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31 março 2019

Legado

No livro Maquinação do mundo José Miguel Wisnik escreve que "talvez nenhum outro poeta, no Brasil ou no mundo, use tanto a palavra 'mundo' em seus poemas como Carlos Drummond de Andrade. Sua máquina poética se move muitas vezes à base de mundos - e não se trata somente daqueles bordões que se tornaram sua marca, como 'mundo, mundo, vasto mundo', 'sentimento do mundo', ombros que 'suportam o mundo', 'não serei o poeta de um mundo caduco', coração ora 'maior' ora 'menor' que o mundo. Feixes inumeráveis de 'mundos' se alternam entre a insistência da totalidade, que interpela o sujeito a cada passo, e a irrisão que contamina tantas vezes essa busca, com o mundo reduzido a um cálculo ínfimo, uma pedra inexpelível".
Tomando o mundo como uma entidade, a poesia de Drummond canta a ação consciente do tempo - "Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti" ("Legado", 1951) - no corpo a corpo do indivíduo com o/no mundo. E do indivíduo solto neste mundo. A experiência reflexiva não se confunde com a contemplação da paisagem, posto que o indivíduo é afetado pelo tempo no instante-já-ainda-não da vida moderna. Isto porque, de acordo com Wisnik, "embora nomeie a totalidade, ['mundo'] sinaliza a impossibilidade de alcançar o objeto que designa, vivendo, no seu retorno insistente, dessa espécie de gesticulação". Sísifo no pé da montanha, diria Camus. "Encontramos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a fidelidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos", escreve o autor de O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo
Do livro Claro enigma, o poema "Legado" usa a estrutura do soneto alexandrino e satiriza o beletrismo esnobe neoparnasiano que corrói a modernidade da língua e as relações do Ser no mundo. Assim, talvez o mais conhecido poema de Drummond - "No meio do caminho" - é revisitado com as marcas da crítica de quem - "esses monstros atuais" - não entendeu o sofisticado desleixo do poeta ao usar o verbo "ter" no lugar de correto "haver". Os puristas da língua e das formas exigem correção e o poeta responde com o "passo caprichoso" que figurativiza o limite da língua ideal.
Na sociedade de consumo, ter é a pedra, é o veneno-remédio ("Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu / minha incerta medalha, e a meu nome se ri."), é o obstáculo imposto pelo poema no poema, posto que a promessa de satisfação não se cumpre pós-consumo. O poema de Drummond, com seus versos alternados ABAB ABAB CDE CDE, plasma a pedra nas rimas tatibitati B: ti/ri e ti-se. "Seria uma rima, não seria uma solução", posto que o eu-lírico - "entre o talvez e o se" - não satisfaz os consumidores das regras gramaticais.
Por sua vez, Luiz Costa Lima destaca "o princípio-corrosão na poesia de Carlos Drummond de Andrade" (Ver Lira e antilira). "Corrosão, como a empregaremos, não se confunde com derrotismo ou absentismo. Ao contrário, ela aparece como maneira de assumir a História, de se por com ela em relação aberta", escreve Costa Lima. É este EU afetado pelo tempo, mas sem fatalismo e sem naturalizar a ordem mundial, que fala na poesia drummondiana. É também este EU que, em retrospectiva negativa, avalia o espólio que deixará. E compõe um testamento também em negativa, já que é o erro a herança por vir. Erro mimetizado no derradeiro verso, dificultando a divisão do poema em sílabas métricas: u/ma/pe/dra/que/ha/via/em/meio/do/ca/mi/nho; ou u/ma/pe/dra/queha/via/em/me/io/do/ca/mi/nho? A dificuldade de escandir o poema mimetiza a experiência da vida como algo intransmissível, impossível de ser herdada. Cabe a cada leitor experimentar.
Drummond demonstra-se inserido na tradição, conhecedor da herança formal de poéticas que o antecederam, ao mesmo tempo em que atualiza estas formas, problematizando seus usos contemporâneos. O eu-lírico mostra que entre o "havia" e o "tinha" há a escolha por aquilo que melhor sirva a composição do verso: a língua falada, cotidiana, humana, usual. A voz do poema tem a consciência - "Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti" - da linguagem empregada a serviço da intensificação da verdade-mais-erro do sujeito que sente o mundo. "Chegou um tempo em que não adianta morrer. / Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação", escreve Drummond em "Os ombros suportam o mundo" (1940).
A corrosão que desgasta seres e coisas do mundo afeta a forma do soneto drummondiano e interdita a fluidez do entendimento buscado apenas pela via da análise das regras. Seria Drummond sugerindo que o conteúdo é mais importante que a forma? Ou seria exatamente a apreensão de que a forma precisa conter o conteúdo? Este jogo entre superfície e profundidade afeta a linguagem do poeta, ao corroer as certezas em torno dos modos corretos de dizer e escrever poesia. De viés, Drummond critica o preconceito linguístico, já que entre o uso do "havia" e do "tinha", no Brasil, temos o controle da norma gramatical da língua.
O sujeito de Drummond é culto de si e de sua pátria historicizada. "E é a presença partilhada e intuída do histórico que lhe conduz ao sentimento de angústia, de asco e de desgosto com que partilha o mundo", segundo Costa Lima. Daí a eficácia no uso da ironia, pois "ela tritura o aconchego poético, a união travada entre a frase coloquial e a ideia de uma bonomia triste, mas repousante, que nos envolvesse enquanto povo" (idem).
A ironia corrói o conceito prévio, ao mesmo tempo em que revela o homem ao homem, convocando este a assumir responsabilidades historicamente delegadas ao sistema (político, religioso): ele "nega os deuses e levanta os rochedos", semelhante ao Sísifo de Camus. Entre a utopia e a confissão do crepúsculo, entre a lírica e a ironia há o sujeito sendo no mundo. Ao escrever de si, Drummond escreve de nós, seus irmãos em desgraça: ombros que "suportam o mundo".
Drummond assume o homem não retilíneo ao triturar a própria obra. Em "Legado" ele finge consertar o próprio verso - "No meio do caminho tinha uma pedra" transluz em "Uma pedra que havia em meio do caminho" - para ironicamente defender o verso "errado". Eis o legado deixado ao país lhe deu
tudo que lembra, sabe e sente: a liberdade assombrosa (porque autorresponsável) de errar, de ser esse "eu todo retorcido", como o poeta se inscreve em Antologia poética.
Nesta experimentação de si no mundo (ou seria do mundo em si?), a esperança se renova de suas próprias decepções sisíficas: "seu mais secreto espinho". O poeta canta seu negar. "De tudo quanto foi meu passo caprichoso / na vida, restará, pois o resto se esfuma". É o próprio exercício de passear caprichosamente pelo mundo o que pode ser legado, já que a experiência em si é individual: "Algo de nós acaso se transmite, / mas tão disperso, e vago, tão estranho" ("Nudez", 1959).
O sujeito drummondiano nega os manuais, as receitas, as generalizações ao experimentar-se: "minha incerta medalha, e a meu nome se ri (...) o resto se esfuma". Wisnik escreve que, em Drummond, "a totalidade, bloqueada pelo obstáculo [a pedra no meio do caminho, a impossibilidade de dizer o todo], reverbera no objeto que bloqueia: o mundo reside no gume entre o movimento do todo e sua interrupção, com o que podemos falar numa sublime em perpétuo estado de suspensão e travamento".
No poema "Legado" Drummond transvaloriza o obstáculo ("esses monstros atuais"), porque consciente do limite, ou, melhor, do fato de que a entrada na modernidade tem correspondido a certa desumanização. Os monstros externos não o silenciam. Ele, neo-Orfeu a vagar pelo mundo que irônica e insistentemente foge de sua compreensão. Se o mítico Orfeu encantava plantas, pedras e animais, o Orfeu drummondiano - também perdido de Eurídice-mundo - singulariza objetos prosaicos forjando intimidade amarga e inútil com o mundo.
Entre textos de Jorge Amado, Guimarães Rosa, Paulo Mendes Campos, Millôr Fernandes, Vinicius de Moraes, Antônio Callado e Mário Quintana, o poema "Legado" de Drummond foi musicado por Dulce Nunes no disco O samba do escritor (1968). O LP é raro e pioneiro no registro da relação entre palavra escrita e palavra cantada para a indústria cultural. Com participações de Nara Leão, Edu Lobo, Gracinha Leporace, Joyce e o conjunto vocal Momento Quatro, o disco conta com arranjos de Luiz Eça, Oscar Castro Neves e do então estreante Egberto Gismonti.
Note-se que o canto de Dulce Nunes contraria o eu-lírico drummondiano, que afirmara: "Não deixarei de mim nenhum canto radioso, / uma voz matinal palpitando na bruma / e que arranque de alguém seu mais secreto espinho". Ao cantar estes versos Dulce investe na passionalização das vogais, canta os tercetos uma oitava a cima. Sem respeitar os encadeamentos dos versos, o projeto cancional revela-se oposto ao poético, optando pelo aformoseamento em prejuízo da ironia. Aliás, o poema não sofre nenhuma intervenção estrutural, não há proposta de refrão, nem repetição do texto ou de qualquer trecho, o que reforça a intenção da voz de apenas entoar os versos.
Esse canto-de-salão, típico dos saraus do fim do século XIX e início do século XX, mais presta homenagem aos beletristas criticados no poema do que à crítica feita por Drummond. Culto, cerimonioso, pouco coloquial, o canto "matinal palpitando" de Dulce Nunes dissipa a bruma do taciturno Orfeu, posto que clarifica seu vagar. O acompanhamento bossanovista auxilia neste processo de consolo do ouvinte, de observação externa de si, promovido pelo sujeito cancional. Diferente do eu-lírico do poema para quem caberia ao leitor o trabalho de composição de si mesmo.
Por fim, a voz que canta a canção "Legado" parece não ter ouvido o poeta cantar "não serei o poeta de um mundo caduco". A beleza do canto arranca o "mais secreto espinho" do ouvinte, enquanto o poema afirma o contrário: a intensificação da dificuldade, do limite, do erro, da experiência de sentimento [individual e intransmissível] do mundo.

***

Legado
(Carlos Drummond de Andrade)

Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.

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