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30 agosto 2012

Não tenho medo da morte



Quando perguntado sobre o que seria o tempo, Santo Agostinho respondia: "Se ninguém me perguntar, eu sei. Se eu quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei". O entrave entre o intuir e o traduzir em palavras levantado por Santo Agostinho nos sugere o quão difícil é definir o tempo de modo a dar conta de sua complexidade natural, psicológica, social. Temos um conhecimento intuitivo do tempo.
Como apontar aquilo que poderia ser o tempo diante da realidade objetiva (o passar sucessivo dos milésimos de segundos do relógio), a intuição individual da intervenção do tempo no humano que somos (e vice-versa) e os acontecimentos específicos do momento histórico em que vivemos? Portanto: A qual tempo me refiro quando quero falar sobre o tempo?
O certo é que nem todos os tempos (e aqui já aparece o plural do termo) são dignos de destaque. Voluntária ou involuntariamente, esquecemos e/ou recalcamos períodos, épocas. Se o passado, que é o único tempo que existe, ou sabemos existir, porque lá já estivemos, está perdido e o futuro deve ser (intuição de desejo) o que no passado era apenas uma promessa, resta-nos lembrar, viver e esperar no presente.
O presente, por sua vez, é um instante tão comprimido que quando acabo de digitar a palavra "presente" ele já se tornou passado. O tempo depende da memória individual e coletiva. E nós precisamos dessa memória para existir no tempo.
Em "A crise da filosofia messiânica" (In: A utopia antropofágica) Oswald de Andrade anota: "A ciência e a técnica procuram produzir na terra o céu longa e demasiadamente prometido pelo Messianismo" (p. 185). Na modernidade, com sua ousadia (coletivamente engendrada) de pensar a realização do futuro desejado não mais no campo da religião (pós) e sim da terra (aqui), mediante a valorização da técnica, tudo passou a contar e a ser valorizado em termos de produção, gerando a aflição da sensação de aceleração do tempo, a fim de que o investidor obtenha retorno rápido.
No conhecido texto "O narrador", a partir da experiência da guerra e do avanço da técnica, Walter Benjamin escreve sobre esta mudança de perspectiva em relação àquilo que importava e que deixa de importar: "Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano".
Benjamin aponta para as mudanças bruscas e repentinas nas referências do indivíduo e mira no capitalismo especulativo da nossa sociedade de consumo (em que poucos podem consumir). As novidades, nem sempre desejáveis, destroem as referências do passado, quando não feitas à vida criativa. O novo pelo novo e a necessidade de ter o "sempre novo" transformam a vida em uma interminável sucessão de meios cujas finalidades estão perdidas em si.
A aceleração que os meios promovem nos acontecimentos (fazemos cada vez mais coisas dentro de uma mesma fração de tempo), as tais técnicas de reprodução criticadas por Benjamin, porque extinguiriam a "aura" dos objetos feitos agora em série, implode a nossa capacidade de esperar e, consequentemente, de desejar. No texto "Experiência e pobreza", Benjamin anota: "Essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade". Daí as depressões, as melancolias, os fatalismos.
Sobre este ponto, Maria Rita Kehl escreveu em O cão e o tempo: "O melancólico benjaminiano vê-se desadaptado, ou excluído, das crenças que sustentam a vida social de seu tempo; mas ao contrário do empenho investigativo e criativo que caracteriza seus precursores renascentistas, sente-se abatido pelo sentimento da inutilidade de suas ações. Daí a relação entre a melancolia (pré-freudiana) e o fatalismo, sentimento de insignificância do sujeito como agente de transformações, tanto na vida privada quanto na política” (p. 100).
As esperanças projetadas no futuro dizem muito do presente, já que aquele traduz as angústias deste. Assim como o presente é o panteão das angústias do passado. Deste modo, se "o futuro já começou", onde fica o presente? Suprimir quaisquer dos tempos causa pane no viver.
Baseadas nas leis constantes da natureza, as técnicas da física possibilitam prever o tempo, mas não a inconstância do humano no tempo. É no esquecimento da tradição que reside a desvalorização do futuro e do presente. Para Benjamin, o progresso promovido pelos meios não engendra, de fato, progresso algum, posto que não promove a emancipação do homem, nem o fim das desigualdades.
Voltando ao texto "O narrador", Benjamin escreve que "a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos".
Claro está que as perdas do tempo social analisado por Benjamin diferem radicalmente das perdas do tempo social brasileiro, basta olhar para a tradição (a relação com o passado) das duas sociologias. Daí também a perplexidade dos teóricos estrangeiros diante de nossa capacidade em transformar "lágrima em canção".
Penso em tudo isso quando ouço Gilberto Gil cantar "Não tenho medo da morte" (Banda larga cordel, 2008). Qual o outro narrador-cancionista para cantar as angústias e os prazeres diante do tempo que não para arrastando-nos ao nosso caminho inevitável à morte?
Em diálogo com o sujeito de outra canção de Gilberto Gil, o sujeito da canção "Não tenho medo da morte" observa que o futuro enquanto dimensão do tempo é sempre o mesmo: "mistérios sempre há de pintar por aí". Por um lado, o futuro é a diversidade de possibilidades, por outro lado, não há como fugir da morte: um presente do futuro - um estranho presente, pois, "a morte é depois de mim".
O medo que assombra o sujeito da canção é o medo de morrer antes de acabar o que lhe cabe viver. Morrer dentro da vida: da morte chegar demasiado cedo. Canta: "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui (...) Não tenho medo da morte / mas medo de morrer, sim / a morte e depois de mim / mas quem vai morrer sou eu / o derradeiro ato meu / e eu terei de estar presente".
Noutro trecho da letra, ouvimos: "A morte já é depois / já não haverá ninguém / como eu aqui agora / pensando sobre o além / já não haverá o além / o além já será então". O sujeito percebe que estamos invariavelmente presos ao presente, mas olhando sempre para o depois. "E quando eu tiver saído / Para fora do teu círculo / Tempo tempo tempo tempo / Não serei nem terás sido / Tempo tempo tempo tempo", canta Caetano Veloso, na sua "Oração ao tempo".
Objetivamente, o aqui e o agora não existem. Como entender o "Obrigada, senhores, obrigada por estarem aqui, hoje", que Maria Bethânia me diz através do disco, senão pela minha disposição ao pacto com o eterno presente das canções que, mesmo mediatizadas, conectam-se à minha memória: lembranças e esperanças. Para que o sujeito cancional surja o tempo de sua existência precisa coincidir com o tempo do ouvinte.
O tempo da "fala presente" do sujeito cancional é o futuro do pretérito: poderia ser, tinha tudo para ser, mas não será, mesmo estando preservado(?) da ação do tempo pela técnica. No ouvinte, no entanto, fica a intuição de que aquilo é e pode ser. Eis o tempo complexo das canções que a canção de Gilberto Gil, ao tematizar a morte, revela.
O tempo exige novos posicionamentos frente ao eterno retorno não do mesmo, mas do diferente. "Não me iludo / Tudo permanecerá / Do jeito que tem sido / Transcorrendo / Transformando", canta Gil noutra canção sua. No modo como Gilberto canta a mensagem de "Não tenho medo da morte" reside a eficácia da canção: calmo, sereno, em ato de espera, de desaceleração - performance de um cancionista que "se quiser falar com Deus" sabe que precisa "calar a voz e encontrar a paz".
A espera é a vontade que se encaminha para o exterior. Não para o futuro, mas para a exterioridade do presente em sua expectativa modelar do acontecimento esperado. "A morte já é depois / que eu deixar de respirar / morrer ainda é aqui / na vida, no sol, no ar / ainda pode haver dor / ou vontade de mijar", canta Gil: cancionista compositor de destinos.

***

 Não tenho medo da morte
(Gilberto Gil)

não tenho medo da morte
mas sim medo de morrer
qual seria a diferença
você há de perguntar
é que a morte já é depois
que eu deixar de respirar
morrer ainda é aqui
na vida, no sol, no ar
ainda pode haver dor
ou vontade de mijar

a morte já é depois
já não haverá ninguém
como eu aqui agora
pensando sobre o além
já não haverá o além
o além já será então
não terei pé nem cabeça
nem fígado, nem pulmão
como poderei ter medo
se não terei coração?

não tenho medo da morte
mas medo de morrer, sim
a morte é depois de mim
mas quem vai morrer sou eu
o derradeiro ato meu
e eu terei de estar presente
assim como um presidente
dando posse ao sucessor
terei que morrer vivendo
sabendo que já me vou

então nesse instante sim
sofrerei quem sabe um choque
um piripaque, ou um baque
um calafrio ou um toque
coisas naturais da vida
como comer, caminhar
morrer de morte matada
morrer de morte morrida
quem sabe eu sinta saudade
como em qualquer despedida

2 comentários:

Anônimo disse...

Ah Leornado!
Vc é um talento viu!!!
Bjs.

Bruno Lima disse...

Léo, quem diria que hoje conseguiríamos, após as previsões apocalípticas de Benjamin, repensá-lo e, por que não?, "desconstruí-lo"? A respeito do tempo, ele parece ser tão-somente um registro desesperado do presente de um sujeito que muitas vezes desconhece de onde veio e ignora para onde vai. Excelente texto!! Esse pegou "na veia".