O sujeito cancional é um complexo de categorias. Ele só se
permite ouvir no instante-já da canção. Ele amalgama a voz do compositor, a voz
do sujeito da canção (a voz que "fala" a mensagem da letra da canção)
e a voz do desejo do ouvinte. E se descola de todos estes quando permite a
fruição, bem como a possível significação, pessoal e intransferível da canção.
Noutra e complementar perspectiva, podemos dizer que o
sujeito cancional reúne em si "as três vozes da poesia" identificadas
por T. S. Eliot (ver De poesia e poetas),
a saber: a do poeta (indivíduo) que fala consigo mesmo, a do poeta (sujeito)
que fala como um outro e a da personagem criada pelo poeta (indivíduo e
sujeito). Eliot reconhece que elas não se excluem, ao contrário.
Porém, a estas, no caso do sujeito cancional, temos ainda a
presença decisiva da voz do desejo do ouvinte: o espaço entre aquilo que é
cantado e aquilo é ouvido. O sujeito cancional, portanto, é um lugar. É neste
lugar que as canções deixam de ser promessas e passam a ser canção, como aponta
o sujeito de "Nossa canção", de José Miguel Wisnik e Mauro Aguiar. E
é deste lugar lamacento e nada asséptico que o compositor canta, transmutado em
cancionista: "As canções / só são canções / quando não são / mais nossas"
(versos da canção citada).
É através do sujeito cancional que podemos dizer que, ao
cantar uma "mesma" canção, diferentes intérpretes também são autores
daquela canção, singularizando-a em suas gestualidades vocais; e que, ao tomar
a canção para si, o ouvinte se apropria da mensagem para "entender" o
mundo à sua volta e a si mesmo, imerso no mundo. É o sujeito cancional,
coincidido com o estado do ouvinte naquele momento de execução da canção, quem
faz o convite para o canto compartilhado. "De voz em voz / de par em
par" (idem).
No caso das canções de amor, ou quando há na letra da canção
um destinatário aparente, por exemplos, é o sujeito cancional quem permite que
uma canção dirigida a uma pessoa possa ser ouvida e apropriada, pela empatia,
por outras pessoas, quando do momento de sua vocalização. Nela o ouvinte entra
em intimidade com o que lhe é apresentado. O ouvinte não conhece o sujeito, mas
tem nele um cúmplice.
Ou seja, o sujeito cancional é performatização sirênica. Ele
apresenta em som (tensão entre corpo e alma) algo que até então o ouvinte e o
próprio compositor só tinham uma vaga ideia do que seria: a coisa em si - tão
fluida e fugidia quanto a própria canção que (não) morre no ar. E aqui está o
drama do sujeito cancional.
Em sua vasta e rica pesquisa sobre os medievais, provençais
Paul Zumthor aponta que é preciso se concentrar "nos efeitos da voz
humana, independentemente dos condicionamentos culturais particulares" (Performance, recepção, leitura p. 12)
quando analisamos textos outrora oralizados e que nos são transmitidos como
manuscritos. E reclama do silêncio profundo que nos cerca quando lidamos com as
canções hoje tidas "apenas" como poesia.
Ao mesmo tempo, Zumthor anota que os meios eletrônicos
"abolem a presença de quem traz a voz" e que "os media tendem a
apagar as referências espaciais da voz viva". Salvo engano, o sujeito
cancional como tenho aqui desenvolvido chama para si a responsabilidade de
sustentar o mito, o arcaico vocal em tempos líquidos de reprodução técnica da
voz.
Prismático, sujeito cancional é permanência (da certeza de
que uma voz de alguém de carne e osso emitiu algo) e fluidez (momento luminoso
feito um flash de compartilhamento de experiências). Corpórea e incorpórea, a
canção é apreendida no corpo, que reage.
Pensando nestas vozes e em suas ações chegamos à canção
"A dor e o poeta", de Moraes Moreira (A revolta dos ritmos, 2012). Nela, o sujeito da canção canta os
motores que alimentam o poeta e a poesia. Retomando como mote o poema
"Autopsicografia", de Fernando Pessoa, o sujeito diz: "A dor
atinge / O peito do poeta / Mas ele finge / Que nada sente / e até se
delicia". O foco aqui é na dor que o poeta "deveras sente".
"É solidão / E ele dá outro nome: / Inspiração".
Há, no caso das canções, dos poemas vocalizados, entre a dor
fingida (do campo da ficção) e a dor sentida (da inspiração), aliadas à dor
vivida (no corpo) por quem ouve a canção, uma outra instância: o sujeito
cancional, ligando tudo, entretendo a razão e tensionando as categorias no
calor da voz que dura enquanto dura a canção.
De viés, "A dor e o poeta" chama atenção para o
sadismo do ouvinte: "A dor destrói / Mas o poeta em si / É um herói / Diz
que é feliz / E a plateia aplaude / E pede bis". O sujeito dessa canção
parece chamar atenção para algo semelhante ao que experimenta o sujeito de
"Bastidores", de Chico Buarque, na voz de Cauby Peixoto, que se
constrói e se inventa diante dos ouvidos de quem lhe ouve cantar: "Cantei,
cantei / Jamais cantei tão lindo assim / E os homens lá pedindo bis",
apesar e além da dor.
A dor que atinge o peito do cantor se traduz em beleza
trágica e satisfaz quem lhe ouve, satisfazendo a ele próprio por conseguir
fingir (tornar arte/ficção) uma dor que deveras sente nesse "comboio de
corda / que se chama coração", como anota Pessoa.
O texto de "A dor e o poeta" é cantado duas vezes:
Na primeira a voz de Moreira declama os versos acompanhada de violões e
sanfona, tal e qual acreditamos acontecia com a poesia medieval, provençal. Na
segunda, no bis, com o poeta já devidamente deliciado na própria dor, Moreira
canta: modaliza o texto na voz e na linha melódica dada pelos instrumentos. E
vice-versa. E "o poeta faz / Um carnaval / Deixa doer / Até o fim / Ao bel
prazer".
E a entrega no instante-já - "Em cada canção que vivo /
motivo é que não me falta / Pra ir do começo ao fim", canta Moreira noutra
canção do mesmo disco - se realiza. E o sujeito cancional surge e impregna de
prazer a caixa acústica do ouvinte: "A dor é fria / Se não se transforma /
Em poesia / Sofreguidão / Se não compõe os versos / De uma canção".
***
A dor e o poeta
(Moraes Moreira)
A dor atinge
O peito do poeta
Mas ele finge
Que nada sente
e até se delicia
Mas ele mente
A dor é tanta
No seu limiar
Mas ele canta
É de partir
O coração
Mas ele ri
A dor é fria
Se não se transforma
Em poesia
Sofreguidão
Se não compõe os versos
De uma canção
A dor invade
E o poeta diz
Que saudade
É solidão
E ele dá outro nome:
Inspiração
A dor é fina
O aço de um punhal
Não há morfina
Que traga alívio
Em sua permanência
Em seu convívio
A dor é tal
Mas o poeta faz
Um carnaval
Deixa doer
Até o fim
Ao bel prazer
A dor insana
Vai forjando as cenas
De um drama
E sobre o tema
Ergue a estrutura
Do seu poema
A dor destrói
Mas o poeta em si
É um herói
Diz que é feliz
E a plateia aplaude
E pede bis
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