Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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24 agosto 2025
Canção e performance em língua inglesa
Quem estuda e pesquisa performance artística sabe da dificuldade de desenvolver interpretações críticas e teóricas a partir de uma linguagem que prima pela não apreensão. A performance existe no seu instante-já, na experiência irreproduzível. Como só podemos lidar com arquivos, seja o livro, seja o áudio, ou o vídeo, o trabalho passa por também restituir o tempo da performance. E isso requer imaginação, sensibilidade, contextualização. Em diálogo com a crítica especializada, notadamente os textos de Ruth Finnegan, os trabalhos apresentados no "Ciclo de conversas sobre performance e canção em língua inglesa" e agora reunidos em textos no livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, coorganizado por Marcela Santos Brígida e Lucas Leite Borba, versam com originalidade em torno de performances ao vivo de artistas da pop music e imersos na indústria cultural. Temos um notável exercício de recepção e leitura das obras de Beyoncé, BTS, FKA Twigs, Harry Styles, Lorde, Miles Cyrus, Mitski, Paramore, Stormzy, Taylor Swift. Os textos desempenham o exercício raro de restituição da experiência sensorial, ou seja, de “repensar a memorização como forma de aprendizado e de apropriação, opondo-se à ‘decoreba’”. Se no texto “O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan anota que “a performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes”, essa fricção com o agora, potencializada pela relação de fã presente na base das autorias dos textos do livro CANÇÃO E PERFORMANCE EM LÍNGUA INGLESA: primeiro ciclo de conversas, propõe renovados ares aos estudos na área dos Estudos da Performance e dos Estudos da Canção, exatamente por ter a formação discente como seta e alvo. Não à toa, o trabalho é resultado da disciplina eletiva “Interrogating the Lyrics: from Alex Turner to Taylor Swift”, ministrada pela professora Marcela Santos Brígida, do Instituto de Letras da UERJ. Concordo com o que a professora diz no posfácio, "saber que a universidade pública comporta uma iniciativa como esta eletiva, (...), me traz não apenas alegria, mas também esperança criativa".
17 agosto 2025
Teorias da canção
Em TEORIAS DA CANÇÃO, Marcos Ramos apresenta uma espécie de história concisa da crítica de canção popular brasileira. Como bem diz o subtítulo do livro, lemos "percursos, fundamentos e metodologias - uma introdução" de como a canção popular foi se tornando objetivo de pesquisa e matéria prima para o pensamento crítico do Brasil. Para tanto, o autor faz resenhas expandidas de textos essenciais: "Ensaio sobre a Música Brasileira" (1928), de Mário de Andrade, "Pequena História da Música Popular" (1974), de José Ramos Tinhorão, "Balanço da Bossa e Outras Bossas" (1968), de Augusto de Campos, "O som e o sentido" (1989), de José Miguel Wisnik, "O Cancionista: Composição de Canções no Brasil" (1995), de Luiz Tatit, e "Letras e Letras da MPB" (1988), de Charles Perrone. Ao mesmo tempo em que cita quem deu continuidade crítica a essas abordagens: Oneyda Alvarenga, Heloisa Teixeira, Santuza Cambraia Naves, Cláudia Neiva de Matos, Liv Sovik, entre vários outros nomes. De modo bastante elucidativo, Marcos Ramos aponta o que considera potencialidades e limitações em cada abordagem, sempre ressaltando que muitos dos problemas apontados diz mais sobre o tempo histórico e ao objetivo específico de cada proposta, do que às competências dos autores. Interessante perceber como cada abordagem fricciona na seguinte, dando conta de circundar objeto de análise tão complexo quanto a canção popular. O autor destaca a importância do rigor analítico e da sensibilidade estética de quem se destina à interpretação do amálgama que a canção é e foi sendo interpretada e consolidada pela crítica: "não mais como um texto literário musicado, mas como uma forma estética híbrida e autônoma, cuja expressividade se realiza na confluência de códigos distintos e cuja complexidade exige escuta atenta e aparato crítico plural", escreve o autor. O livro TEORIAS DA CANÇÃO é ótimo material didático para manter sempre à mão.
10 agosto 2025
Será que fui eu?
"Existirmos: a que será que se destina?". Enfrentar a pergunta feita pela canção popular requer coragem e ação. "Hoje estou com 73 anos e esta história começou quando eu tinha 5 anos, em 1935", escreve Alzira Silvéria, autora do livro de memórias SERÁ QUE FUI EU?. Alzira se apresenta como "Uma menina negra, sem pai (porque não o conheci), sem irmãos, de origem muito humilde, mas com muita fé em Deus e muita coragem, que enfrentou a vida confiando que o dia de amanhã seria melhor do que o de hoje". A fé em Deus se traduz na vida em comunidade cristã, espaço de sociabilidade de muitos brasileiros; e a esperança no dia de amanhã se revela na memória do carnaval de rua do Rio de Janeiro e na educação sentimental via Rádio Nacional, bem como no racismo, na exploração. Enquanto narra a própria história, Alzira reflete sobre quem se convence de quem se converte à fé e apresenta um retrato singular de muitas brasileiras: "Devo a Deus e a todas as mulheres negras o apoio, o conforto e o bem-estar que me permitiram sobreviver e criar minha filha, sozinha, em São Paulo", escreve. Essa sinceridade gera uma forte relação de intimidade lírica com quem lê. Nascida em São Lourenço (MG), é da acolhedora Marília (SP), cantada num bonito poema estruturado em redondilhas, que Alzira pergunta e escreve seu livro SERÁ QUE FUI EU?, convidando-nos a, conhecendo sua história, conhecer a de várias mulheres que migram, pelos filhos, em busca de trabalho, de melhores condições de vida, e, assim, inscrevem anonimamente seus nomes na história do país. "Ia do Parque Dom Pedro até a Praça Ramos de Azevedo, com sol, chuva, frio ou calor, e, às vezes, ainda fazia hora extra! Hoje penso: - Será que fui eu?", questiona. Transitando entre a primeira e a terceira pessoa do singular, ou seja, observando-se também enquanto personagem protagonista, Alzira Silvéria, cuja narrativa começa com um sugestivo fabular "Era uma vez", mostra a construção da voz de si, de tantas.
03 agosto 2025
Tropicália em tela
O livro TROPICÁLIA DEM TELA nos lembra que a Tropicália foi mais do que um movimento (ou momento) musical e fez da TV, então em amplo processo de penetração nas casas da classe média, o suporte ideal para a difusão de sons e imagens de uma nova poética, feita de desbunde e politização do corpo. O gesto crítico da Tropicália tencionava os polos - apocalípticos x integrados - com que a inteligência brasileira da época pensava o estado de coisas no país. Rafael Zinzone maneja tópicos de cultura, política e mercado para questionar em 2025 "Em um Brasil sob tensão com novos discursos e formas autoritárias, onde estaria a rebeldia dos dias de hoje?". A pergunta aprofunda o olhar para o contexto da Tropicália, final de 1960, quando o desbunde assumido por Gal Costa, Caetano Veloso, Rita Lee, Gilberto Gil, Tom Zé e demais agentes implicados devorava o meio - a TV - para desvelar os absurdos do sistema opressor, de uma ditadura que usava a mesma TV para neutralizar o dissenso e difundir a normalidade desejada pelas pessoas da sala de jantar. Performando de dentro, por dentro da TV, os tropicalistas convocavam novas formas de viver, sua estética exigia olhos para ver além da superfície. O aparente otimismo tropicalista encapsulava profunda crítica à tragicidade do cotidiano brasileiro. "No caso específico deste estudo, apostei na hipótese de um momento bastante particular na história da televisão brasileira. Mesmo que Divino, maravilhoso não terminasse conforme programado, sendo interrompido pela prisão de Caetano e Gil, trago o exemplo do programa como forte expressão de dissenso. Se assim não o fosse, dificilmente as figuras tropicalistas com maior exposição midiática teriam sido encarceradas pelo Estado", escreve Zincone.
27 julho 2025
Poemas do amor
O poema "saudades" - "assim / saudades sim / simples / como um brinco tupiniquim / um coco de roda / cirandas voltas de tu em mim" - está entre meus poemas de predileção. Publicados no livro Barrocidade (2003), os versos aliterados em /s/ figurativizam a mensagem, além de serem exemplar da poética de Amador Ribeiro Neto - naquilo que essa poética engenha ao presentificar o que a automatização da vida ordinária apaga. Transitando nas cidades, o eu poemático de Ribeiro Neto sacode memórias do prazer e convida a sensibilizar o corpo (do poema, de quem lê). Em POEMAS DO AMOR esse eu poético singulariza a pulsão de vida que há no sexo. Como um eco de "saudades", lemos no começo de "CADÊ": "busco / tu / nas cirandas / das buzinadas das ruas // nos cocos / das noites / cruas". Sem idealizações moralistas, essa "busca" se desdobra em versos como "deu / volta por cima / por baixo / de lado / atrás / entre // deu / até / parar / de / querer / dar / e / ter / vontade / de recomeçar", em "VOLTA". Novamente e sempre, a circularidade, o trânsito, o desejo comichando e fazendo o sujeito ir indo (por que não?). Quem lê com atenção percebe que os versos de POEMAS DO AMOR trazem embutidos o paideuma de Amador, poeta que transa com, transa os autores de sua predileção. Em "CADÊ", Manuel Bandeira - "bela bela bela"; em "VOLTA", John Donne - "Before, behind, between, above, below". Esse paideuma está condensado no poema "Zé", dedicado a José Celso Martinez, em que os significantes proliferam verbivocovisualmente aquilo que interessa ao eu poemático de Amador Ribeiro Neto: o sumo (da língua), o suadouro (da linguagem), o simples (da palavra). Nessa concretude está o amor de quem "ia / fuder / com / a própria / vida // mas // foi pra sauna / arrumou / trabalho / casa / comida // voltou sarado / & / com gato / malhado", como lemos em "SAUNA". "No livro de Amador Ribeiro, nada de fissura ou frescura, a poesia é do gozo, o sôfrego desejo se realizando. (...) O que importa ao poeta é que a trama dos corpos não se arrefeça em dócil descrição, aqui a libidinagem desregrada do verso é a lei", escreve Jardel Dias Cavalcanti. Sem recalque, essa trama poética implode hipocrisias e outras tiranias do desejo controlado. Melhor do que isso só mesmo "joão você eu / eu você joão / você joão eu" circulando entre versos sem parar.
20 julho 2025
Performance
"A performance não é apenas uma forma de arte, uma intervenção ativista, um sistema de gestão empresarial, ou um exercício militar. Ela fornece uma lente e uma estrutura para compreender quase tudo". A nota lida a certa altura do livro PERFORMANCE sintetiza o modo como Diana Taylor entende e trata a palavra, o conceito e o ato. Digo "nota" porque o livro é apresentado como se performasse um "caderno de anotações", com uso de negritos, caixas altas e outras formas de destaque e interjeição. O livro é repleto de imagens (é possível documentar o ato performativo?) de performances que reforçam a ideia de que "vivemos em um mundo saturado de modelos e instruções para o sucesso: o como da performance". Nesse sentido o corpo de quem performa é suporte e arma contra o controle de governo, contra essa saturação de imagens que "circulam repetidamente até perderem toda sua força política". O corpo é lugar da performance, da intervenção, da ação - individual e coletiva, já que, por exemplo, a América Latina "só é visível por meio de seus clichês, da natureza de suas repetições performativas". Fica evidente desde o começo da leitura que o livro PERFORMANCE não está interessado em debater apenas a linguagem artística consolidada no mundo das artes dos anos 1960/70 e recorrente até nossos dias. Diana Taylor não cita estudiosos do tema como Paul Zumthor, Jorge Glusberg, Renato Cohen, Ruth Finnegan. À autora interessa a performance que intervém na vida, que, desautomatizando o olhar, promove crítica e justiça social. Todos os exemplos do livro vão nessa direção e conclui que "a busca por justiça é uma performance de longa duração. Embora as táticas e as circunstâncias mudem com o tempo, é a resistência e a perseverança que se mostram eficazes. A luta por justiça pode levar uma vida". Autora do livro "O arquivo e o repertório", em PERFORMANCE, Diana Taylor nos fornece importantes tópicos para pensar que "o arquivo também pode performar", já que "as performances operam como atos vitais de transferência, transmitindo o saber social, a memória e o senso de identidade por meio de ações repetidas". As análises sobre reperformance em contexto de "capital cultural", os comentários sobre a manipulação das pautas progressistas pelo capital e o elogio à "virada epistêmica causada por objetos corporificados de análise" são notáveis.
06 julho 2025
Canções não
"CANÇÕES NÃO é uma obra composta por um livro, disco e espetáculo". A nota na Ficha catalográfica dá conta das inquietações e inquietudes artísticas de Carlos Gomes. Poeta, pesquisador, cantor, performer, crítico, produtor cultural, um importante interlocutor do debate sobre as relações entre a palavra poética escrita e cantada e que, infelizmente, nos deixou muito precocemente. CANÇÕES NÃO é livro síntese dos interesses de Carlos Gomes. O som das aliterações em /s/ atravessa e une poemas que intentam "riscar o sulco mole da pele sonora o veio o vulto a voz de todos nós". Esse "nós" habita e transita a cidade palimpsesta de Recife - aldeia e mundo. Não é à toa, portanto, a dedicatória do livro: "para j. omard m. muniz de b. britto" - o nome assim, quebrado, como um som de maracatu, como a história contada nas pedras do Recife Antigo, onde "turistas nem imaginam / a cidade soterrada sob seus pés". CANÇÕES NÃO é para lerouvir os "ossosossosossosossosossosossosossosossosossos", como lemos numa página inteira - "sos ossos" é uma das leituras possíveis, quando o poema é lido em voz alta. "O mercado em ruínas abriga sob a sua enorme sombra / uma variedade incontrolável de vozes", lemos também. A voz poética de Carlos Gomes afirma que "a eletricidade dos corpos incorpora braços e instrumentos acústicos". Tem gente sob o asfalto, por trás dos escombros - e gente é outra alegria, diferente. CANÇÕES NÃO coloca essas vozes de gente para cantar em coro dissonante "a música da poesia / a poesia da música / cercados. circulações / fins do mundo / galáxias". Registre-se aqui o poema que mais me toca, por sua objetividade complexa, por seu desejo simples: "mãe inha / tá tudo escuro aqui / a lama derrubou a tevê da sala / quebrou, mãe / inha / chore não / ai, pai inho / o lobo derrubou a porta e as paredes de casa / quarto, sala, cozinha, banheiro / tá tudo espalhado em cima de mim / ai, / inha, inho / se encontrar as velas nessa bagunça / acende uma estória / tá quase escuro dentro de mim". No dia da notícia de sua morte, corri para reler esse poema. Voa, Carlos!
29 junho 2025
Anastácia e a máscara
O livro ANASTÁCIA E A MÁSCARA tensiona ética e estética brasileiras, com rigor formal e tema urgente. Henrique Marques Samyn promove uma revisão crítica do cânone, ou seja, estimula a imaginação daquilo que sempre esteve aqui - o corpo negro e a subjetividade negra -, mas que foi recalcado pelo processo de embranquecimento de nossa cultura, daquilo que definimos enquanto traços de brasilidade. Destaca-se a imaginação de Anastácia (título e imagem de capa do livro) e Rosa Egipcíaca, mulheres negras que precisam ser cantadas em prosa e versos para que suas memórias sejam cultivadas e se mantenham presentes. (A leitura de ANASTÁCIA E A MÁSCARA me lembrou que minha avó benzedeira tinha uma imagem de Anastácia no altar de sua casa no interior da Paraíba, à margem do rio, onde lavava roupa para ganhar a vida). O "nada" em destaque no poema "Na esquina, espreita a sombra" dialoga com o "nada" em destaque no poema "Soam mais alto as vozes", exigindo de quem lê a compreensão de que é uma poética o que está em jogo no conjunto de poemas Henrique. Essa poética é voz coral que imagina o que "ouve" (escuta) mais do que o que "houve" (aconteceu), já que o acontecido aparece dado nos livros canônicos, livros escritos pelas máscaras brancas. Manejando rigor formal e ancestralidade, o trovador Henrique canta - no caso de Anastácia, sempre com três quartetos e dois dísticos (todos em decassílabos); no caso de Rosa, os versos livres dão conta de presentificar os vários nomes dados a mulher por trás do mito, mas apoiados em redondilhas, metro mais comum na língua falada no Brasil. Por sua vez, na contramão do patriarcado, me parece que "Soneto ao não-jogador de futebol" é uma resposta às imposições do "macho, adulto, branco sempre no comando" e suas faces patriarcais que se revelam, inclusive, no uso dos metros e das regras historicamente legitimadoras de quem é ou não é homem. Assim como "Arte poética" inscreve o debate sobre ser ou não ser poeta: quem pode? Quem decide? As vozes filtradas por Henrique respondem. Em ANASTÁCIA E A MÁSCARA temos saber oral e saber livresco em tensão, em disputa sobre o que ficou e o que fica registrado na cultura.
30 março 2025
Impressões de viagem
Se para Murilo Mendes "poucos homens atingem sua época". Heloísa Teixeira é intelectual que atinge e provocava sua época de modo singular. Difícil encontrar algum momento ou movimento literário desde os anos 1960 no Brasil que não tenha sido comentado, criticado, analisado pela pulsão de vida de Heloísa. Atenta à palavra poética em suas várias possibilidades de comunicação e expressão estética, seus textos são leituras incontornáveis. Destaco IMPRESSÕES DE VIAGEM, livro fonte de muitas reflexões, não apenas sobre "cpc, vanguarda e desbunde", mas também sobre o estado de coisas enfrentado pelas artes e pela cultura nos anos 1960/70. Estado de coisas que reverbera ainda hoje: a dessacralização da literatura (para quem? por quem? quem escreve?) e a reauratização do(a) autor(a), em que pese certa "confusão" interessada pelo sistema entre poética e polêmica, por exemplo. Por sua vez, Heloisa é crítica implicada no corpus sob análise e realiza uma crítica que transita, ou, em suas palavras, que está em "deslocamento tático", incorporando o corpus do outro. Para a autora de IMPRESSÕES DE VIAGEM há naquele contexto de ditadura militar o clima paradoxalmente ufanístico e de “vazio” cultural: "o aperto da censura e a sistemática exclusão do discurso político direto acabam por provocar um deslocamento tático da constelação política para a produção cultural. Ou seja, a impossibilidade de mobilização e debate político aberto transfere para as manifestações culturais o lugar privilegiado da 'resistência'", escreve. Em dezembro de 1978, Heloisa observava que a capacidade de o sistema recuperar a contestação é surpreendente. A história de lá para cá confirmou o diagnóstico, tornando atemporal a pergunta da autora: "de que forma a biotônica ["potente", sic] vitalidade dos novíssimos [de hoje, podemos contextualizar] responderá e absorverá esses novos ares [de agora, idem]?". Mais do que um registro pessoal, IMPRESSÕES DE VIAGEM é método de pesquisa e projeta mundos no mundo experimentado na poesia brasileira recente.
16 março 2025
Peças íntimas
"O padre convidava alguns alunos: os mais aplicados, mais asseados, mais educados, para a aula de caligrafia gótica". A frase lida no começo do conto "A boa educação" encapsula os climas e as sensações que o livro PEÇAS ÍNTIMAS espraia ao longo de 17 narrativas tão luxuriosas quanto brejeiras. Tencionando cores de Almodóvar, voyeurismo de Pasolini e bastidores domésticos rodriguianos, Victor Hugo Adler Pereira apresenta um coro de vozes criadas entre a sacristia e o vestiário do quartel, compondo um sujeito integral-porque-fractal. "Em meio a essas vozes do passado, outros personagens se impuseram, esgueiravam-se entre memórias, distorcendo-as, refletindo-se na ficção", anota o autor. De fato, cada conto é um fotograma que vai lentamente montando o filme de uma vida desdobrada das questões enfrentadas pela geração do autor. "A loucura e o banimento espreitavam ameaçadores, os exemplos entre parentes confirmavam o perigo. (...) Os contos, em uma cronologia não muito rigorosa, apresentam cenas que provocam as indagações e dúvidas dos personagens, sobre questões como as relações de gênero e as definições identitárias, o envelhecimento e a morte", escreve Victor Hugo. O título do livro pulsa da expressão (algo) pudica do coroinha em estágio de nascente desejo: "Pensei no perigo de adentrar a sacristia com aquelas peças íntimas na mão - o pior, que nem me pertenciam", lemos em "Sursum corda! Habemus ad Dominum!". Padres, tios, homens de autoridade ou autoritários agem de modo irreversível na educação das várias vozes que lemos cantando em uníssono e sem moralismo no livro PEÇAS ÍNTIMAS.
09 março 2025
Oswald de Andrade mau selvagem
"Por um buraco da meia escocesa, verde e amarela, surge um pedaço caloso do meu pé velho que tanto andou". A anotação de Oswald de Andrade em seu "Diário confessional" (23/04/1951) dá conta de resumir bem o fim da trajetória de um dos mais anárquicos pensadores do século XX. Em OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM Lira Neto registra a vida e a obra desse sujeito que empreendeu o entendimento de nossa tropical melancolia. Se a biografia não revela nenhuma novidade sobre a persona satírica auto corrosiva do biografado, ela tem o mérito de passar em revista e organizar contextos e situações fundamentais para o pensamento plural de Brasil. Por exemplo, com rica pesquisa e senso de seleção, Lira Neto ajuda a entender porque a obra crítica e criativa de Oswald interessaria à Poesia Concreta, ao Teatro Oficina e à Tropicália. Há um investimento utópico (de ação!) na "pureza ingênua e [n]a revolta instintiva" da gente brasileira unindo ética e esteticamente cada um dos agentes desses movimentos. Mas Lira Neto não poupa o biografado, retratado também em suas contradições e canalhices. O que dizer do modo como Oswald tratou as mulheres com quem se relacionou? Herdeiro, Oswald penou encalacrado em dívidas; piadista, perdeu (quase) todos os amigos ao confundir "autenticidade" com grosseria; adepto do comunismo - "povo quer dizer o povo que trabalha, o povo que sofre, o povo oprimido e explorado", lutou até o fim (chegando a recorrer pessoalmente a Getúlio Vargas) para não perder privilégios de classe. Concomitantemente, o livro OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM mostra o pensador de ouvidos e olhos livres para o sambista Sinhô e para o palhaço Piolin; e de pé atrás contra o re-academicismo engendrado pelos então críticos universitários emergentes e excessivamente eurocentrados dos anos pós-Semana de 1922. Errado e errante, a obra de Oswald ainda carece de dentadas mais profundas. Pesquisas e livros como OSWALD DE ANDRADE MAU SELVAGEM é ótima leitura para quem queira devorar o antropófago cru ou cozido.
02 março 2025
A primazia do poema III
Na frase final da “Breve explicação” que abre o livro A PRIMAZIA DO POEMA III, Wilberth Salgueiro registra que “estes ensaios se articulam estreitamente à pesquisa que desenvolvo há alguns anos junto ao CNPq, em torno de poesia brasileira, testemunho e humor” e dá a dica daquilo que o leitor irá encontrar ao longo dos textos. Na melhor tradução da proposta oswaldiana – amor / humor, o ensaísta experimenta a prática crítica que convoca a cumplicidade de quem lê. E nisso age o humor, a graça de quem maneja com rigor e vontade as referências teóricas que, no caso de Wilberth, se baseiam, principalmente, nos métodos propostos por Antonio Candido e Theodor Adorno. Com Candido, Wilberth nos lembra que texto é contexto e forma é conteúdo, entre outras máximas do mestre; com Adorno, ele nos aponta que se a arte “não fosse, sob alguma mediação qualquer, fonte de alegria para muitos homens, não teria conseguido sobreviver na mera existência que contradiz e a que opõe resistência”. E é essa alegria (a força maior) o que sentimos durante a leitura dos textos de Wilberth. No meu caso, é sempre a página (à esquerda, note-se) “Sob a pele das palavras” a que primeiro procuro e leio quando abro o jornal Rascunho, mensalmente, onde os textos agora recolhidos em A PRIMAZIA DO POEMA III foram publicados. Wilberth trabalha acionando competências, peculiaridades e especificidades de cada poema. Sem subestimar o leitor, pelo contrário, apresentando a beleza do sensível compartilhado no ato de leitura.
23 fevereiro 2025
A transparência da carne
Verbo é a matéria prima da poesia de Carlos Eduardo Ferreira de Oliveira. Do primeiro – “E o Verbo fez-se carne, luz em nós” – ao derradeiro verso – “à irrelevância”, A A TRANSPARÊNCIA DA CARNE é livro que, a princípio, exigiria de quem lê a leitura prévia de boa parte das obras dos poetas do século XX. No entanto, a maturação das referências é tão bem realizada que “de tanto ouvir estrelas poderosas, / sigo o sonho das almas dolorosas”, lê-se no terceiro poema, indicando o trabalho de devoração poética e teórica que o livro elabora. Os contrastes e as sobreposições de luz e sombra, som e silêncio (“quase jazz”), rocha e nuvens, cortes bruscos e preciosos enjambements (“silentes / sussurros, orações, gemidos”), aceleração aliterante e desaceleração assonante são elementos fundamentais do jogo lúdico da poesia de Carlos Eduardo. Nesse jogo que eternamente retorna ao éden, ao princípio do poetar, do uso primal do Verbo, a palavra é a “serpente” – “um prisma cuja cor ilude, abisma”. E o Verbo se revela diamante de orvalho, de vento, ardido pelo poeta. Forma é conteúdo, som é sentido e Carlos Eduardo faz de A TRANSPARÊNCIA DA CARNE um lugar em que a palavra se pensa, repensa, pende, enquanto carnação do poético.
02 fevereiro 2025
O outro pé da sereia
02 de fevereiro. Dia de Iemanjá. Um bom exemplo literário de permanência da resistência dessa orixá vem do livro O OUTRO PÉ DA SEREIA, de Mia Couto, quando este trata da perturbação que a estátua da virgem Maria causa entre os escravos. Eles associam a imagem à senhora das águas – Kianda. É quando Dia critica a submissão de Nimi Nsundi perante a Virgem portuguesa que este revela: "Os portugueses dizem que não temos alma. Temos, eles é que não veem. A nossa luz, a luz dos negros é para eles um lugar escuro. Por isso, eles têm medo. Têm medo que a nossa alma seja um vento e que espalhamos cores da terra e cheiros do pecado. É essa a razão porque D. Gonçalo da Silveira quer embranquecer a minha alma. Não é a nossa raça que os atrapalha: é a cor da nossa alma que eles não querem enxergar. (...) aceitei lavar-me dos meus pecados. Os portugueses chamam a isso de baptismo. Eu digo que estou entrando na casa de Kianda. A sereia, deusa das águas. É essa deusa que me escuta quando me ajoelho perante o altar da Virgem", lemos. Aqui se revela a rebelião pelo jogo, o usar (apropriar-se) dos signos do outro, antropofagicamente, dentro do conflito cultural. O sincretismo, mais do que submissão ou negação, ressalta a astuta compreensão teológica, cultural e social. O sincretismo é instrumento de afirmação identitária. “De todas as vezes que rezei não foi por devoção. Foi para me lembrar. Porque só rezando me chegavam as lembranças de quem fui” (idem). E assim percebemos que os mitemas das sereias não chegam para nós apenas vindos da mitologia grega, onde habitavam os rochedos entre a ilha de Capri e a costa da Itália, filhas do rio Achelous e da musa Terpsícore. A semiologia sirênica precisa ser entendida a partir do complexo semiótico que a constitui hoje. Europa, África e Iara nos fornecem os cantos do mundo ancestral a ser ouvido.
26 janeiro 2025
Cantáteis
Desde o primeiro disco - "Aos vivos" (1995), a poética de Chico César é marcada pela justaposição da experimentalidade da poesia de vanguarda (vide as referências a Mallarmé) e da espontaneidade do repente (vide os versos de "Beradêro"). Essa quebra na hierarquia do que se supõe "sofisticado" e "popular" promove uma poética autêntica, erudita, autoral. Mais conhecido como poeta da canção, Chico César registra em CANTÁTEIS o mesmo gesto de romper as fronteiras entre escrita e voz. No longo poema composto por 141 estrofes de 11 versos heptassílabos (ou redondilhas maiores - sete sílabas poéticas) o autor tece considerações acerca do que de folclórico resiste à cidade moderna, aos tempos modernos. E vice-versa. A voz poemática em “vida de cigania” entre Paraíba e São Paulo, retirante, transeunte e cordelista canta de um lugar imaginário e faz isso num erótico jogo de sedução com a musa. O livro é ilustrado com xilogravuras de João Sanchez, adensando o tom da literatura de cordel da obra, e acompanhado por CD com a voz de Chico declamando os versos que citam Barthes, Clarice, Govinda, Frida. Aliás, César cita numa mesma estrofe Sílvio Santos e Ezra Pound, noutra cita Schoenberg, Dominguinhos e Oliveira de Panelas, e constrói uma relação horizontal comparando sentimentos incomparáveis no nível da razão. Os quiasmos – “Com um carinho do caralho”; “brasa dormida e fogosa”; “som de ouro e fina prata”; “ruído ruim fica bom”; “os Andes, os abricós”; “lucidentas loucuras”; “margarina com canção”; “enormidade pequena”; “claridade obscura”; “mulher fêmeo”; “homem macha”; “a doçura da amiga / a libido da amante”; “cactos delicatessen”; “Lilith apascentada” – se unem a neologismos – “aquelestra”; “bartoquesas e hermetices”; “fiquitices”; “dendendengo”; “brinbrincagem”; “signagem frainxus”; “excitabundo”; “paixoneira”; “musassim” – para compor a trama neobarroca de carnavalização do tempo: “paro penso repenso reparo / repasso pasado e futuro / (…) / representando o presente / preteritei guarnicês / guaxinins e tietês / que mordem e afogam gente”. Sejam nas canções, seja na poesia escrita, Chico César vem inscrevendo uma bioescrita no imaginário poético nacional: “digo isso digo aquilo / digo tudo que se disse // (...) // quero que o mundo se acabe / se não disser o que sinto”. Ouvinte, “zaratustra-zoroastro”, o poeta satírico diz o que se disse, rearranja o dito, o sabido, o ouvido e afirma-se grande na linha da poesia popular. Os "cantos elegíacos de amozade" do livro CANTÁTEIS é excelente prova disso.
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