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24 dezembro 2023

Sodomita


No livro Cultura e opulência do Brasil (1711), André João Antonil registrou que "se a terra, obedecendo ao império do Criador, deu liberalmente a cana para regalar com a sua doçura aos paladares dos homens, estes, desejosos de multiplicar em si deleites e gostos, inventaram contra a mesma cana, com seus artifícios, mais de cem instrumentos para lhe multiplicarem tormentos e penas". Tratando "Do que padece o açúcar desde o seu nascimento na cana, até sair do Brasil", o livro alerta para o mau uso das coisas do Criador, incute a culpa. Essa mistura entre Estado e religião é marca do Brasil colônia, porém, seus miasmas chegam até nossos dias. Vide a frágil laicidade do Estado. É o que nos leva a pensar o livro SODOMITA, de Alexandre Vidal Porto. Ficcionalizando a história de Luiz Delgado, degredado de Lisboa para o Brasil, sob a acusação de sodomia, Porto repara e alerta. Se no livro de 1711 lemos o famoso adágio de que o Brasil “é inferno dos negros, purgatório dos brancos, e paraíso dos mulatos e das mulatas”, Porto revela o que "é da nossa natureza" humana: o desejo, as "causas do coração". Anos mais tarde, novamente degredado, pelo mesmo "crime", Delgado vai aprender em Angola a respeitar sua natureza. (Muito antes de Chico Buarque e Edu Lobo questionarem "será que o deus que criou nosso desejo é tão cruel / mostra os vales onde jorra o leite e o mel e esses vales são de Deus"). Aliás, o trânsito da personagem entre Lisboa, Bahia e Angola, "onde se destina à penitência dos pecadores mais vis", é, por si, um ótimo motivo para a leitura do livro, pois revisa o ethos colonial, as atrocidades feitas em nome de Deus. Além do rico trabalho com a coloquialidade da língua escrita, restituindo um uso contextual e histórico de termos e expressões - o que adensa a tensão entre a ironia crítica do escritor de hoje em relação ao patético das situações "criminosas". Por exemplo, o medo da "efusão de sêmen intravaso", o que agravaria o "comportamento desvairado" de deitar com outro homem. De fato, ao fazer uso do próprio corpo para fins de deleites e gostos pessoais, Luiz Delgado pena e goza no Brasil do século XII, lugar para onde os europeus vinham para enriquecer ou purgar "crimes contra a natureza" divina: o purgatório do branco. Naquele tempo, a sodomia era "crime" gravíssimo. Cronistas da época comentam isso. Nos poemas atribuídos a Gregório de Matos (1636-1696) constatamos o escárnio de nosso sátiro sobre o tema: no poema "Marinícolas", paródia da canção "Marizápalos a lo humano", de López de Honrubias (1657), referindo-se possivelmente a Nicolau de Tal, provedor da Casa da Moeda em Lisboa, daí o termo "marinícolas" = maricas + Nicolau, Gregório teria cantado: "(...) Tem por mestre do terço fanchono / Um pagem de lança, que Marcos se diz, / Que se em casa anda ao rabo dele, / O traz pela rua ao rabo de si". Essa descrição diz muito do tom como a relação entre Delgado e Doroteu Antunes é registrada no livro SODOMITA. Alexandre Vidal Porto é primoroso em forjar uma linguagem que leva quem lê a rir do ridículo das acusações, quando, "nas igrejas, acusavam pecadores de despertar a ira divina e da propagação da peste, e os padres maldiziam os excessos tenebrosos". O uso de adjetivação moralizante serve bem a esse propósito de pastichizar a crônica seiscentista, ao mesmo tempo em que finge isenção e neutralidade. Por fim, se o mancebo Doroteu chega a recorrer ao padre Antonio Vieira, superior dos jesuítas, para se livrar do domínio do demônio, merece destaque a personagem Florência Dias Ferreira, a donzela e amiga esposa de Luiz Delgado. E nisso também o livro é importante: no diagnóstico da misoginia, já que o horror da religião é e está no feminino, na mulher.

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