"Sócrates, Platão e Aristóteles construíram as bases do
pensamento ocidental ou, se você preferir, os alicerces do racionalismo.
Entretanto, no interior do Nordeste, consumíamos uma prosódia, um saber oral,
uma visão de mundo que não advinha dos gregos, e sim dos árabes. (...) O
importante é que a meninada do Nordeste bebia daquele caldo não aristotélico
até entrar na escola. Por isso, costumo dizer que a creche tropical acolhia uma
porção de analfabeto, os analfabetos em Aristóteles. Com
7 ou 8 anos, a garotada enveredava pelo colégio e, só então, tomava
conhecimento da cultura ocidental. Calcule a surpresa, o fascínio. Descobrir os
livros, as ciências e todo um palavreado diferente! Hipnotizadas por tamanho
tesouro, as crianças jogavam fora o aprendizado anterior e deixavam que
Aristóteles assumisse as rédeas em definitivo. (...) Nada desaparece, bicho!
Nada! (...) Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam
contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia.
Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria. (...) Um lixo lógico!
Na década de 1960, Caetano e Gil (...) perceberam que tinham de resgatar o
aprendizado do interior, a herança dos árabes, a tradição oral e uni-los à
cultura pop do ocidente, filha direta do pensamento aristotélico. Conseguiram,
assim, engendrar um ser inteiramente original, a dona Tropicália". Tom Zé
(Revista Bravo! 179, jul/2012).
"A civilização ocidental foi mesmo uma obra-prima da
Humanidade, mas demonstra cansaço. (...) Devemos ser dignos de seus melhores
ensinamentos. Não podemos ser otários para insistir em seus impasses. (...)
Quero o bom, misturar o melhor de todos os lugares. (...) Virar país
desenvolvido não é chegar ao lugar onde o Ocidente está (...). Houve e há aqui,
por exemplo, o encontro entre duas tecnologias do êxtase: o xamanismo indígena
e a possessão africana. A convivência íntima entre essas visões de mundo
incompatíveis pode nos dar um jogo de cintura metafísico (e criativo) realmente
espantoso. (...) podemos copiar Gil. Ele disse: 'Para mim, raiz só de
mandioca'." Hermano Vianna (Jornal O
Globo - 27/07/2012).
Os contatos culturais nos países latino-americanos não foram
pré-programados, posto que esses países se forjaram no meio do redemoinho da
mistura, tendo o lastro ocidental colonizador empunhado, pela razão que a tudo
quer dominar, as armas cerceadoras. Palimpsestos, enquanto rascunhos de
ocidentais nós quisermos aplicar os saberes não-ocidentais às regras
capitalistas, eles não encontrarão solo fértil para brotar, simplesmente porque
são sementes de outros e para outros tipos de solo.
Os textos de Tom Zé e de Hermano Vianna se complementam na
certeza cada vez mais pungente de que ouvir o Brasil apenas com os ouvidos
ocidentais não dá conta de ensaiar aquilo que o Brasil é, ou pode vir a ser. O
modo forçado e pretensamente lógico, porque racional, com que temos feito o
Brasil caber dentro dos encaixes de certas teorias dá sinais de desgaste e
cansaço. Sempre deu, mas também sempre foi mais cômodo pensar o Brasil assim,
por estes vieses claros, lineares.
Ora, se em sua liberdade diante das dívidas morais "a
creche tropical" se difere ontologicamente das outras, como querer
entender o Brasil - "devorador universal" - sob os mesmos paradigmas?
Onde colocar "os pés da Índia e a mão da África" do Brasil construído
e adotado?
O verso da canção "Blues", de Péricles Cavalcanti
(Blues 55, 2004), desperta a atenção
para outras "novas" incorporações da brasilidade. Ou seja, se
sincretizados, os santos católicos que aqui chegaram e dominaram o imaginário
não são mais os mesmos de quando da chegada, há também nas traduções
brasileiras de Krishna e Iemanjá uma devoração que distingue e transforma os
mitos.
Nem Iemanjá é mais (apenas) o rio geográfico africano, nem
Krishna é mais (apenas) um ente hindu. Do culto hidrolátrico Iemanjá passa a
ser grande mãe africana do Brasil: é ela o rio que passa sem que possamos
domar. Da posição de lótus, Krishna passa a ser referência de meditação: é ele
a concentração dentro da estrela azulada.
Há uma intimidade tropical, solar, corporal e vocal
interligando as várias pontas da estrela. Ou seja, no Brasil "o lixo
dotado de lógica própria" significa-se a todo instante, para além da
compreensão imediata, fixa, fechada. Ou seja, se o conceito ocidental de
revolução está em crise, geneticamente o Brasil é sendo crísico - "Os pés
no céu e a mão no mar".
Penso nestas questões enquanto ouço Péricles Cavalcanti, um
cancionista burilador de canções, cantando "Blues", como um mantra,
um ponto para orixá, uma devoção acústica ao gesto de fazer canção no Brasil:
menos superações, acomodações e mais incorporações, fissuras. Por aqui, o que
se devora está se conservando.
No Brasil, a pele azul-escura-celeste de Krishna se
"harmoniza" aos tons de azul de Iemanjá: tão íntimos quanto
dessemelhantes. Amalgamados no canto de Péricles, ele e ela - "Azul no
sangue à flor da pele" - são forças transcendentais e instrumentos de
mobilidade. Assim como blues é cor e gênero, pluralidade e ritmo, melancolia
solar. Mistura que existe enquanto ficção e realidade, para além da razão
puramente ocidental.
***
Blues
(Péricles Cavalcanti)
Tem muito azul em torno dele
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
Os pés de lótus de Krishna
Tem muito azul em torno dela
Azul no céu azul no mar
Azul no sangue à flor da pele
As mãos de rosa de Iemanjá
Os pés da Índia e a mão da África
Os pés no céu e a mão no mar
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