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10 dezembro 2023

Raio


Em RAIO Eucanaã Ferraz tece refinada trama de leituras, desdobrando o moderno hoje, entre Gullar e Cecília. Outrossim, "o fogo / queimou tudo. só não queimou a pedra", lê-se. Eis Eucanaã dizendo onde filtra sua poética: o prisma Cabral. De fato, RAIO é um livro em que os poemas compõem "um [livro] jovem cravejado de cristais". O verso diz mesmo bastante das imagens que se aglomeram e se encadeiam ao longo da leitura; e do procedimento de repetir (em diferença) palavras e expressões de um poema no outro. Essas anáforas insuspeitadas agem a serviço da composição do livro como um poema único, cheio de arestas, mas bordado sobre instantes. E assim os poemas se contaminam, sacralizando o cotidiano - as muitas referências bíblicas sustentam isso. Misturadas às sensações líricas, essas referências estimulam elucubrações sobre o existir: "mal entendo a língua / com que os homens falam / (finjo digo calo) / como entenderia / o que diz um peixe". A ausência de vírgulas dá fundamento e "tudo se baralha", numa paisagem do Rio de Janeiro em pleno verão. O poema "Barcarola" talvez seja o núcleo desse artifício. Cor mais alegre e mais triste, o verde novinho em folha se espraia pelos poemas e anima a tropical melancolia de Eucanaã Ferraz. Outra referência: as redondilhas de "Na feira" surge como um contracanto - "me aproximo mudo" - ao cantador cego do "circuladô de fulô" haroldiano. "Seria cego se eu não lhe reclamasse os olhos?", lê-se noutro poema. A estrutura de cada poema é um exercício formal a parte, dentro, entre: baladas, madrigais, odes, elegias desautomatizam o olhar, ou significa o ordinário - "instante mais bonito este quando o olho não funciona como se espera". Prismático, RAIO convida quem lê a rever.

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