Exatamente por não ter a pretensão de ser plena, e por
apontar algo íntimo ao gesto antropofágico (brasileiro), a definição de cultura
que mais considero funcional é a de Lotman: "O conjunto de informações
não-hereditárias, que as diversas coletividades da sociedade humana acumulam,
conservam e transmitem" (In. Schnaiderman. Semiótica Russa, 1979, p.31).
Além de distinguir o acumular, o conversar e o transmitir, o
semioticista russo destaca a não-hereditariedade. E é isso o que me interessa
nesse conceito de cultura. Acredito que é este "sol que nasce, a cada dia
/ a cada aniversário / contra o que for hereditário", como cantam os
Titãs, o que "sustenta" o conjunto de informações que compõem a(s)
cultura(s). Este não-hereditário de Lotman me remete ao predomínio do materno,
à problematização do patriarcado, à violência do instituto da herança
patrilinear. Questões-base do pensamento oswaldiano.
Outro motivo da minha bem-querência em relação à definição
de Lotman é a representação de cultura como uma estrutura horizontal,
não-pré-hierarquizada, mas com uma hierarquia de códigos complexa, como rede
sistêmica formada por definidores pontos de contato. Para o autor, "todo o
material da história da cultura pode ser examinado sob o ponto de vista de uma
determinada informação de conteúdo e sob o ponto de vista do sistema de códigos
sociais, as quais permitem expressar esta informação por meio de determinados
signos e torná-la patrimônio destas ou daquelas coletividades humanas" (p.
33). Daí que tudo é significativo: e o que é variável e o que é invariável na
cultura?
Faço estas anotações para alicerçar meu comentário sobre a
canção "Dois lados da canção", de José Luis Braga e Luiz Gabriel
Lopes (Graveola e o Lixo Polifônico,
2009). Temos aqui a explosão do protocolo da assinatura autoral comum à cultura
cancional contemporânea, pois o sujeito da canção parece investido do instinto
caraíba, reescrevendo versos canônicos da canção popular. Por exemplo:
"Hoje eu ouço as canções que você fez pra mim" transforma-se em
"Quando eu ouço as canções que eu fiz pra você". Ou "Eu juro que
é melhor / não ser o normal" ("Balada do louco") em "Eu
juro que é melhor, enfim / eu juro vai ser melhor assim".
Seria o sujeito da canção "Dois lados da canção" o
destinatário da canção "As canções que você fez pra mim", de Roberto
Carlos e Erasmo Carlos? Pode ser. A mudança no tempo - "hoje" versus
"quando" - é significativa. Enquanto o primeiro parece imóvel, fixo
("amanhã já é outro lugar"), o segundo sugere retorno, mobilidade e
volta. É esse gesto de receber e conservar torcendo e distorcendo a informação
o que parece caracterizar a "cultura brasileira".
Em tempos de inúmeras e confortáveis (econômica e
esteticamente) releituras, reedições e regravações, tendo como base aquilo que
Zeca Baleiro bem definiu como "É mais fácil mimeografar o passado que
imprimir o futuro", "Dois lados da canção" se impõe como ácido
antropofágico necessário ao acúmulo, à conservação e à transmissão da cultura,
este palimpsesto infinito (Barthes).
As citações não se limitam ao campo da letra. O andamento
melódico complexo é a bricolagem das linhas melódicas tanto da versão de
Roberto Carlos, quanto da versão de Maria Bethânia para "As canções que
você fez pra mim", com mais aproximação desta. Além disso, há um rascunho
de imitação do registro vocal de Bethânia aqui e de Belchior ali, nada caricato,
mas destronizante - convivência de temporalidades históricas distintas;
agravamento da "crise do museu", daquilo que está tombado,
canonizado, entronizado (Bakhtin).
O sujeito da canção, aqui, é um operador de relações
intertextuais: diálogo entre sujeitos cancionais e da canção. Canções
iluminando canções, rompendo a noção de linha evolutiva, naquilo que isso se
refere a certo "passar o bastão" (hereditariedade). Continuidade e
movimento a serviço da vivência sem centro dos "tênues fios" que
ligam uma canção à outra. Esta relação afetiva e não submissa com o passado é
decisiva: "pra que te esquecer / se o amor é tanto? / existo em você / por
louco engano", diz o sujeito da canção. "Mas louco é quem me diz / E
não é feliz / Eu sou feliz", ecoam os mutantes.
***
Dois lados da canção
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)
quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar
eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim
eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver
desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano
(José Luis Braga / Luiz Gabriel Lopes)
quando eu ouço as canções que eu fiz pra você
o tempo vem dizer
o que o tempo deve ser
o espaço em que agora o meu passo chegar
vai dizer: - amanhã já é outro lugar
eu juro que é melhor, enfim
eu juro vai ser melhor assim
eu já não ligo mais para você
hoje não canto
não falo, não saio, não durmo bem
os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver
desligo você
nus, deslizamos
pra que te esquecer
se o amor é tanto?
existo em você
por louco engano
2 comentários:
Baita interpretação. Obrigado por isso.
Desde a primeira vez que escutei essa música eu peguei a relação com a balada do louco e tinha certeza de ter pelo menos uma segunda música incidental, agora sei que tem 3.
As canções que você fez pra mim - RC e EC (imitando a versão da Maria Bethania)
Balada do Louco
E, creio, que o seguinte trecho faça referência a uma terceira música.
"os tênues fios que me ligam a você estão hoje em prantos
e no entanto arriscamos tanto nos envolver"
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