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15 abril 2019

Mulher barriguda

O que une a poética de Solano Trindade (1908-1974) à poética dos Secos & Molhados? O contexto histórico - 1973 é o ano em que o poema "Mulher barriguda" de Solano é cantado e registrado no primeiro disco do grupo formado por João Ricardo, Gerson Conrad e Ney Matogrosso; o tema da liberdade individual (ser o que se é) e coletiva (o despertar das consciências), presente nos dois projetos artísticos; e a tensão crítica entre tradição e ruptura. Eis algumas respostas possíveis, a priori, da aproximação entre artistas que cantaram a alma coletiva em tempos de crise: Solano Trindade com a tópica do racismo estrutural e os Secos & molhados com a tópica do machismo tirano.
A relação de Solano Trindade com várias linguagens artísticas, à semelhança do que fará os Secos & molhados, é desde sempre uma marca de sua poética. Ele foi o primeiro ator a protagonizar a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Morais, em 1956. Como ator, Solano atuou também no cinema. Multiartista e produtor cultural, Trindade tem papel fundamental na reflexão crítica da cultura brasileira. Ele participou da criação da Frente Negra Pernambucana, do Centro de Cultura Afro-Brasileiro, do Comitê Democrático Afro-Brasileiro, do I Congresso Afro-Brasileiro, do Teatro Experimental do Negro, do Teatro Folclórico Brasileiro, do Teatro Popular Brasileiro.
A exemplo de Luiz Gama (1830-1882), a poesia de Solano Trindade é participativa. Ao invoca a "Musa de Guiné, cor de azeviche, / Estátua de granito denegrido", Gama escreveu: "Quero que o mundo me encarando veja, / Um retumbante Orfeu de carapinha". Por sua vez, disse Solano: "Eu canto aos Palmares / sem inveja de Virgílio de Homero / e de Camões / porque o meu canto é o grito de uma raça / plena luta pela liberdade!" ("Canto dos Palmares"). "Ainda sou poeta / meu poema / levanta os meus irmãos. / Minhas amadas / se preparam para a luta, / os tambores / não são mais pacíficos, / até as palmeiras / têm amor à liberdade", diz o eu-lírico, cuja missão é despertar.
Sobre "Canto dos Palmares", Carlos Drummond de Andrade escreveu: "A leitura dos seus versos deu-me confiança no poeta que é capaz de escrever "Poema do Homem" e "Canto dos Palmares". Há nesses versos uma força natural e uma voz individual, rica e ardente, que se confunde com a voz coletiva" (em carta a Solano, 02/12/1944).
Destaque-se que este canto a Palmares foi motivo de ataque ao projeto de Solano Trindade. Em maio de 1945, o Teatro Experimental do Negro (TEN) foi assim descrito em editorial do jornal O Globo: "um grupo palmarista tentando criar um problema artificial no País". E talvez aqui identifiquemos mais uma vértice entre Solano e os Secos & molhados: a permanência crítica do "princípio-esperança", ou seja, a crença num futuro mais luminoso, apesar das sombras do presente censurado; a resiliência; a reexistência, apesar do sufoco histórico. O "princípio-esperança" mistura-se ao "princípio-realidade", diria Haroldo de Campos. Mesmo os "desbundados" Secos & molhados - "entre os sacis e as fadas" - incorporam às suas performances vocovisuais a tropical melancolia, a consciência da crise socioeconômica e, principalmente, ética.
Esta lírica participante move os versos de "Mulher barriguda", poema melodizado por João Ricardo: "Mulher barriguda / Que vai ter menino / Qual o destino / Que ele vai ter, / Que será ele / Quando crescer". Ao rimar "menino" e "destino", o poema de Solano Trindade faz do menino a semente de um futuro possível. Esta relação de dependência é fundamental à consciência. "O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram, assim como o baobá já existe em potencial em sua semente", ensina Tierno Bokar.
A questão do poema de Trindade é: este menino por nascer enfrentará as mesmas guerras do presente? "Haverá ainda guerra?", pergunta o poema. "Haverá guerra ainda?", pergunta a voz de Ney Matogrosso. Para "crescer" o menino precisa "ter" (outra rima luminosa de Solano) as condições necessárias. Na vocoperformance dos Secos & molhados um coro sagaz canta, junto à bateria, "lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá lá láááá". Seria a onomatopeia da metralhadora da guerra em desenvolvimento ao redor do sujeito cancional? Seria a sombra que põe em suspeição o futuro do menino e, consequentemente, da sociedade, do saber? A guerra mata o futuro ainda semente. "A bomba explode lá fora / E agora, o que vou temer?", perguntara Torquato Neto em "Marginália II".
Mas se a proposta era figurativizar o barulho da metralhadora exterminando a possibilidade de futuro do menino da mulher barriguda, porque não usar o recorrente efeito sonoro "tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tá tááá"? Talvez porque a ironia corrosiva esteja exatamente nisso. Ou seja, o "lá lá lá" incorpora o pouco caso que a sociedade dá à justiça social, ao futuro do menino. "Eu vi a mulher preparando outra pessoa / O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga", cantaria Caetano Veloso em "Força estranha" anos mais tarde. É este tempo de atenção e escuta do outro que a "Mulher barriguda" de Solano na voz e no corpo de Ney convoca.
"Entendamos por poesia esta pulsão do ser na linguagem, que aspira a fazer brotar séries de palavras que escapam misteriosamente, tanto ao desgaste do tempo, como à dispersão no espaço: parece que existe no fundo dessa pulsão uma nostalgia da voz viva. Toda palavra poética aspira a dizer-se, a ser ouvida, a passar por essas vias corporais que são as mesmas pelas quais se absorvem a alimentação, a bebida: como meu pão e digo meu poema, e você escuta meu poema, da mesma forma que escuta ruídos da natureza. E essas palavras que minha voz leva entre nós são táteis", escreve Paul Zumthor em Escritura e nomadismo.
Antecipando o rap e o slam, a poesia escrita de Solano Trindade pede vocalidade ("aspira a dizer-se") e ganha no corpo dos Secos e molhados a vitalidade discursiva necessária ao Brasil de 1973. "A vida é amiga da arte", completa a canção de Caetano Veloso, atento ao jogo entre lírica e sociedade. E política e arte são indissociáveis na poesia de Solano Trindade. O tom festivo da canção "Mulher barriguda", contra a alienação, reforça a crítica social, pois incorpora a dor delirante do sofrimento histórico (sempre mascarado) da nossa sociedade cordial.
O "lá lá lá" dos Secos e molhados faz do tabu um totem. A metaforização sonora de nosso horror social convida (provoca no) o ouvinte à reflexão engajada, faz do ouvinte um cúmplice crítico: gesto contracultural em contexto de ditadura militar; grito e desabafo de quem "assume os pecados, rompe tratados e trai os mitos". Revelar a desigualdade e a injustiça na vida social urbana brasileira teve seu preço. Exemplares do livro Poemas de uma vida simples (1944) de Solano foram apreendidos e tirados de circulação. O poeta-griot foi preso por causa do emblemático "Tem gente com fome". Em 1964, seu filho Francisco foi assassinado numa prisão.
Note-se que em 1975 "Tem gente com fome" também foi melodizado por João Ricardo. A gravação, no entanto, foi censurada. Ney Matogrosso só conseguiu registrar a canção no disco Seu tipo (1979). Os versos crísticos "Se tem gente com fome, / Dai de comer..." cuja carga semântica é adensada por "Mas o freio de ar, / Todo autoritário, / Manda o trem calar: / Psiuuuuu..." certamente não agradavam os aparelhos ideológicos ditatoriais. O "Trem  sujo  da  Leopoldina", parodiando o poema "Trem de ferro" - "Café com pão / Café com pão / Café com pão" - de Manuel Bandeira, sujava a imagem da pátria feliz imposta pelo regime.
Calcada na ancestralidade das raízes negras do griot, a pulsão ético-poética de Solano Trindade encontrou na vocoperformance dos Secos e molhados o suporte pop/tropicalista para afetar a classe média brasileira e sua "leve esperança / a aérea esperança... / aérea, pois não!", conforme diz o poema "Rondó do Capitão", de Manuel Bandeira, também cantado pelos Secos e molhados. No livro O doce & o amargo do Secos e molhados, Vinicius Rangel analisa as estratégias do trio cuja obra revolucionou para sempre o experimentalismo na canção popular brasileira. Rangel anota que "ao inserir a poesia de forma original na cultura de massas, o Secos e molhados potencializou o alcance da palavra poética na sociedade brasileira. Devido às condições precárias da educação no Brasil, o grande público apenas teria acesso a estes textos caso se aproximasse do universo livresco, possibilidade mais do que remota hoje em dia".
Ainda para o autor, "a partir da reinvenção da relação do público com a palavra poética na contemporaneidade, conclui-se que o reencontro de muitos brasileiros com a palavra poética em tempos de ditadura não permitiu que a consciência crítica perene a cada brasileiro se dissipasse pelo ar". E completa: "Ao apresentar a figura de uma grávida, este boogie woogie [a canção "Mulher barriguda"] pontuado pela harmônica de João Ricardo, pela linha de baixo de Willie Verdaguer e pelo piano de Emílio Carrera tem a missão de questionar a direção dos novos tempos em um ambiente social tomado pelo poderio militar, pela falta de perspectivas para quem estava do lado dos oprimidos e, acima de tudo, pelos combates permanentes travados por quem ocupava o poder".
"Nem eu próprio à festança escaparei", escreveu Luiz Gama; "Quando deixarei de prantear?", perguntou Solano Trindade. Foi deste modo lúcido e crítico que o saber da poesia de Solano Trindade - saber que é herança de tudo aquilo que seus ancestrais vieram a conhecer e que se encontrava latente em tudo o que lhe transmitiram - tentou romper as diversas formas de autoritarismo no comportamento antirrepressivo dos Secos e molhados. 

***

Mulher barriguda
(Solano Trindade)

Mulher barriguda
Que vai ter menino
Qual é o destino
Que ele vai ter,
Que será ele,
Quando crescer...

Haverá guerra ainda?
Tomara que não
Mulher barriguda
Tomara que não

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