O sujeito da canção é aquele que, em teoria da poesia, ainda
chamamos de eu-lírico, uma categoria complexa que, em síntese, é a voz que fala
de dentro do poema a "mensagem" do poema. É a voz insuspeita que diz
"eu navegava canções", por exemplo, na canção de Tom Zé; ou
"minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá", no poema de Gonçalves
Dias. É o eu-lírico que fala o verso, distinguido, mas ligado por sutis
relações autoficcionais, com o autor da obra.
Diverso, mas engendrado também ao sujeito da canção, o
sujeito cancional é aquele que é quando a canção está em execução. É quando o
ouvinte escuta Tom Zé cantando o verso acima citado que o sujeito cancional é
localizado. Mas, principalmente, é quando o ouvinte coincide seu estado de
espírito com aquilo que o sujeito da canção diz - está dizendo - que o sujeito
cancional se apresenta em sua totalidade estética à apreciação.
O sujeito cancional brinca entre a carência e a saturação
das experiências e vivências tanto do cancionista emissor vocal da canção,
quanto do ouvinte. É o sujeito cancional quem, no indivíduo adulto, transforma
a angustia em sono e sonho, como as canções de ninar maternas fizeram na
infância.
Talismã contra a desventura, o sujeito cancional, claro
está, é utópico e irrenunciável. Se embalar e cuidar de alguém exige tempos
longos, maternais, no tempo contemporâneo veloz, o sujeito cancional toca
exatamente na necessidade de laços de afeto. Coincididos, sujeito e indivíduo
se embalam, sutilizam a dor, freiam o novo sempre igual do cotidiano sem
futuro.
Voz mediatizada vinda do turbilhão moderno, o sujeito
cancional breca os estímulos, fluxos e intensidades do mundo moderno porque
"cuida" do indivíduo. Ou melhor, estimula o indivíduo ao cuidado de
si, que é transformador, porque não recusa o passado, ao contrário, lembra ao
indivíduo que este não está solto do saber viver do passado. O sujeito cancional
não busca a inovação, nem entra no jogo da monotonia que se alimenta do novo,
como nos alerta Walter Benjamin.
Do lugar da experiência estética, o sujeito cancional
instiga a formação do ouvinte, posto que convida este à contemplação. Ele sabe
que a pressa aniquila o conhecimento, mas faz dela uma aliada, quando pode ser
posto à disposição do ouvinte nos fones de ouvido, em qualquer lugar. Ele faz
da recepção distraída uma cúmplice no engenho de transmitir a sua experiência
de sujeito estético, valorizando o presente do ouvinte.
O sujeito cancional reconhece a incompetência da realidade.
É dela que ele se alimenta. Ele afronta o tédio ideológico das classes tidas
como superiores e o cansaço de existir das classes desabonadas de bens de
consumo. O sujeito cancional, quando engendrado no ouvinte, recupera o esmero
do artesão. Ele faz com que uma mensagem dada ao coletivo possa ser digerida
nietzscheanamente por cada indivíduo.
O sujeito cancional respeita a individualidade e imprime a
originalidade de ser do ouvinte. Por isso cada audição de uma "mesma"
canção é sempre uma repetição em diferença, pois vai depender do estado de espírito
do ouvinte o exercício espiritual que o sujeito cancional promoverá.
O sujeito cancional criado por Tom Zé em "Navegador de
canções" (Tropicália lixo lógico, 2012) não é o expert que, treinado, mas
sem conhecimento, dá conselhos sem experiências. Ele é o intelectual que,
carregado de traços mnemônicos, defende uma tese: “Aquilo que os meninos do
Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do
córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um
lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!” (Tom Zé, revista Bravo!
179, jul/2012).
O sujeito cancional é o narrador: ponte entre passado e presente,
apontando o pensar do esquecimento das diferenças. Pensar no presente é sempre
rememorar e mirar no futuro. Nem as trevas da ignorância, nem as luzes da
verdade. Utópico, o sujeito cancional mostra que sem utopia estamos condenados
à irrelevância.
Ao cantar os versos "Longe, sozinho, / Ventos marinhos,
/ Eu navegava canções", acompanhado por uma melodia montada essencialmente
por instrumentos de cordas (violão, violino, cello, rabeca) cujo conjunto
lembra os provençais, o mítico cantador nordestino, Tom Zé rejeita o
desaparecimento do passado e convida o ouvinte a com ele navegar na trama
melódica. Isso sem contar a recuperação da presença do coro - muitas vozes - em
momentos pontuais da canção.
O sujeito da canção "Navegador de canções",
narrando sua experiência, abre o leque das possibilidades sonoras e vocais que
compõem a brasilidade, algo que Tom Zé reconhece disparado na Tropicália: ápice
estético da valoração da mistura, do resgate das culturais orais.
Ao ritmo da gavota (dança francesa) e do fado, o sujeito da
canção narra sua dança particular, porque coletiva-Brasil, entre os bordões
(palavras e cordas de instrumentos) que alimentam as canções nossas de cada
dia. O narrador-cancionista afirma que canta, que chegou "ao porto dos
bordões, / onde botam ovos as canções" ao navegar, ao se permitir correr o
risco de se deixar ser afetado por diversos extratos sonoros.
Condenado à civilização ocidental e à liberdade da utopia
tropical, o sujeito da canção de Tom Zé ancora no ninho, no centro, no núcleo
duro da questão: berçário dos analfatóteles (analfabetos em Aristóteles)
"onde botam ovos as canções". Ele descobre na confiança na dança
"das cardeais direções" o seu lugar de cancionista brasileiro não
comportado: tropicalista.
***
Navegador de canções
(Tom Zé)
Longe, sozinho,
Ventos marinhos,
Eu navegava canções,
Ia na dança,
Na confiança,
Das cardeais direções.
Eu navegava canções.
O fado ministrava meu noivado
Com duetos, minuetos,
Corais, corais.
Uma gavota me guiou
Ao porto dos bordões,
Onde botam ovos as canções.
Canções, canções.
Ô ô canção
3 comentários:
Leonardo, o disco suscitar as ligações que você fez é muito animador. E você estabeleceu ligações e conclusões num texto bem escrito, que volta o leitor para o trabalho criticado. Muito obrigado, meu caro. O alimento de quem faz é o juízo de quem olha. E como é necessário esse alimento, para continuar agindo!
Um grande abraço, fico-lhe muito grato e dou parabéns.
Tom Zé
Léo, por isso, dentre outros motivos, você é o meu coorientador!!
Muito bom! Gostei muito de seu blog e vou recomendar! Parabéns.
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