No discurso 'Ler e
escrever' do livro Assim falou
Zaratustra, Nietzsche escreve: "E quanto a mim, que amo a vida, parece-me
que os que melhor entendem a felicidade, são as borboletas e as bolas de sabão,
e todos os que se lhes assemelham. / Ao ver voejar essas pequenas almas leves e
prazenteiras, graciosas e volúveis, Zaratustra sente tomá-lo uma vontade de
chorar e de cantar. / Só posso acreditar num Deus que soubesse dançar. / (...)
/ Aprendi a andar; deste então corro sem esforço. Aprendi a voar; desde então
já não espero que em empurrem para mudar de sítio. / Vede como me sinto leve; vede,
vôo; vede, sobrevôo-me; vede, há em mim um Deus que dança". Muito citado,
o trecho oferece importantes recursos para se pensar sobre canção e sobre as
corporalidades sonoras brasileiras.
Poderíamos divagar
sobre a simbologia da mutante-frágil-volátil borboleta, mas quero me ater à
bola de sabão, metáfora reutilizada por outros filósofos no que se refere ao
viver como uma constante configuração de esferas sutis e complexas. Obviamente
estou pensando na teoria das esferas de Peter Sloterdijk, que dedica grande
parte de sua obra à interpretação nietzschiana de esferas leves e delicadas.
Entre outras
questões, Sloterdijk escreve sobre a polivalência do mundo, a experiência
primária do espaço (cita o útero materno como ponto de partida), as relações de
dependência e apresenta uma teoria da intimidade. Para ele, viver é criar
esferas imunológicas: as tais causas e razões das ilhas desertas de Deleuze,
como queiram. É por viver - sentir-se - "ameaçado" pelo mundo de
mobilidade ao redor, que o indivíduo desenvolve a busca do luxo individual,
objetivando a abundância perdida desde a saída do útero.
E é aqui que ajusto
meu foco: na necessidade humana de canção, do canto da fama (reconhecimento). A
arte apresenta um outro mundo possível, aplaca a saudade das esferas explodidas
(o indivíduo fica sendo parte do mundo), muito embora exploda outras: as
canções de fora levam o indivíduo a sair ao mundo.
O indivíduo
moderno-contemporâneo fora do quarto cheio d'água (abundância) materno está
solto, leve. Ele é bola de sabão: irrelevante, sem estabilidade, privado de
objetividade ela precisa de um ar propício ao vôo, ao não estouro. E são muitos
os motivos que levam à arrebentação das esferas: a morte de Deus, o fim da
verdade - com a permissão de experimentações de modos de vida -, e o fato do
homem não estar pronto para não ser o centro do universo, são alguns deles.
Poderíamos também
entrar aqui na paranóia por segurança intrínseca ao indivíduo de hoje, posto
que esferas (família, escola, religião...) são sempre tentativas de
solidariedade imunológica, mas não é o objetivo principal aqui. Quero avançar
na leitura da citação de Nietzsche para chegar ao "Deus que soubesse
dançar". E onde entrar em contato com este Deus (ou Deusa? ou deuses?)
senão através das religiões de origens africanas? Brasileiro, não posso deixar
de observar nessas religiões o tal Deus que dança "no" indivíduo.
Guardadas dos
conceitos de bem e de mal, as culturas africanas embaçam a visão cristã do
indivíduo essencialmente bom ou essencialmente mal. "Na verdade, os maus
impulsos são tão apropriados ao fim, conservadores da espécie e indispensáveis
quanto os bons: - apenas é diferente a sua função" (...) "A decisão
cristã de achar o mundo feio e ruim tornou o mundo feio e ruim", anota
Nietzsche em A gaia ciência
(respectivamente p. 57 e p. 151).
Além do bem e do
mal, há os elementos da natureza, cujos guardiões na mitologia Yorubá são os
orixás. É com o sincretismo entre África e Europa, por imposição cultural
desta, no Brasil e em outras colônias europeias, que teremos representações em
imagens dos orixás, até então cultuados "apenas" como forças da
natureza.
Metal Metal (2012),
disco do trio Metá Metá é uma tempestade solar que explode qualquer tentativa
de imunização. Porque tropical e universal (tradição e cosmopolitismo), através
das misturas engendradas no turbilhão das camadas de histórias, o trio Kiko
Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França faz a matriz africana ganhar novos
vetores de apreciação: grávidos de riscos, sem concessões.
Um ótimo exemplo do
modo como o trio bebe o sangue (a poética) de uma língua-mãe do Brasil - Yorubá
- está disposta em "Rainha das cabeças", de Douglas Germano e Kiko
Dinucci. O vigor vocal contestador punk, os rituais de terreiro e os miasmas
urbanos compõem uma vibração para além de quaisquer pré-teses: tudo soa íntimo,
mas estranho, porque imbricado de forma inovadora.
A letra da canção em
si já detona o incômodo estético. Cheia de palavras e/ou expressões, repito,
íntimas culturalmente e estranhas ao nosso cotidiano urbano, a letra
presentifica no imaginário do ouvinte Awoió, tida como a Iemanjá - sim, há
deuses e semi-deuses no panteão - que mais concentra feminilidade: familiar,
fiel companheira, materna.
"Awoió ori dori
re / Iyemanjá cuidou / Ade, ala, beijou / E encheu o ori de mar". A
primeira estrofe cantada com a nervura já destacada aqui indicia que não
estamos - nós, ouvintes comuns, não iniciados - em lugar cômodo. A força sonora
e rítmica, aliada às palavras da letra, por vezes não deixa o ouvinte entender,
de pronto, a mensagem da canção. Pescamos retalhos. Para entrar nela mesmo,
precisamos ouvir com o texto sob os olhos. Mas isso não impede de sermos
arrebatados pela potência ali dançante. "O ritmo é uma coação; ele gera um
invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue
o compasso" (Nietzsche, idem, p. 112).
Há que se atentar
sobre isso, aliás: várias canções apresentam textos muito densos e bonitos, mas
também, por vezes, difíceis de captar só pelo ouvido, principalmente quando
articulados com uma melodia muito recortada ou acelerada. Seria este objeto,
plenamente, uma canção? Ou seria uma forma híbrida de poesia-para-ser-cantada e
promover o mergulho do ouvinte? Diferente da canção-para-ser-ouvida.
Seja como for, o Ori
sagrado em "Rainha das cabeças" promove a dança da intuição do
ouvinte. Através do Ori (Orixá pessoal) em contato com o som da canção, o
ouvinte entra em estado-de-poesia: não importa muito decodificar as palavras,
mas entra no movimento de pertencimento que elas, ditas daquele modo e com
aquele ritmo, promovem - com o objetivo de reorganizar o sistema pessoal do
ouvinte: a bola de sabão e seu alfinete altamente explosivo.
Iemanjá-Awoió cuida
do cantor-ouvinte, enche a cabeça (ori) dele de mar (No horizonte do infinito)
e faz dele ouvinte-cantor: dança nele. E o tabu vira totem: "tupi or not
tupi", é a pergunta. "Iya olori / Mojuba Olodumaré // Ela é filha de
Olokun / É iya kekerê ", diz o refrão. Olodumaré vagava pelo mundo quando
por aqui havia apenas pedras e fogo. Devido ao vapor produzido, grande
quantidade de nuvens precipitou sob a forma de chuva. Eis a origem dos grandes
oceanos e do nascimento de todas as Yemanjás do mar. Já Olokun é, como o
próprio nome revela, o proprietário do Oceano.
Se, como Nietzsche
anotou: "O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela
maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do
passado" (idem, p. 110), o Metá Metá orienta-nos na direção de que, como
canta Gilberto Gil: "Quando, hoje, alguns preferem condenar / O sincretismo
e a miscigenação / Parece que o fazem por ignorar / Os modos caprichosos da
paixão // Paixão, que habita o coração da natureza-mãe / E que desloca a
história em suas mutações / Que explica o fato da Branca de Neve amar / Não a
um, mas a todos os sete anões".
***
(Douglas Germano /
Kiko Dinucci)
Awoió ori dori re
Iyemanjá cuidou
Ade, ala, beijou
E encheu o ori de
mar
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Ela é filha de
Olokun
É iya kekerê
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Carregou uma cabeça
Sobre o adirê
Iya olori
Mojuba Olodumaré
Iya olori
Um comentário:
Ótimo texto. Muito obrigado.
Postar um comentário