"Ao longo do tempo, as sereias mudam de forma. Seu
primeiro historiador, o rapsodo do décimo segundo livro da Odisseia, não nos
diz como eram; para Ovídio, são aves de plumagem avermelhada e rosto de virgem;
para Apolônio de Rodes, da metade do corpo para cima são mulheres e, para
baixo, aves marinhas; para o mestre Tirso de Molina (e para a heráldica),
'metade mulheres, metade peixes'. Não menos discutível é sua categoria; o
dicionário clássico de Lemprière entende que são ninfas, o de Quicherat que são
monstros e o de Grimal que são demônios. Moram numa ponte ilha do poente, perto
da ilha de Circe, mas o cadáver de uma delas, Partênope, foi encontrado em
Campânia, e deu seu nome à famosa cidade que agora se chama Nápoles, e o
geógrafo Estrabão viu sua tumba e presenciou os jogos ginásticos que
periodicamente eram celebrados para honrar sua memória", anota Jorge Luis
Borges em O livro dos seres imaginários (p. 145).
No décimo livro da República, Platão registra que são oito
sereias que presidem a revolução dos oito céus concêntricos "No cimo de
cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um
único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um
acorde de uma única escala" (p. 316). E destaca: "Mais três mulheres
estavam sentadas em círculo, a distâncias iguais, cada uma em seu trono, que
eram as filhas da Necessidade, as Parcas, vestidas de branco, com grinaldas na
cabeça - Láquesis, Cloto e Átropos - as quais cantavam ao som da melodia das
Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos o futuro"
(idem).
Ora, já na Odisseia, Ulisses narra o famoso canto (porque
contém a fama - reputação, glória e notícia - do ouvinte) como aquele que detém
o ouvinte justamente porque guarda o passado (a guerra de Tróia), o presente
(os périplos no retorno à Ítaca) e o futuro (o orgulho e a glória). Mas o que
chama atenção nas palavras de Platão, diferenciando-se das de Ulisses, é que
não são as sereias que cantam, mas 3 mulheres "ao som da melodia das
Sereias".
Importa anotar que três era a medida antiga de contar os
extremos para os gregos. Platão chama imitador ao autor (o pintor) daquilo que
está três pontos afastado da realidade, atrás dos artífices da cama, por
exemplo, Deus e o carpinteiro.
Retornamos ao tema da imitação, tão caro a Platão. As
mulheres, neste caso, imitariam o canto sirênico. No entanto, acrescentado de
palavras audíveis aos ouvidos comuns. E isso muda tudo, essas mulheres-poetas
são a mediação entre o inaudível e o público. E assim o canto mudo das
divindades chega ao humano.
Ou seja, Platão confunde Musa (cujo canto está reservado ao
poeta) e Sereia (de canto audível para ouvidos humanos). De modo enviesado, ele
sugere que as três mulheres, deste modo, poderiam ser o rascunho da neo-sereia
que tenho analisado aqui: seres reais que, longe-perto, representam o mito, a voz
que resume em um relato verídico (das sereias) o relato absoluto (das musas). E
para por aqui a (quase) semelhança entre Platão e a neo-sereia.
Para a defesa que faço do dispositivo de análise que
denomino neo-sereia, o cancionista não instaura o mau na alma do ouvinte, até
porque nosso entendimento das relações interpessoais estão além (ou aquém) das
noções/ideias estancadas de bem e de mal, visa o elogio dos sentidos, da
"música da vida", acessada pela gaia ciência, que indistigue racionalmente
o que é maior e o que é menor, o que é bom e o que é mau.
A neo-sereia, a sereia nossa contemporânea, por ser
cancionista, condensa as filigranas das sereias homéricas (o canto dos três
tempos), platônicas (o canto do canto das musas e das sereias; fingidoras da
dor que deveras sentem), da mãe d’água de José de Alencar - “moça de formosura
arrebatadora; tinha os cabelos verdes, os olhos celestes, e um sorriso que
enchia a alma de contentamento” (O tronco do ipê); e das demais teorias da
potencialidade da emissão vocal. Uma categoria tropical, afro-americana, a
neo-sereia, ao contrário do que faz o idioma inglês, não distingue a sereia
clássica (siren) das que têm cauda de
peixe (mermaids). É no amálgama,
diria Jorge Mautner, que reside a contribuição brasileira para o mundo.
É deste turbilhão espumoso que sai "Itapuana", de
Arnaldo Antunes e Cézar Mendes, a sereia das três raças, personagem cantada por
Arnaldo Antunes (Saiba, 2004). Itapuana se insere no panteão das qualidades de
Iemanjá: una e múltipla, sereia transplantada e atropofagizada para o Brasil,
Cuba, Uruguai. "En Brasil, Yemanjá es inspiradora de ritos públicos
espectaculares que en años reciente dejaron de ser prerrogativa de Bahía y Río
para extenderse a la populosa y cosmopolita São Paulo. Allí la sirena es rubia
y, asociándola a la Virgen María, se le rinde culto el día de la Inmaculada
Concepción. Pero es notorio que Yemanjá he elegido residir en Bahía se San
Salvador, y precisamente en las aguas profundas de la laguna de Abaeté en
Itapuã" (Meri Lao, em Las Sirenas, p. 118-119).
Ora, basta atentar para a letra de "Itapuana" para
identificar nela uma proliferação dos significantes desta Yemanjá de Itapoã.
Tendo o nome da rainha das águas sido obliterado no título, substituído por um
nome de derivação feminina Tupi (Itapuã: pedra que ronca), é na última estrofe,
no último verso que encontramos a revelação neo-barroca da personagem:
"Quantos risos misturei ao som das águas / Quantas lágrimas de amor molhei
no mar / No mais íntimo / Dos mais íntimos / Dos lugares desse lugar / Lugar
público / Colo e útero / Amoroso de Yemanjá".
Íntimo e público, porque colo e útero de mãe, Itapuana é o
espaço criado pelo sujeito da canção para servir de cenário à sereia que mora
no Abaeté onde uma lagoa escura é arrodeada de área branca. E como não
reconhecer Itapuana na Iemanjá-Sereia-Grande-Mãe de Rubens Carybé, guardada no
Museu Afrobrasileiro, em Salvador-BA.
Para cantá-la, Arnaldo Antunes, o cancionista do barulho, do
berro, da urgência do agora, baixa dos tons e entoa a la Dorival Caymmi. O
sujeito cancional produzido aqui é justificado na quase canção de ninar
ancorada na melodia de cordas (viola, violão, guitarra) e teclados. Tudo
convida o ouvinte a admirar a beleza nunca desperdiçada - existe, sozinha - de
Itapuã, em seu eterno retorno - de novo, de novo para sempre esta pedra
roncará, aurora em fim de tarde.
A título de curiosidade, vale lembrar, portanto, que não é à
toa que Dona Flor tem sua primeira vez sexual com Vadinho em Itapuã: “Um amigo
endinheirado, Mário Portugal, solteiro e estróina naquele tempo, emprestou a
Vadinho oculta casinhola para os lados de Itapoã. A viração desatava os cabelos
lisos e negros de Flor, punha-lhe o sol azulados reflexos. No barulho das ondas
e no embalo do vento, Vadinho arrancou-lhe a roupa, peça a peça, beijo a beijo.
(...) Rompeu a aleluia sobre o mar de Itapoã, a brisa veio pelos ais de amor,
e, num silêncio de peixes e sereias, a voz estrangulada de Flor em aleluia; no
mar e na terra aleluia, no céu e no inferno aleluia!”, registra Jorge Amado na
décima segunda parte do famoso romance.
Mas é em versos como os da estrofe que diz "Nas manhãs
de Itapuã que o vento varre / Os coqueiros já conhecem as canções / Repetidas
ou / Repentinas vêm / Consolar o meu coração / As vontades vêm / As saudades
vão / Amanhece mais um verão" que se encontra a ponte entre cantor e
ouvinte, mergulhado no banho tépido da voz grave, da água morna. O sujeito da
canção compartilha com o ouvinte a memória das águas que consolam. Memória
cancional: de Dorival Caymmi - "Coqueiro de Itapuã, coqueiro / Areia de
Itapuã, areia / Morena de Itapuã, morena / Saudade de Itapuã me deixa / Oh
vento que faz cantiga nas folhas / No alto dos coqueirais / Oh vento que ondula
as águas / Eu nunca tive saudade igual / Me traga boas notícias daquela terra
toda manhã / E joga uma flor no colo de uma morena de Itapuã" - a Caetano
Veloso - "Itapuã, quando tu me faltas, tuas palmas altas / Mandam um vento
a mim, assim: Caymmi (...) Eu cantar-te nos constela em ti / Eu sou
feliz". Passando por Vinícius de Moraes e Toquinho: "É bom / Passar
uma tarde em Itapuã / Ao sol que arde em Itapuã / Ouvindo o mar de Itapuã /
Falar de amor em Itapuã".
Caymmi. “A marina caymmiana é mestiça. Nela podemos detectar
um distante e vago resíduo ameríndio, a presença difusa dos bantos, a
predominância de elementos portugueses e iorubanos. Tudo transfigurado,
naturalmente. E esta mestiçagem se expressa desde já no trato caymmiano com a mitologia
baiana, como se ouve numa composição como ‘A lenda do Abaité’. Todos sabem que
esta lagoa se tornou famosa não apenas por sua beleza, mas também pelos
inúmeros afogamentos nela ocorridos. Caymmi soube reter e assentar, em sua
poesia, esta mescla de encanto e perigo. (...) A lagoa ainda hoje atemoriza,
mas os ipupiaras de Itapuã foram esquecidos. Ou antes, sobrevivem
irreconhecivelmente num misto de Iemanjá, a filha de Olokum e deusa dos egbás,
e de sereia branca da Europa, dedicada ao canto e ao sexo. Houve uma
identificação entre a orixá nigeriana e a sereia, esta por sua vez já
confundida com a mãe-d’água, que ao que parece era originalmente uma cobra. O
mito é, portanto, de extração euro-afro-ameríndia. E esta bricolagem mitológica
vai se refletir na criação estética baiana.” (Antonio Risério, Caymmi: uma
utopia de lugar, p. 78-80).
Ora, inserindo-se como mais um entre os mitemas (cantos) que
compõem o mito de Itapuã, podemos intuir que a personagem-canção Itapuana é a
morena de Itapuã, é a lua de braços morenos, é a sereia do sujeito da canção
(que canta ao som da melodia dela, tal e qual as mulheres descritas por Platão),
é a energia motora da canção. Ela é aquela que volta e manda a saudade embora a
cada lembrança cantada do lugar: "Itapuã, tuas luas cheias, tuas casas
feias / Viram tudo, tudo, o inteiro de nós / Nosso sexo, nosso estilo, nosso
reflexo do mundo / Tudo esteve em Itapuã", diz o sujeito criado por
Caetano.
Não podemos deixar de lembrar que as "Lendas do Abaeté" foram enredo da G.R.E.S. Mangueira em 1973. Os versos de Jajá, Preto Rico e Manuel, cantados em coro durante o desfile dizem: "Oh! Que linda noite de luar / Oh! Que poesia e sedução / Branca areia, água escura / Tanta ternura no batuque e na canção / Lá no fundo da lagoa / No seu rito e sua comemoração / Foi assim que eu vi / Iara cantar / Eu vi alguém mergulhar / Para nunca mais voltar".
A título de curiosidade, importa anotar que segundo contam Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas, no livro Samba de enredo, história e arte (2010, p. 68), só 1966 um orixá, "no desfile do segundo grupo", é mencionado pela primeira vez em um samba: "Apoteose ao folclore brasileiro", do G.R.E.S. São Clemente. O orixá, claro, foi Iemanjá: "(...os negros / Ornamentando a natureza / Na pescaria do xareu / Que simboliza a típica beleza / Das baianas que dançam / Com grande alegria / Pra rainha iemanja / Nas noites de luanda na bahia".
Não podemos deixar de lembrar que as "Lendas do Abaeté" foram enredo da G.R.E.S. Mangueira em 1973. Os versos de Jajá, Preto Rico e Manuel, cantados em coro durante o desfile dizem: "Oh! Que linda noite de luar / Oh! Que poesia e sedução / Branca areia, água escura / Tanta ternura no batuque e na canção / Lá no fundo da lagoa / No seu rito e sua comemoração / Foi assim que eu vi / Iara cantar / Eu vi alguém mergulhar / Para nunca mais voltar".
A título de curiosidade, importa anotar que segundo contam Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas, no livro Samba de enredo, história e arte (2010, p. 68), só 1966 um orixá, "no desfile do segundo grupo", é mencionado pela primeira vez em um samba: "Apoteose ao folclore brasileiro", do G.R.E.S. São Clemente. O orixá, claro, foi Iemanjá: "(...os negros / Ornamentando a natureza / Na pescaria do xareu / Que simboliza a típica beleza / Das baianas que dançam / Com grande alegria / Pra rainha iemanja / Nas noites de luanda na bahia".
Tudo em “Itapuana” é impressão descritiva. Sobre a relação
com a lua, "os minas diziam que de dia ela [Yemanjá, e acredito que
chegamos ao acordo de que Itapuana é uma qualidade de Yemanjá] estava na terra
e de noite no mar. Na água ela é uma sereia. A Iemanjá mais velha tem escamas
nacaradas da cintura para baixo, rabo de peixe, os olhos brancos, saltados,
redondos, muito abertos. 'As pupilas negras, pestanas como agulhas e os peitos
muito grandes'", anota a pesquisadora Lydia Cabrera, em Iemanjá e Oxum (p.
40).
“O que me agradava era recordar aquela cantiga, estúrdia,
que reinou para mim no meio da madrugada, ah, sim. Simples digo ao senhor:
aquilo molhou minha ideia”, diz o Riobaldo de Guimarães Rosa. De todos -
"é sua / é minha" -, a beleza de ser mimado, ninado e cantado por
"canções repetidas ou repentinas" a cada saudade consola o coração do
sujeito: "as vontades vêm / as saudades vão" ao som do mar, da pedra
que sempre roncará - "cada dia uma nova eternidade" e esta certeza da
beleza é a fonte do canto - a melodia que leva o sujeito a cantar, a ser artífice-de-si,
posto que "no calor do sol o céu da boca salga / e o mar na alma acalma o
caminhar".
***
Itapuana
(Arnaldo Antunes / Cézar Mendes)
Quando o dia vem varando a alvorada
Antes mesmo de nascer a luz do sol
A beleza nunca é desperdiçada
Existe
Sozinha
Quando a água morna molha nossas pernas
E a areia massageia nossos pés
A beleza sempre é compartilhada
É sua
É minha
Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão
No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam
Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo
Quantos risos misturei ao som das águas
Quantas lágrimas de amor molhei no mar
No mais íntimo
Dos mais íntimos
Dos lugares desse lugar
Lugar público
Colo e útero
Amoroso de Yemanjá
(Arnaldo Antunes / Cézar Mendes)
Quando o dia vem varando a alvorada
Antes mesmo de nascer a luz do sol
A beleza nunca é desperdiçada
Existe
Sozinha
Quando a água morna molha nossas pernas
E a areia massageia nossos pés
A beleza sempre é compartilhada
É sua
É minha
Nas manhãs de Itapuã que o vento varre
Os coqueiros já conhecem as canções
Repetidas ou
Repentinas vêm
Consolar o meu coração
As vontades vêm
As saudades vão
Amanhece mais um verão
No calor do sol o céu da boca salga
E o mar na alma acalma o caminhar
Pra que haja areia sal e água e alga
As ondas
Não voltam
Cada dia uma nova eternidade
Para sempre aquela pedra roncará
A aurora se transforma em fim de tarde
De novo
De novo
Quantos risos misturei ao som das águas
Quantas lágrimas de amor molhei no mar
No mais íntimo
Dos mais íntimos
Dos lugares desse lugar
Lugar público
Colo e útero
Amoroso de Yemanjá
Nenhum comentário:
Postar um comentário