O título do livro do professor Roberto Schwarz - A sereia e o desconfiado - entrega a
temática dos ensaios que investigam os mecanismos de seduções da arte, no caso,
da Literatura. É da posição do desconfiado, qual o Ulisses amarrado no mastro,
que Schwarz vai descobrindo para si, e revelando ao leitor, os elementos
sirênicos da Literatura e, de viés, da cultura.
O que fica de mais positivo da leitura do livro do
professor, cujo título foi o despertador de minha atenção, é o exercício do
cruzamento de conhecimentos a fim de circular o objeto analisado. E isso revela
muito do meu método de audição e apreensão de canções, do canto neosirênico.
Muito embora o meu esforço seja sempre o de me colocar à deriva, solto no mar
sonoro, mar sem fim. Procuro navegar muito mais ao lado da certeza da
desconfiança, do que da desconfiança da certeza.
Petulância e inquietude acompanham o ouvinte-leitor de
canção. A este não basta a mera paráfrase da letra, muito menos dizer com suas
palavras aquilo que o cancionista "quis dizer" ao conceber a obra,
haja vista estar trabalhando com um blend (mix) complexo de linguagens. O
objetivo aqui é tentar entender aquilo que o sujeito cancional - esta entidade
estética só apreciável no instante exato da execução da canção - canta. E isso
só é possível sem cordas e sem ceras.
Obviamente não há um jeito certo, uma metodologia única e
completa para tal empreendimento, daí a dificuldade e o estado de sempre
naufrágio do ouvinte-leitor. E quando este, ao invés de usar a canção como
exemplo (confirmações) para teses e teorias pré-concebidas, capta a teoria
(singularidade, filosofia) contida na canção, o objetivo está cumprido. Mas
como fazer isso, captar singularidades, diante do mar aberto e sem fim, da
profusão de canções que cotidianamente nos chegam aos ouvidos? Eis o esforço:
dobrar-se aos encantos das sereias e deles extrair vida, "esperança de
saúde, embriaguez da convalescença", diria Nietzsche.
Creio ter sido movido por este estado-de-poesia que Odilon
Redon (1840-1916) desenhou Femme à
l'aigrette (ou, Sirène à l'aigrette),
transcriando o poema "Un coup de dés", de Stéphane (Étienne)
Mallarmé. Redon investiu nas primeiras palavras do poema. Cito aqui de modo linear,
radicalmente oposto e cruel aos efeitos estéticos lançados por Mallarmé:
"UM LANCE DE DADOS / JAMAIS / ABOLIRÁ O ACASO / MESMO QUANDO LANÇADO EM
CIRCUNSTÂNCIAS / ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO (...)".
Como sabemos, o poema "Um lance de dados"
revolucionou a poesia. Nas palavras de Augusto de Campos, ele é a "base e
fundamento da nova formulação poética". Vale a pena citar: "O 'lance
de dados' mallarmeano instiga e precipita rumos inteiramente inéditos para a
poesia. Rejeitando as esterilizantes formas fixas e o verso-livre (álibi para
todas as acomodações), Mallarmé passa a organizar o espaço gráfico como campo
de força natural do poema. Vale-se dos mais diversos recursos tipográficos,
sempre num plano de funcionalidade, para criar numa constelação de
relações temáticas (que chama de
'subdivisões prismáticas da Ideia'). Com esse processo, pode-se dizer que
Mallarmé, colocando 'em situação' a sua própria obra e a poética moderna,
'opera, através da poesia, a junção da música com a arquitetura visível'".
A sereia graciosa, e um tanto burguesa, haja vista a
vestimenta, criada por Redon aponta a equalização em perspectiva enigmática
entre som e sentido advindos do poema-letras-soltas-móbile no papel-mar
mallermeano. Ela indicia o acaso. E "Todo Pensamento emite um Lance de
Dados", encerra o poema. Não às respostas. Sim à irrespondibilidade.
O lance de dados é a travessia (um estado de coisas a outro)
que a sereia representa. Apelo à intuição. As sereias têm dessas coisas. Elas são
o acaso em ação. "O canto das sereias seria a indiferenciação entre o
sujeito que narra e o sujeito narrado, entre a manifestação e a significação:
canto sem diferenças, sob o qual se prometeria a pura perda de diferenças do
silêncio, do ponto zero da descrição", anota David E. Wellbery em Neo-retórica e desconstrução (p.
195-196).
Mas para que servem as canções? Se, como sugerimos
anteriormente, o sujeito cancional só se revela no instante em que a canção
entra pelos ouvidos, para onde vai a canção quando finda a melodia? A canção
serve para sustentar o ouvinte no mundo. Enquanto ela dura, o ouvinte pensa ter
o mundo nas mãos, ao final, ele amanhece mortal.
As canções envelhecem? Diante dos artifícios de eterno
presente criado por elas, aliados às técnicas de armazenamento e reprodução,
podíamos dizer que não, as canções não envelhecem. Mas aí Peri Pane complexifica
a questão e cria uma canção cujo título – “Canções velhas para embrulhar peixes”
associa a função da canção à função do jornal, abre brechas à temporalidade
(validade) da canção.
Ora, se tal e qual o jornal, cronística, informativa
(daquilo que sabemos, mas que precisa ser revelado por fora), a canção nos
situa no instante do cotidiano, ela envelhece na medida em que cumpre seu papel
de revelação do ouvinte ao ouvinte. No entanto, sendo este ouvinte propício às
circularidades da ilusão necessária a todo indivíduo, a "mesma"
canção retornará mais adiante. Em diferença.
Ou seja, a canção envelhece sem envelhecer de todo, pelo
menos não como objetivamente entendemos o envelhecimento. Como diz a letra de
Peri Pane, a canção fica velha quando "embrulha peixes". Tal e qual o
jornal de ontem: serviu à leitura das informações e agora pode ser descartada,
serve de outro modo, envolvendo peixes mortos, lembranças que devem ser
"varridas pra debaixo dos tapetes".
Se pensarmos de modo macro, podemos inferir sobre a profusão
de canções que são lançadas e rapidamente, logo após rápido sucesso e furdúncio
entre os indivíduos, somem: "antes confetes, serpentinas / Hoje embalam as
traças entre as naftalinas", como canta o sujeito da canção (Canções velhas para embrulhar peixes,
2012).
"Canções no escuro de hds, gavetas / Versos calados,
surdos, cegos de muletas / Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas / A
espera laça os futuros escafandristas", completa o sujeito, evocando não
apenas a descartabilidade das canções e, consequentemente, das histórias que
cada canção carrega, mas também dos indivíduos.
Sintomaticamente, a capa artesanal do disco é ilustrada por
uma sereia criada pelo artista plástico Rafael Gentile, a partir da técnica do
estêncil. Altiva, cabelos soltos, a sereia aparece solta no ar, no mar,
intimidando o ouvinte. Frágeis como os indivíduos, as canções envelhecem com
estes, dentro destes, recrudescem: juntos frente aos apelos da sereia, do
acaso, no lance de dados. Canções à espera não de futuros amantes, mas de futuros escafandristas.
***
Canções velhas para embrulhar peixes
(Peri Pane)
Canções velhas para embrulhar peixes
Doidas varridas pra debaixo dos tapetes
Canções antes confetes, serpentinas
Hoje embalam as traças entre as naftalinas
Canções no escuro de hds, gavetas
Versos calados, surdos, cegos de muletas
Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas
A espera laça os futuros escafandristas
(Peri Pane)
Canções velhas para embrulhar peixes
Doidas varridas pra debaixo dos tapetes
Canções antes confetes, serpentinas
Hoje embalam as traças entre as naftalinas
Canções no escuro de hds, gavetas
Versos calados, surdos, cegos de muletas
Canções rotas, rasgadas, cifras em revistas
A espera laça os futuros escafandristas
Um comentário:
As músicas são muito agradável e acho que o título do cd é muito interessante. É muito inteligente. Vou sempre a alguns restaurantes em moema que têm shows de música ao vivo. Shows de tango. Eu gosto de dançar tango. Meu pai me ensinou o amor por o tango.
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