"A luz da
'Lanterna dos Afogados' brilha como um convite. Antônio Balduíno deixa o cais,
levanta-se da areia que o acaricia e se dirige em grandes passadas para o
botequim. A lâmpada de poucas velas mal ilumina a tabuleta que traz o desenho
de uma mulher bonita com corpo de peixe e uns seios duros. Por cima uma estrela
pintada com tinta vermelha, derrama sobre o corpo virgem da sereia uma luz
clara que a torna misteriosa e difusa. Ela retira da água uma suicida. E por
baixo o nome: 'LANTERNA DOS AFOGADOS'" (Jubiabá, Jorge Amado. p. 128).
No Brasil,
distanciadas da mitologia grega, reforçada pela ideologia judaico-cristã, que
transferiu à mulher apenas a monstruosidade calcada na figura da sereia, as
sereias, porque ligadas à imagem de Iemanjá, que, por sua vez, sicretizou com
Maria (cristã), guardam os mitemas da doçura, da possibilidade do desvio ao
real duro, do colo, do mimo.
"Ateu e viu
milagres", admirador e difusor das sabedorias africanas, fazendo de
algumas de suas obras um território da complexificação do sincretismo religioso
brasileiro, Jorge Amado empresta à sereia desenhada ("mulher bonita com
corpo de peixe e uns seios duros") o enigma de ser aquela que salva o
afogado. Obviamente, apenas pelo trecho citado, não podemos saber se a sereia
guiará o afogado de volta à vida na terra, ou o arrastará para a vida no mar.
Seja como for, a
sereia mimetiza o nome do lugar. Ela é a lanterna dos afogados, dentro de uma
cultura - a dos pescadores - em que o homem se vê constantemente dividido entre
o bem de terra e o bem de mar. Também, noutra perspectiva, ela é o botequim, a
bebida que alivia e ajuda o homem a se desligar das dores da luta diária: a
bebida como promotora de uma vida (mais real). E daí o afogar as mágoas nos
braços da sereia.
Ela é o destino mais
que perfeito para quem viveu do/no mar. Com seu canto impregnado de maresia e
convites à libertação da dor, a sereia salva, mais do que mata, como comumente
se prega. Ela é a "luz no túnel", o "cais de porto"
"quando chega a noite / E você pode chorar", como canta o sujeito da
canção "Lanterna dos afogados", de Herbert Vianna.
A conhecida canção
ganha tons insondáveis quando o compositor a interpreta com Gal Costa (Gal Costa Acústico , 1997). A voz de Herbert entoa a primeira estrofe da canção até o
refrão, quando diz: "Eu tô na Lanterna dos Afogados / Eu tô te esperando /
Vê se não vai demorar". Só aí entra, sem demora, a voz de Gal como a
sereia que responde (ajuda) ao apelo do sujeito da canção: "Uma noite
longa / Pra uma vida curta / Mas já não me importa / Basta poder te ajudar".
A lanterna dos afogados é também, agora, a voz (garganta acesa) da sereia-Gal.
Depois disso, depois
de devidamente em sintonia com a tal Lanterna dos Afogados (o botequim, o
espaço cancional criado pelas vozes e pelos instrumentos), os dois, as duas vozes
se mesclam no canto dos versos indicando o cais em que cada um se transformou
para o outro. É por isso que, sem dúvidas, esta versão de "Lanterna dos
afogados" guarda um dos mais belos encontros entre forma e conteúdo. Ambos
pertencem e são a Lanterna dos Afogados.
Ele canta já da
Lanterna, evoca a musa, canta para que a sereia venha e salve a noite, a vida.
Ela chega, e ao cantar, mais tarde, os mesmos versos que ele cantou, se conecta
a ele. Ambos afogados e salvos um no outro, no canto, na voz do outro, parceiro
na noite escura. Tal e qual a personagem de Jorge Amado que ouve a toada triste
que vem do mar. "O Gordo está atento à canção dos marinheiros: - É bonito.
- E você entende? - Não, mas me bole cá dentro..." (p. 129).
É isso, um bulir por
dentro o que acontece com o sujeito cantado de "Lanterna dos
afogados". E isso só é possível nesta versão em dueto, já que na versão
com apenas uma voz não há o cais, compartilhamento, resposta à vida curta, mas
apenas a angústia da ausência e do afogamento. Como na bonita e visceral versão
de Cássia Eller (1994).
"E são tantas
marcas / Que já fazem parte / Do que sou agora / Mas ainda sei me virar".
Se o naufrágio já aconteceu, ou vai ou não acontecer, pouco importa. O sujeito
será sempre a fratura entre o bem de terra - "lindas sirenas /
morenas" - e o bem de mar - "uma mulher bonita com corpo de peixe e
uns seios duros (...) o corpo virgem da sereia [envolta] em luz clara que a
torna misteriosa e difusa". O sujeito da canção estará sempre à deriva.
***
Lanterna dos afogados
(Herbert Vianna)
Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar
Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que sou agora
Mas ainda sei me virar
Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar
(Herbert Vianna)
Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar
Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar
Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar
Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que sou agora
Mas ainda sei me virar
Eu tô na Lanterna dos Afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar
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