É o ritmo que faz uma canção cuja língua
desconhecemos nos assaltar. Mas haveria aí a eficácia da canção já que para se
configurar como tal é necessário, como temos mostrado, a priori, a voz de
alguém "dizendo" algo de modo singular e reconhecível para os ouvidos
de outro alguém? Salvo engano, esse reconhecimento, essa "harmonia
imensa" entre ouvinte e coisa-cantada ultrapassa a decifração do código
verbal.
Ou seja, quando o assunto é canção, há algo que
acima da utilidade verbal valoriza o modo de emissão da mensagem. Para tanto
trabalham a voz, o arranjo, a situação da audição e, sobretudo, a disposição
(mesmo que sobressaltada) do ouvinte. O meio - a canção - em si já é a
mensagem. Ao comentar sobre a origem da poesia, Nietzsche anota: "Mediante
o ritmo, um pedido humano deveria se inculcar mais profundamente nos deuses,
depois que as pessoas notaram que a memória grava mais facilmente um verso que
uma fala normal; também acreditavam que por meio do tiquetaque rítmico podiam
ser ouvidos a distâncias maiores; a oração ritmada parecia chegar mais perto
dos ouvidos dos deuses" (Gaia
ciência, p. 112).
Deste modo, é no desempenho rítmico da voz de alguém
cantado que mora a eficácia da canção. E aliada a isso a competência inata de
todo ouvinte em estar com os ouvidos abertos aos convites da poesia.
Obviamente, ao descobrirem isso, fez-se do ritmo uma maneira de coagir
multidões: um exercício de poder, pedagógico. Mas há que se atentar para aquilo
que o ritmo é de "ferocidade do ânimo" incutindo no indivíduo o não
querer ser rebanho (escravo), indo na contramão do interesseiro binômio bem e
mal, bom e mau: dançar seguindo a cadência do cantor, como um ajuste
(terapêutico) na alma.
Ainda de acordo com Nietzsche "Melodia
significa, conforme sua raiz, um calmante, não porque seja calmo em si, mas
porque seus efeitos acalmam. - não somente nos cânticos rituais, mas também nos
cantos profanos mais antigos há o pressuposto de que o ritmo exerce uma força
mágica" (p. 112). Por exemplos: a exaustão após uma dança, o cansaço da
quarta-feira de cinzas, os instantes após o ritual religioso - o corpo, sendo a
alma, encontraria aí, o ajuste necessário. Eis a utilidade do ritmo, do
cancionista, da canção, da arte. "Sem o verso não se era nada; com o
verso, quase um Deus", anota Nietzsche (p. 113).
É também Nietzsche quem lembra a frase que
Aristóteles atribuía a Homero: "Mentem demais os cantores!". Ora,
como não encontrar nos versos de "Drama", de Caetano Veloso, na voz
de Maria Bethânia, a justa resposta à proposição homérica: "Eu minto, mas
minha voz não mente / Minha voz soa exatamente / De onde no corpo da alma de
uma pessoa / Se produz a palavra eu / Dessa garganta, tudo se canta / Quem me
ama, quem me ama". Repito: É no desempenho rítmico da voz de alguém
cantado que mora a eficácia da canção. E a voz não mente, ela indicia a existência
de alguém, um par do ouvinte no mundo.
Acredito que já está mais do que sugerido que a
máquina de ritmos é o demasiado humano em nós, ouvintes-cantores: a alma - a
voz por trás, à frente, dentro da canção. É Gilberto Gil, cancionista que já
declarou que "O cérebro eletrônico faz tudo / Faz quase tudo / Mas ele é
mudo", quem canta a tal "Máquina de ritmo": "Tão prática,
tão fácil de ligar / Nada além de um bom botão / Sob a leve pressão do polegar
(...) Apesar do seu computador / Ter samba bom, samba ruim / Se aperto o botão,
meu coração / Há de dizer que é samba sim".
Poeta, Gil está brincando com signos entre o coração
(máquina orgânica de ritmização da vida) e os equipamentos (cérebros
eletrônicos) de armazenamento e potencialização de canção. Isso fica mais
evidente quando já nos últimos versos da canção ele evoca: "Moreno,
Domenico, Kassin / Assim meus filhos, filhos seus / E Bandos da lua virão se
encontrar / Numa praia toda lua cheia pra lembrar / Só pra lembrar / Você e
eu". Isso porque os três cancionistas citados, ao lançarem o disco Máquina de escrever música (2000),
apresentaram novos modos de usar e fazer canção ao misturar harmonicamente sons
sintetizados e acústicos.
Gil fala da passagem do tempo, das necessidades de
adequações dos mecanismos de feitura de canção, evoca e revigora também o Bando
da lua - como agente cancional lá do início do fazer canção popular no Brasil -
para finalizar lançando luz sobre o futuro das canções preservadas no tempo,
mais do que guardadas em arquivos digitais, na voz índice do humano. Isso
sugere que enquanto houver humano haverá canção, pois sempre será o coração o
responsável por dizer se algo é ou não samba.
Comentando sobre as “mitologias tecnicistas”,
Fernando Iazzetta anota: “imaginar que a máquina retira o que há de humano na
música é esquecer que não há nada mais representativo do que é humano do que as
máquinas que fazemos” (Música e mediação
tecnológica, p. 25). Para o autor, é preciso analisar a simbiose, não a
dependência na relação entre música e tecnologia.
Ao escrever sobre o rock nos anos 80 do século
passado, Arnaldo Antunes aponta os sintomas da "crise da canção":
"A incorporação do berro e da fala ao canto; o estabelecimento de novas
relações entre melodia e harmonia; o reprocessamento e colagem de sons já
gravados; os ruídos, sujeira, microfonias; as novas concepções de mixagem, onde
o canto nem sempre é posto em primeiro plano, tornando-se, em alguns casos,
apenas parcialmente compreensível; a própria mesa de mixagem passando a ser usada
quase como um instrumento a ser tocado. Tudo isso altera a concepção de uma
letra entoada por uma melodia, sustentada por uma cama rítmica-harmônica. O
sentido das letras depende cada vez mais do contexto sonoro" (40 escritos, p. 46).
Para Antunes, o rock, como canção-para-dançar,
"parece nos remeter, dentro do mundo tecnologizado, a um estado mais
primitivo. Como nas tribos, onde a música, associada à dança, cumpre sempre uma
função vital - religiosa, curativa, guerreira, de iniciação ou para chamar
chuva" (idem, p. 47). Nossa competência brasileira na criação de canções
para dançar, portanto, nos reposiciona na origem da poesia, do desafogar a alma
dos excessos "do medo, da mania, da compaixão, da sede de vingança",
como lista Nietzsche (idem). O corpo do ouvinte que dança ao ritmo do cantor
quer reviver uma inocência perdida. Individualizado, ele quer se perder na
massa. Para sair dela mais único que antes.
Penso nisso enquanto ouço "Iemanjá
carioca", do DJ MAM e Aleh (Sotaque
carregado, 2012). Misturando sons de guitarras e percussão, orquestra e
afrobeat, a canção-para-dançar, porque grávida de sintagmas de elementos
afrobrasileiros, convida o ouvinte a mais do que o simples mexer-do-corpo:
intenciona-se um estado-de-alma que tangencia o ritualístico ao unir ritos de
tradição afro-brasileira com a dança a princípio esvaziada de conteúdo
religioso. Rito e techno misturados invocam corpo e ação corporal à primazia
primária da celebração: transvaloração da imersão sensual e sensorial.
"No poema primitivo o ritmo retoma, concentra e
realça os acentos da linguagem oral", anota Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia (p. 82). É
exatamente isso que "Iemanjá carioca" faz: unindo os signos da
Iemanjá local, íntima do sujeito ("Negra, índia, em casa portuguesa, / A
nossa Iemanjá d’Akari oka") e projetando a geografia por onde o ser rege
("Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem / Cosme Velho, lá de cima,
você pode ver também / Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar / Pro Catete
ou Flamengo, Glória a esse orixá"), a canção figurativiza uma entidade que
reina sobre todas as cabeças: "O Rio encontra seu lar / No ventre de
Olokum".
"A Iemanjá criada no Brasil, que viajou para o
Sul e para o Norte, é outra, embora conserve o título de 'Rainha do Mar'. As
vezes é sereia, outras ninfa e recentemente até virgem, identificando-se mais
com a Virgem Maria, a tal ponto que suas devotas no Rio ficam ofendidas lendo
casos da Iemanjá africana, de grande força sexual", escreve Zora A. O.
Seljan em Iemanjá Mãe dos Orixás (p.
15).
A mistura rítmica-harmônica na canção é a cama
sonora exata para essa Iemanjá amalgamada, brasileira, carioca: "Filha de
Tamoios com a África dos Yorubás", atravessada pela língua portuguesa.
Ela, por sua vez, por ser como é, livre, abala o cânone da uniformidade: o
fluxo oral joga com o fluxo da melodia reiterativa na tentativa de métrica no
texto da letra. O todo cancional resulta na criação de um ambiente sonoro
mítico e como Roger Bastide observa: "O mito é anterior ao rito; ele é,
primitivamente, uma tentativa de explicação dos fenômenos da natureza, uma
primeira cosmogonia, e o rito viria depois, moldando-se na sua estrutura, sobre
os temas míticos já preexistentes" (Imagens
do Nordeste místico em preto e branco, p. 11-112).
"O ritmo provoca uma expectativa, suscita um
anelo. Se é interrompido, sentimos um choque. (...) Todo ritmo é sentido de
algo. Assim, o ritmo não é exclusivamente uma medida vazia de conteúdo, mas uma
direção, um sentido. O ritmo não é medida, mas tempo original. (...) No ritmo
há um 'ir em direção a', que só pode ser elucidado se, ao mesmo tempo, se
elucida quem somos nós. (...) Rituais e narrativas míticos mostram que é
impossível dissociar o ritmo de seu sentido", escreve Octávio Paz em O arco e a lira (p. 68-70).
É assim, da "harmonia imensa" entre
sujeito da canção e ouvinte, que surge o sujeito cancional. Como
"diz" o sujeito da canção "Love, love love", de Caetano
Veloso: "Eu canto no ritmo, não tenho outro vício / Se o mundo é um lixo,
eu não sou / Eu sou bonitinho, com muito carinho / É o que diz minha voz de
cantor / Por nosso Senhor". Ou senhora: "Ogunté, Iamassê, Euá /
Olossá, Ya, Assabá, / Iemowô, Assessu, Yemojá".
***
(DJ MAM / Aleh)
Filha de Tamoios com a África dos Yorubás
A nossa Iemanjá
Negra, índia, em casa portuguesa
A nossa Iemanjá d’Akari oka
Céu aberto, da Floresta da Tijuca, ela vem
Cosme Velho, lá de cima, você pode ver também
Laranjeiras, o Machado de Xangô vai apontar
Pro Catete ou Flamengo, Glória a esse orixá
O Rio encontra seu Lar
No ventre de Olokum
Beira do Aterro, no mar
Vive mamãe Iemanjá
Ogunté, Iamassê, Euá
Olossá, Ya, Assabá,
Iemowô, Assessu, Yemojá
Um comentário:
Leonardo,
Estou extremamente agradecido pelo seu artigo e por tamanha elucidação de nossa arte. Sou muito interessado pela história da canção brasileira e por sua análise acadêmica. Foi muito prazeroso poder ter a nossa música situada em tamanha riqueza de citações, que emolduraram o seu texto. Sinto-me compreendido. Sinto-me comunicando. Sinto-me agradecido pelo seu cuidado. Meu propósito de compor a letra dessa música ganhou eco., A sua melodia nasceu primeiro, composta em parceria com o Aleh, que assinou comigo o arranjo, após a composição da letra. Despeço-me agradecendo pelo legado de sua análise, que é a minha total crença na comunicação de nossos valores através da música, bem como pelo incentivo à carreira de compositor, e músico.
Que Iemanjá continue a banhar o seu ori!
Ogum bossifuo!
Axé!
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