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03 janeiro 2013

Quando a canção acabar



"(...) tudo pode ser estória tudo depende da hora tudo depende / da glória tudo depende de embora e nada e néris e reles e nemnada / de nada de nures de néris de reles de ralo de raro e nacos de necas / e nanjas de nullus e nures de nenhures e nesgas de nulla res e / nenhumzinho de nemnada nunca pode ser tudo pode ser todo pode ser total / tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro (...).
Acredito que não há melhor tradução poético-verbal para aquilo que tenho chamado aqui de sujeito cancional do que este conjunto de palavras extraído da primeira página do livro Galáxias, de Haroldo de Campos. Sendo um ponto luminoso no turbilhão plano/opaco do cotidiano, o sujeito cancional surge no estado de similaridade entre o sujeito da canção (a voz que "fala" de dentro da canção) e o ouvinte: tudo, nada, agora, nunca - eco que vai de um para o outro.
O sujeito cancional é o tempo-espaço de aproximação concreta entre a voz que sai da boca de alguém-cantor (ou das caixas acústicas, mediadoras da voz humana) e o entendimento que entra pelos ouvidos de outro alguém-ouvinte. Um depende do outro, como a mãe depende do filho para ser mãe e o filho depende da mãe para ser ninado, ser pavão. E é nesta relação complexa que a gaia ciência se nutre.
Não há objetivos específicos no cantar, ou um estado final a ser alcançado, a não ser o simples, natural e humano êxtase do gesto de cantar e ser cantado. Canção (estar em estado-de-canção) é a não calmaria, é o naufrágio prazeroso em mar aberto sem cais. E, imediatamente cônjuge ao estado anteriormente descrito, a canção é o cais sem cais: enquanto ela durar, enquanto o ouvinte se sentir mimado, íntimo do sujeito da canção em sua certeza da fragilidade de existir, o ouvinte se fortalece e segue.
Encontro um exemplo primoroso deste movimento na canção "Quando a canção acabar", de Luiz Tatit. Tatit cria uma personagem-cantora que tem o agora (já) e o mar no nome: Jacimara - sereia indígena do "eterno presente", da lua boa para a guerra, do estado-presente das mensagens das canções. Ao mesmo tempo em que o "jaci" sugere algo que passou, já se foi enquanto está passando, sendo: presente-do-futuro-do-pretérito. Eis o tempo das canções: "tudossomado todo somassuma de tudo suma somatória do assomo do assombro", anota o narrador-cantor de Galáxias. "Quando é neste momento / E neste lugar (...) Já é", diz o sujeito da canção de Tatit.
Mas, contrapondo-se à personagem Jacimara, "a rainha da farra / para ela o verão / é tocar guitarra / parece a cigarra", surge Jaqueline: aquela que virá "quando o inverno chegar / quando a canção acabar". Ou seja, a canção não morre nunca, pois com uma (Jaqueline) rendendo a outra (Jacimara) sempre haverá canção - sempre haverá o já-cantável porque sempre há o humano - representado pelos nomes de mulheres - necessitando cantar e ser cantado.
Não é à toa que Luiz Tatit utiliza a narrativa da cigarra e da formiga para criar "Quando a canção acabar" (Sem destino, 2010). O que fica sugerido é a continuidade do cantar, mesmo através da formiga, que, como sabemos, é mais compositora do que cantora. "E se toda a cultura / Periclitar / E se o canto mais simples / Silenciar / É sublime encontrar / Quem se anime a cantar / Jaqueline [formiga] fará". As metáforas aqui abrem a compreensão do ouvinte à finalidade sem fim da canção.
Semelhante à voz de Jacó, sua contrapartida masculina no nome, a voz de Jaqueline - gêmea da voz de Jacimara, embora nascida depois - substituirá Jacimara e cantará a vida. Porém, diferente do conto javista, Jaqueline não precisará enganar ninguém, a substituição virá no eterno retorno da existência. "A voz é a voz de Jacó", dirá Isaac diante do ardiloso filho e esperando ouvir a voz de Esaú. Este detalhe para nós serve como destaque da diferença: a voz de Jacimara difere da voz de Jaqueline e isso marca a mudança de ciclo, a evolução, a troca de turno, o fim da (para o começo de outra) canção.
É deste modo que, sensível às questões humanas, a narrativa ficcional criada por Tatit, a partir de outras narrativas ficcionais, finda por narrar (ficcionalizar) o real: a necessidade humana de narrativas, de canto, de canção. Portanto, usar o modo narrativo para tematizar a narrativa acaba sendo um artifício estético sofisticado e complexo: canção dentro de canção; real dentro do real - voz que se desdobra.
E aqui a gestualidade vocal (entoativa) do cancionista, sua dicção sempre muito perto da naturalidade da fala, reitera o caráter narrativo da canção, da história das personagens, ou melhor, do desejo de colocar as personagens dentro de uma história. Tudo sendo auxiliado pela melodia samba-de-roda-quase-baião, remetendo o ouvinte a extratos básicos (puros?) do impulso de cantar, pois, como sabemos, o samba e o baião são duas matrizes brasileiras do fazer cancional mais utilizadas pela canção popular.
Há, portanto, em "Quando a canção acabar", todo um requinte em traduzir aquilo que é dito (e no modo como é dito) na melodia e vice-versa. "Quando a canção acabar" é um libelo aos momentos de transição da linguagem cancional: de quando a cigarra dá lugar à formiga para que a canção não acabe de fato, mas seus meios de ser possam evoluir: mudar para permanecer. Basta observar que ao passar de uma personagem (Jacimara) a outra (Jaqueline) o acompanhamento melódico continua o mesmo. A esperança na vinda de Jaqueline confirma isso.
"A canção vem de situações muito primárias. A mãe embalando o filho, a cozinheira mexendo sua panela no fogão, o lavrador e sua foice pra lá e pra cá, o cara em cima do trator, a colhedeira colhendo trigo, o cara na linha de montagem, você no chuveiro. O homem canta. Sempre haverá canções. Em Marte, no futuro, eu já não estarei vivo, mas imagino um astronauta fazendo um dueto com um robô", disse Gilberto Gil, em entrevista para a revista Voe Gol.
É nisso que o sujeito da canção de Luiz Tatit parece acreditar também: no cuidado eterno que a canção imprime ao ouvinte. E é este ouvinte grávido do desejo de canção, daquilo que dá vigor e o sustenta na vida, em contato com este sujeito da canção (a voz da mensagem da canção: o eu-lírico-poético), que promove o surgimento do sujeito cancional no instante-já de quando dura a canção. Eterno retorno do sabiá-cigarra-sereia. Posto que, intuitivamente o ouvinte sabe, tal e qual o sujeito da canção também sabe, que o fim da canção equivale ao apagamento da ferida acesa que é a raça humana.

 ***

(Luiz Tatit)

Jacimara
A rainha da farra
Pra ela o verão
É tocar a guitarra
Parece a cigarra
Nasceu pra cantar
Sua vida
É um eterno presente
Pois canta o que sente
E não pensa na frente
Se o tempo anda quente
Sua voz vai soar
Nem precisa chamar
Já tá aqui pra cantar
Jacimara é pra já

Quando a mãe natureza
Vai se expressar
Quando é neste momento
E neste lugar
Já se ouve seu som
Já se sabe que é bom
Jacimara já é
Um luau
Assim natural
Já é

Jaqueline
Compõe noite e dia
São tantas cantigas
Que às vezes intriga
Parece a formiga
Só quer trabalhar
Sua vida
É um cuidado eterno
Pois passa o verão
A compor pro inverno
E guarda as canções
Pra se um dia faltar
Quando o inverno chegar
Quando a canção acabar
Jaqueline virá

E se toda a cultura
Periclitar
E se o canto mais simples
Silenciar
É sublime encontrar
Quem se anime a cantar
Jaqueline fará
Seu sarau
Será o final
Será?

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