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03 abril 2020

RESENHA: Vocalidade em Guimarães Rosa


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o livro “Vocalidade em Guimarães Rosa”, de Erich Soares Nogueira.

            A partir da leitura dos textos de Paul Zumthor, Erich Soares Nogueira defende que, além de suporte, a voz é manifestação de sentido. As narrativas de João Guimarães Rosa "Meu tio o Iauaretê", "Buriti" e "O recado do morro" são analisadas à luz desta premissa em Vocalidade em Guimarães Rosa, tese defendida por Nogueira na UNICAMP (2014). O autor defende a necessidade de desatrelar a ideia de sentido à gramaticalidade e à transparência da oralidade e da escrita, abarcando a dimensão da vocalidade/voz, com seu modo próprio de fazer sentido. Isto é, segmentos agramaticais em uma performance não são necessariamente assemânticos, nem seguem uma lógica estranha à linguagem. O que eles fazem é desvelar o significante total da voz, que é presença, positividade, conjuração do corpo que, para Zumthor, também despeja o signo de sua arbitrariedade. Assim como o autor de Introdução à poesia oral e A Letra e a voz, Erich investiga a aproximação dos elementos de uma performance predominantemente oral que estão presentes no ato de leitura (p. 35).
A distinção entre oralidade e vocalidade, sendo esta não necessariamente constituída do logos, é importante, assim como as diferenças entre estas duas categorias fônicas e a estanque escritura. Aliás, é a partir desta, de uma análise dos modos como o grafismo, mais ligado normalmente à oralidade, aparece nas narrativas de Rosa, que a tese de Nogueira se desenvolve: o jogo entre o intangível da vocalidade e a notação linguística. Nogueira considera a oralidade como uma abertura para a vocalidade em Guimarães (p. 53).
 Guimarães Rosa sublinha a materialidade do discurso através da assimilação e do uso de diversos gêneros orais, lançando mão de onomatopeias, quebras de sentido lógico, adjetiviza ou pessoaliza a própria voz, conferindo-lhe características singulares etc. Rosa pratica uma polifonia que conjura um mosaico de vozes em um sentido mais próximo daquele significante total representado pela dimensão da vocalidade, uma polifonia mais próxima, portanto, da música ou da phoné aristotélica. A questão do letramento e do preconceito com os “iletrados” foram abordadas como contribuintes para a supervalorização da escrita e a decorrente desvalorização da oralidade (p. 26).
Erich aponta casos do protagonismo da voz e sua materialização como “ação sonora que cria sentido, mundos, seres, que se alia à busca do divino; ou ainda, como forte elo rítmico que agrega e sustenta toda uma cultura” (NOGUEIRA, 2014, p.18). Nessa direção, Erich elenca "Tarantão, meu patrão", em que a voz tem uma força encantatória que suplanta a correção gramatical, a estruturação linguística, os limites do léxico, a coerência discursiva, abrindo mão do significado literal em função de uma potência entoativa própria.
A existência da voz é anterior a da escrita, pois “toda voz é corpo; toda voz é presença de uma singularidade encarnada; toda voz é relacional e pressupõe uma escuta” (p. 21). Aquilo de que era realizada no silêncio, leitura de poemas, recebe corporificação na voz, sendo um "acontecimento vinculado à presença irredutível de um corpo que se expande por meio da voz e dos gestos, dirigindo-se a um público cuja presença corpórea também entra no jogo de significação" (p.35).
O ato da leitura de obras literárias produz o efeito da voz no momento que o leitor ouvi as vozes dos personagens juntamente com a dele próprio. Fazendo uma analogia entre poema vocalizado e o texto literário, o autor escreve que "o canto é a expressão máxima desse excesso, e seu correspondente, na escrita, é a literatura" (p.42). Vale lembrar que: "Essa vocalidade é constitutiva da escrita literária, mas ela tende a ganhar maior consistência na leitura em voz alta" (idem). Em Guimarães Rosa, cria-se de fato um novo vocabulário para dizer a voz. Alguns trechos, na verdade, são mais do que descrições, são elaborações de forte caráter poético que nos ensinam uma escuta mais aguçada da voz, em todas as suas nuances, sutilezas e sugestões. Note-se, também, que há a clara preocupação de marcar a singularidade de cada voz, as suas qualidades únicas, em consonância com as características que particularizam cada personagem. Além disso, essas vozes, em vários momentos, também incorporam e expressam o contexto narrativo, marcado pela tensão, pelo erotismo, pela violência, etc. (p. 54). O autor observa que "é por efeito de um trabalho literário que nos chegam essas vozes, inclusive trazendo dimensões de sentido que só ganham força no interior da ficção" (p. 61). Ele ressalta ainda, que isso ocorre devido também a "cantigas, ditados, poemas orais, causos, rezas e diálogos" no conjunto composicional da obra de Guimarães.
            Erich cita Adriana Cavarero e a definição que a filósofa dá à voz: "unicidade encarnada", ou seja, a singularidade (reconhecimento) de seu emissor. Mais adiante, Cavarero também é citada para a conceituação, dada pela mesma, de que "voz é presença" (p.18), e o que surge na cultura moderna é ausência da presença dessa voz, como por exemplo, quando a voz é gravada e midiatizada, impossibilitando a participação (resposta no mesmo tempo e espaço) de seu ouvinte. Essa mesma ausência vai ser tratada por Paul Zumthor no que diz respeito a escrita, que é "ausência quase absoluta do corpo e da voz". Por sua vez, Cavarero utiliza-se da expressão "unicidade encarnada" para falar da singularidade do corpo de um sujeito; e "ontologia vocálica" pretende apreender a singularidade do ser que se desdobra através da voz que enlaça uma pluralidade de vozes. Desse modo, a voz articula corpo vivo e discurso como propõe Roland Barthes em "O rumor da língua". Toda voz implica uma escuta, pois é um chamamento, uma invocação.
            O autor da tese investiga a animalidade encontrada no conto "Meu Tio o Iauaretê" e também menciona essa marca indígena com várias expressões de tribos bem desconhecidas até então. A figura da Iara marca o folclore e as lendas que circundam esse povo. Em "Buriti" trata da voz do miolo insondável da noite ouvido por Chefe Zequiel. Em "Recado do Morro" conta sobre as diversas vezes que reverberam. Falando sobre essa "ciência da voz", ele trata de uma ciência global que compreende a física, a linguística e outras áreas também. Se a voz se equipara a emissão sonora de um texto por meio de um corpo a voz está mais para o corpo do que necessariamente para um discurso. Logo, essa voz emitida não necessariamente está vinculada à palavra.
No texto escrito há a presença do corpo da voz, que revela um ser e implica uma escuta. Essa presença, essa revelação e essa escuta se dão pelo ato da leitura.  “Se bem entendido, o leitor toca a palavra com a sua voz e, reversivelmente, sua voz é tocada pela palavra. O leitor dá sua voz à palavra e ao mesmo tempo deixa sua voz ser atravessada pelas vozes do texto, fazendo da leitura uma “operação vocal” que, não contraditoriamente, será também uma operação de escuta, isto é, a escuta de uma voz da linguagem” (p. 40), escrever Erich. O uso da linguagem oral presente na obra rosiana vai além da mera reprodução de regionalismos e arcaísmos, por exemplo. Esse trabalho revela mais do que uma tentativa de documentação da fala e de sua variedade oral, mas também a prevalência da escrita literária e renovação de um mundo. "A simples reprodução de um arcaísmo ou de um vocábulo regional já conhecido em um novo contexto de linguagem pode promover um deslocamento de sentido igualmente renovador da percepção desse mesmo vocábulo e, por extensão, da realidade a que fazia referência", diz Nogueira (p. 47), que ainda nos cita Antonio Candido ao afirmar que “Sagarana” apresenta "menos uma região do Brasil do que uma região da arte".
Essa inegável qualidade hipersensorial da linguagem é importante para a dimensão da vocalidade, na medida em que, entre as várias faculdades perceptivas revigoradas pela invenção de Guimarães Rosa, está a que julgo central ― a percepção de uma voz ― porque dela depende o próprio ato de leitura, conforme se argumentou, teoricamente, no capítulo anterior. Ao darmos o corpo de nossa voz ao corpo de sua palavra, passamos a escutar a voz de uma linguagem cujo objetivo é quase sempre exceder as fronteiras de sentido, lançando o leitor num mundo sonoro com significações muito mais abertas e moventes do que se poderia supor em uma “fala sertaneja” (NOGUEIRA, 2014, p. 70).
A leitura, mesmo silenciosa ‘interiorizada”, para Spire, “não é só mental”. A performance, para Zumthor, não é só corpórea, mas abrange elementos situacionais e mais complexos que os existentes na poética. O que marca a vocalidade em Grande sertão: veredas é, não só, a tendência do leitor a acompanhar um diálogo, mas uma ideia de enunciação ao longo de todo o texto, de que uma voz se destina a alteridade, exigindo a “presença da voz e escuta do leitor” (p. 66). A leitura manifesta a presença de um outro (outra voz), que demanda uma escuta, decorrendo disso uma resposta corporal de quem lê. Assim, a voz está presente na leitura, como defende Paul Válery, “a ‘forma’ do poema (...) é a voz em ação” (p. 36). Ou seja, para Erich Nogueira, "todo o livro se lança e se sustenta como instância de enunciação, portanto como endereçamento de uma voz a uma alteridade, exigindo, como condição dessa estrutura, a presença da voz e da escuta do leitor" (p. 66). Toda voz implica escuta, ela faz sentido quando gera algo no outro, gerando mais um critério para sua existência: a alteridade. Assim, a voz, mesmo fora da linguagem ou em suas fronteiras, gera um sentido, já que convoca um outro (p. 20).

NOGUEIRA, Erich Soares. Vocalidade em Guimarães Rosa. Campinas, SP: UNICAMP, 2014.

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