íntima e coletiva ("lírico mais lógico") - um acontecimento, já que a melodia auxilia na memorização de um "momento tão pequeno e gentil". Por sua vez, a canção "Trovoa" de Maurício Pereira atualiza o gesto trovador de cantar caminhando - "e caminho a pé pelas ruas da Lapa" - e se universaliza pelo conteúdo urbano, em tempos de amores líquidos.
Não há refrão, interditando a memorização pelo ouvinte. O que é dito precisa ser ouvido naquele instante, sob o perigo de se perder no momento seguinte, tamanha é a profusão de palavras. A letra mescla urgência (traduzida em versos ligeiros, compreendidos na aceleração da emissão vocal) e contemplação (alongamentos vocálicos). Essa euforia melancólica está presente nas versões aqui apontadas.
Nas três versões o trovoar é tratado como o lugar caótico "onde nasce e mora todo o amor". É do trovejar de ideias, sensações e desejos que nasce o impulso de cantar, a si e o outro. Ou seja, o ruído que esse trovão produz no sujeito que canta é o promotor da canção e da teatralidade escolhida para transmitir o conteúdo extenso em confronto com a velocidade das horas. Há uma tensão entre o muito para ser dito e o pouco tempo para dizer. "Trovoa" exige atenção. Seu tamanho e sua linguagem vão à contramão das micro-narrativas, das formas breves de nossos dias.
Embora as duas versões se aproximem bastante, há sutis diferenças nos gestos vocais. Amparada nos versos finais do disco Guelã - "Tendo o silêncio no peito / Lendo o silêncio com os olhos / Faz silêncio de mim", a emissão vocal de Gadú aparece mais econômica, investe mais nos silêncios, nas pausas entre uma palavra e outra, com raros alongamentos das vogais, por exemplo. Enquanto que a voz de Juçara percorre uma partitura montada sobre distensões vocálicas mais arriscadas, cantáveis.
Por outro lado, a versão de Maria Gadú mostra que o cancionista contemporâneo é ouvinte de canção. As criações estão contaminadas por essas escutas. Gadú é ouvinte de Juçara. E ouvinte de Maurício Pereira. É esse canto intertextual, intervocal, essa audição sampleada o que deve importar para compreender as escolhas timbrísticas, melicanoras de cada intérprete, a fim de perceber as convergências e divergências entre as versões de uma "mesma" canção.

 ***

 Trovoa
(Mauricio Pereira)

minha cabeça trovoa
sob meu peito te trovo
e me ajoelho
destino canções pros teus olhos vermelhos
flores vermelhas, vênus, bônus
tudo o que me for possível
ou menos
(mais ou menos)
me entrego, ofereço
reverencio a tua beleza
física também
mas não só
não só

graças a Deus você existe
acho que eu teria um troço
se você dissesse que não tem negócio
te ergo com as mãos
sorrio mal
mal sorrio
meus olhos fechados te acossam
fora de órbita
descabelada
diva
súbita…
súbita…

seja meiga, seja objetiva
seja faca na manteiga
pressinto como você chega
ligeira
vasculhando a minha tralha
bagunçando a minha cabeça
metralhando na quinquilharia
que carrego comigo
(clipes, grampos, tônicos):
toda a dureza incrível do meu coração
feita em pedaços…

minha cabeça trovoa
sob teu peito eu encontro
a calmaria e o silêncio
no portão da tua casa no bairro
famílias assistem tevê
(eu não)
às 8 da noite
eu fumo um marlboro na rua como todo mundo e como você
eu sei
quer dizer
eu acho que sei…
eu acho que sei…

vou sossegado e assobio
e é porque eu confio
em teu carinho
mesmo que ele venha num tapa
e caminho a pé pelas ruas da Lapa
(logo cedo, vapor… acredita?)
a fuligem me ofusca
a friagem me cutuca
nascer do sol visto da Vila Ipojuca
o aço fino da navalha me faz a barba
o aço frio do metrô
o halo fino da tua presença

sozinha na padoca em Santa Cecília
no meio da tarde
soluça, quer dizer, relembra
batucando com as unhas coloridas
na borda de um copo de cerveja
resmunga quando vê
que ganha chicletes de troco

lebrando que um dia eu falei
“sabe, você tá tão chique
meio freak, anos 70
fique
fica comigo
se você for embora eu vou virar mendigo
eu não sirvo pra nada
não vou ser teu amigo
fique
fica comigo…”

minha cabeça trovoa
sob teu manto me entrego
ao desafio de te dar um beijo
entender o teu desejo
me atirar pros teus peitos
meu amor é imenso
maior do que penso
é denso
espessa nuvem de incenso de perfume intenso
e o simples ato de cheirar-te
me cheira a arte
me leva a Marte
a qualquer parte
a parte que ativa a química
química…

ignora a mímica
e a educação física
só se abastece de mágica
explode uma garrafa térmica
por sobre as mesas de fórmica
de um salão de cerâmica
onde soem os cânticos
convicção monogâmica
deslocamento atômico
para um instante único
em que o poema mais lírico
se mostre a coisa mais lógica

e se abraçar com força descomunal
até que os braços queiram arrebentar
toda a defesa que hoje possa existir
e por acaso queira nos afastar
esse momento tão pequeno e gentil
e a beleza que ele pode abrigar
querida nunca mais se deixe esquecer
onde nasce e mora todo o amor

03 julho 2015

Maria de todos nós

Com concepção e curadoria de Felipe Taborda, o projeto A imagem do som convidava artistas contemporâneos para traduzir visualmente a obra de alguns compositores. O projeto teve 8 edições e homenageou Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Tom Jobim, o pop-rock, Dorival Caymmi, a MPB e o samba.
Evoco A imagem do som porque as exposições aconteceram no Paço Imperial (RJ), lugar que agora é ocupado pela coletiva Maria de Todos Nós. Diferente daquele projeto, esse mistura acervo pessoal e instalações, entre outros muitos objetos, para homenagear os 50 anos de carreira de Maria Bethânia. Em ambos há esse desejo de interpretação do universo em torno do compositor.
Sim, Maria Bethânia é coautora, compositora parceira dos "autores" das canções que interpreta. Sua particular distribuição das notas voco-musicais dentro das possibilidades oferecidas pelo "autor" da canção, agrega a Bethânia a função de coautoria, de promotora de uma dicção própria que ilumina (dramatiza) aspectos da letra de forma própria, pessoal, autoral.
Quem for a essa ocupação do Paço perceberá os nós que compõem esse manto aurático bordado pela cantora nesses 50 anos. E perceber também como essa memorabilia bethânica reverbera noutros artistas: De Moreno Veloso a Suzana Queiroga, de Demóstenes a Thomaz Azulay, dos Irmãos Campana a José Alcântara, entre outros tantos.
Dos objetos pessoais da artista, destacam-se o camarim (estrutura de ferro e tecido branco que Bethânia usa nas turnês), os entalhes em madeira feitos pela cantora e os "cadernos de trabalho" (preciosidades repletas de poemas, letras, imagens, colagens e rubricas).
Com idealização de Ana Basbaum e direção e expografia de Bia Lessa, esse universo singular feito de religiosidade, elementais, palavra escrita, palavras cantada, cheiros e imagens fica em exposição até 13/09.

Em tempo: todas as edições de A imagem do som foram registradas em livros importantes na biblioteca de quem ama e/ou pesquisa a canção popular no Brasil. Tomara que o mesmo aconteça com Maria de Todos Nós. Bethânia merece e seus fãs e pesquisadores também.

Estão previstos shows gratuitos. Sempre com início às 16h.

SÁBADO 4/7  Jaime Alem
SÁBADO 11/7 - Alexandre Dacosta
SÁBADO 18/7 - Leo Tomassini
SÁBADO 25/7 - Moreno Veloso e Pedro Sá
SÁBADO 1/8 - Kiko Horta
SÁBADO 8/8 - Luana - Banda Afro Cultural Ojuobá Axé
SÁBADO 15/8 - André Mehmari
SÁBADO 22/8 - Egberto Gismonti
DOMINGO 23/8 - Rubinho Jacobina
SÁBADO 29/8 - Jorge Mautner
DOMINGO 30/8 - Gleide Cambria
SÁBADO 12/9 - Julio Diniz

02 julho 2015

O mergulho



No texto “Experiência e pobreza” (1933), Walter Benjamin questiona “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural (e da riqueza sufocante de ideias) quando a experiência já não o vincula a nós?”. É do lugar dessa barbárie que surge a voz de Lira. Sem crença em redenção messiânica, essa voz interrompe o curso do mundo mercantil individualista, solitário e mimado pelo fetiche de inovação.
Desde sempre, essa voz assumiu o papel de mediador entre a lama e o beat (bit), entre o cantador (rural) e o cantor (urbano), entre o passado (tradição) e o contemporâneo (tradução). Lira enfrenta com coragem de verdade o processo de depauperação (empobrecimento) da experiência, ao fazer emergir de dentro da produção industrial de música, ecos de sonoridades que resistem ao tempo. Nega-se a pobreza, afirmando a experiência dessa existência sequestrada da cultura.
A palavra cantada em Lira sempre roçou a entonação da voz dos cantadores de feiras livres, repentistas, cordelistas. A palavra cantada em Lira é palavra forjada numa cena que (re)vitalizou uma cultura, apresentando essa cultura essencialmente oral a uma geração que, essencialmente video-cêntrica, na certa não atentaria para essa beleza. Mas aqui não há uma “sobrevalorização do arcaico”, como denunciou Adorno leitor de Benjamin a respeito das rememorizações na Modernidade. Há, sim, uma devoração do arcaico, em Lira.
A voz de Lira – palavra falada em ritmo de canto-declamação, nunca um canto educado no gosto do mercado – avança contra o movimento domesticador dos corpos. A voz de Lira não se adaptou aos procedimentos autômatos da indústria, apontando para uns brasis que existem e merecem escuta, com seus sotaques distintivos, seus jeitos de corpos agregadores. E, o mais importante, o olhar lançado por Lira para esse interior não é de piedade (pelas perdas), e sim de devoração, de incorporação dessas experiências em processo de perdas. Vem daí o vigor de suas apresentações ao vivo: da coragem de enfrentar esse patrimônio silenciado pela cultura escrita, ora estigmatizadas como inferiores, ora folclorizadas como objeto exótico de antigo museu. “Nós vamos pela margem da cidade / A linha de montagem desligada / Silêncio”, canta.
A carnavalização bakhtiniana que Lira promove nos extratos sonoros que ele manipula revela sua intenção de apropriação da experiência como integração do “novo” com a “tradição”: tudo fica suspenso. Isso está sugerido na letra de “O Mergulho” (Lira): “Andar nos fios que ligam as estrelas / Capacidade de mudar as coisas / Ouvir do velho como faz o novo / e cantar”. Eis a síntese do trabalho que Lira vem desempenhando na canção brasileira.
Nesse sentido, o disco O labirinto e o desmantelo (2015) surge como ápice de um projeto estético gestado e desenvolvido desde sempre. Equilibrando a potência da poesia falada com as experimentações melódicas dos instrumentos, Lira reforça sua verve de declamador vigoroso de paixões. A maioria das letras canta um querer urgente baseado em memórias coletivas (“Afinal chega o tempo de atacar a paz”) e privadas (“Agora o plano é te fazer feliz / Correr nos tubos do teu coração”). Em Lira, a primeira pessoa do singular é, na maioria das vezes, primeira pessoa do plural. O eu é nós. A lírica de Lira evoca sentimentos comuns, gera comunidade: “a forma secreta vibra como o mar / em ondas caladas”.
Lira é um ouvidor dessas ondas. E um leitor de poesia: os versos “Eu moro dentro de um relógio / Na torre no alto / Movendo o ponteiro das horas” estabelecem diálogo com “Sem ti é como olhar para um relógio / Só com o ponteiro dos minutos”, do “Monólogo de Orfeu”, de Vinicius de Moraes. Orfeu e Lira. Lira de Orfeu. Lira como um Orfeu que encanta as montanhas do Jabitacá.
O artista avança, pesquisa. A contenção no uso do verbo, o lapidar das palavras é característica que diferencia o Lira de O labirinto e o desmantelo do Lirinha que pinçou da poesia cerebral de João Cabral de Melo Neto a profusão verbal de “Os três mal-amados”: “(...) O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato (...)”.
Por outro lado, é esse amor à palavra que faz Lira declamar “A fábrica do poema” (outrora musicado por Adriana Calcanhotto), de Waly Salomão, nos espetáculos da turnê do disco: “Sonho o poema de arquitetura ideal / Cuja própria nata de cimento / Encaixa palavra por palavra (...) Acordo / E o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo”. Em harmonia com essa imagem, Lira cantará: “Eu sou o homem que te conheceu / e nesse dia mergulhou num sonho (...) verdade, eu nunca acordei”.
“Eu voltei pra replantar a tua memória”, Lira já cantou. Tenho cá pra mim a impressão de que Benjamin aqueceria as ideias ouvindo Lira cantar esses sujeitos líricos repletos de “lembranças desiguais”, vindas de um recanto íntimo e público: “Faço uma nova lembrança no mesmo lugar”.
As memórias que a voz de Lira carrega filtram saberes. E “todo filtro é santo”, assim como o canto de Lira é ritual de imersão num tempo preservado na memória (“cercada de poeira”) do canto do povo de um lugar: mesmo retirante – transplantado do rural para o urbano. “A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”, anotou Benjamin (“O narrador”, 1936). Creio que é isso que Lira reafirma ao cantar que “quem sabe é pra sempre”.

***

O Mergulho
(Lira)

Eu quero
Eu quero você

Eu sou o homem que te conheceu
e nesse dia mergulhou num sonho
Nadava, passava em você
Paisagem clara que se desmontava
Passagem rara por canais brilhantes
Verdade, eu nunca acordei

Quero soprar teu calor

Agora o plano é te fazer feliz
Correr os tubos do teu coração
Tocar além, cicatrizar o chão
e sonhar

Andar nos fios que ligam as estrelas
Capacidade de mudar as coisas
Ouvir do velho como faz o novo
e cantar