Tenho usado o termo "indivíduo" para designar o
"ser empírico", social, vivente, biológico, cotidiano. E os termos
"sujeito cancional" e/ou "sujeito da canção" para apontar,
guardadas as diferenças, o "eu-lírico", o "eu-poético", a
voz que "fala" a canção de dentro da canção. Faço isso por uma
questão didática, pois um não se opõe aos outros. Pelo contrário, como tenho
tentado mostrar, a "voz da canção" é no "ser individual"
quando este é singularizado por aquela, quando a subjetividade deste age para
significar a potência daquela.
Estou dizendo que a subjetividade parte da massa, de quando
o indivíduo transvaloriza algo feito para reduzi-lo à uma unidade – a canção
popular de consumo, por exemplo – em cartaz potencializador de desejos. Ou
seja, como também já tentei mostrar aqui, a neo-sereia, o cantor popular
mediatizado, só existe na significação que o ouvinte faz do canto neo-sirênico.
Dito de outro modo, a neo-sereia e o ouvinte existem quando este faz dos
significantes emitidos pelo cantor um cartaz singular.
Deste modo, entramos nos usos feitos por Nietzsche para os
conceitos de "imanência" e "transcendência". Bem como na
definição de "comum" utilizada por Antonio Negri. É quando o
indivíduo dispensa a transcendência do canto emitido às massas, "para
todos" e transforma, por apropriação corporal, a canção em cartaz
subjetivo que se comprova que os elementos imanentes só precisam da excitação
dos sentidos para se mostrar. Quando o "canto comum" agrega
subjetividades por fazer do espaço estético uma "vivência comum",
entramos no "espaço real" significado pelo singular.
É sobre esses "cartazes singulares", enquanto
elementos de composição da multidão, que Barbara Szaniecki disserta no precioso
livro Estética da multidão (2007).
Partindo da problemática da representação da corte de Felipe IV, da Espanha,
até as manifestações globais contemporâneas, a autora enfrenta o complexo
trabalho de verificar as características dos cartazes nos campos sociológico,
político e ontológico, a fim de instaurar uma reflexão sobre as
"manifestações de potência na democracia da multidão".
Szaniecki capta a tensão entre "imagens que agem"
(de poder) e as "imagens que reagem" (de potência) e anota que:
"A noção de potência vai além do conceito de resistência, no sentido de
que não se limita a uma reação negativa (posterior) a uma ação positiva
(anterior). Além de positiva, a potência enquanto poder constituinte implica
movimento, enquanto o poder constituído ou institucionalizado provoca necessariamente
o retorno à inércia" (p. 15).
As investigações de Szaniecki nos ajudam a aprofundar a
ideia que defendemos de que é quando o indivíduo "reage" à canção, ao
canto massificante, apropriando-se, traduzindo e incorporando ela na vivência
pessoal, que ele se mobiliza em direção à potência do desejo. Quando o cantor deixa
de ser um mero representante do transcendente (do mercado) e canta o ouvinte,
cooperando com este na sua expressão imanente, ambos, cúmplices, fundam uma
"estética constituinte" – liberadora, horizontal, sem soberania, fratriarcal.
E é exatamente a recusa à soberania transcendental, ou,
melhor, o duelo entre transcendência e imanência aquilo que encontramos em
"Dueto", de Chico Buarque. Gravada pelo próprio compositor em
parceria com Nara Leão, para a peça O
Rei de Ramos (1979), de Dias Gomes, a canção recebeu uma regravação de
Izabel Padovani e Renato Braz (Desassossego,
2006).
A crise na representação se configura da seguinte forma: 1-
O sujeito da canção aponta as "imagens de poder" (transcendência):
"Consta nos astros / Nos signos / Nos búzios / Tá lá no evangelho /
Garantem os orixás / Nos autos / Nas bulas / Nos dogmas"; 2- O sujeito
afirma o desejo: "Serás o meu amor / Serás a minha paz"; 3- O sujeito
rompe com as "imagens de poder", caso estas contrariem o desejo:
"Danem-se os astros / Os autos / Os signos / Os dogmas / Os búzios / As
bulas"; 4- A crise de representação é instaurada e uma nova afirmativa é
posta: "Consta na pauta / No karma / Na carne / Passou na novela / Está no
seguro / Pixaram no muro / Mandei fazer um cartaz"; e 5- A imanência é
exaltada: "Consta nos mapas / Nos lábios / Nos lápis". Tudo-nada
depende deles, dos amantes, da disposição do corpo-alma deles.
O sujeito canta sua posição diante da crise entre a representação
transcendente (de fora, institucionalizada, burocrática, ordenadora) e a
manifestação da potência imanente (de dentro, inacabada, experimental, de
carne, osso e memória). O sujeito é mais que um espectador do
"destino". E ergue cartaz próprio para afirmar isso: "Serás o
meu amor / Serás a minha paz".
O gesto de erguer um cartaz, contrariando todas as
representações que o limitavam, leva o sujeito da canção a se aproximar
fraternalmente do ouvinte também desejoso de seguir os próprios desejos. Erguer
o cartaz, cantar o desejo é aquilo que de "comum" existe entre
sujeito cancional e ouvinte. Este se sente traduzido, "representado"
por aquele, mas não transcendentalmente, e sim de forma horizontal, porque não
há distância entre aquilo que os dois sentem, ao contrário, há um "arranjo
interno" que os aproxima.
Portanto, o aporte que Barbara Szaniecki traz à nossa
discussão, alicerçada nas leituras de Bakhtin, Foucault e, principalmente,
Antonio Negri, aprofundam as questões que defendemos aqui. A multiplicidade da
potência, geradora de cartazes, alimenta e é alimentada por aquilo que temos
chamado de neo-sereia: o ser estético que age no cancionista humano. A eficácia
do cartaz-canção está na imediata sintonia acesa entre cantor e ouvinte. Nenhum
dos dois perde a identidade, eles se comunicam no canto de potências
assemelhadas.
É por esta perspectiva que entendemos o sujeito de
"Minha tribo sou eu", de Zeca Baleiro. Quando o sujeito
"diz": "Eu não sou cristão / eu não sou ateu / Não sou japa não
sou chicano / Não sou europeu / Eu não sou negão / Eu não sou judeu / Não sou
do samba nem sou do rock / Minha tribo sou eu", mais do que negar todas
essas bandeiras generalizantes, ou impor a exacerbação do individualismo cego,
ele está reivindicando o direito à íntima subjetividade, que não se vê
representada nem com isso, nem com aquilo que o sujeito elenca.
Segundo Szaniecki, "Em termos políticos, e
possivelmente estéticos, o conceito de 'povo' – corpo social representado de
forma transcendente – seria superado pelo conceito de 'multidão' – cooperação
social expressa de forma imanente. Passamos de uma unidade representacional e
transcendental abstrata para uma multiplicidade cooperativa e imanente
concreta" (p. 110).
Seguindo esta linha de pensamento, os sujeitos das canções
de Chico Buarque e Zeca Baleiro são símbolos metafóricos deste "ser da
multidão", que não se apaga na massa, ao contrário, distingue-se e comunga
com outros, também distintos e comuns, ao se misturar. Eis a demonstração do "desejo
de uma vida comum", estudada por Antonio Negri. Para o autor, em 5 lições sobre império: "A
multidão não é nem encontro da identidade, nem pura exaltação das diferenças,
mas é o reconhecimento de que, por trás das identidades e diferenças, pode
existir 'algo comum'" (p. 148). Ao que Barbara Szaniecki complementa:
"A cooperação, comunicação e criação da multidão seria a materialização
desse 'algo comum'" (p. 112).
Produto da indústria cultural, de massa, a canção popular
não tem um "dono efetivo". Obviamente, não estou tratando aqui de
direitos autorais, mas da potência comunicativa da canção. Estou querendo dizer
que ao cantar (traduzir em canção) aquilo que o ouvinte "quer" ouvir,
o cantor é neo-sereia que mobiliza e inflama o desejo. Enquanto expressão de
potência, o cancionista coopera produtivamente na vida do
ouvinte-expressão-de-potência. E este ouvinte se "organiza" e se
manifesta no ato da audição. É o ouvinte na multidão quem transforma o verso
cancional em potência.
***
Dueto
(Chico Buarque)
Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar
Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se
Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz
Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz
Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca
(Chico Buarque)
Ela: Consta nos astros
Nos signos
Nos búzios
Eu li num anúncio
Eu vi no espelho
Tá lá no evangelho
Garantem os orixás
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos autos
Nas bulas
Nos dogmas
Eu fiz uma tese
Eu li num tratado
Está computado
Nos dados oficiais
Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ela: Mas se a ciência provar o contrário
Ele: E se o calendário nos contrariar
Os dois: Mas se o destino insistir
Em nos separar
Danem-se
Ela: Os astros
Ele: Os autos
Ela: Os signos
Ele: Os dogmas
Ela: Os búzios
Ele: As bulas
Ela: Anúncios
Ele: Tratados
Ela: Ciganas
Ele: Projetos
Ela: Profetas
Ele: Sinopses
Ela: Espelhos
Ele: Conselhos
Os dois: Se dane o evangelho
E todos os orixás
Serás o meu amor
Serás, amor, a minha paz
Ele: Consta na pauta
Ela: No karma
Ele: Na carne
Ela: Passou na novela
Ela: Está no seguro
Ele: Pixaram no muro
Ele: Mandei fazer um cartaz
Os dois: Serás o meu amor
Serás a minha paz
Ele: Consta nos mapas
Ela: Nos lábios
Ele: Nos lápis
Ela: Consta nos Ovnis
Ele: No Pravda
Ela: Na vodca
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