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12 setembro 2013

Musa da música

A relação entre sereia e cancionista aqui quer situar-se nos debates acadêmicos gerados na encruzilhada da "imanência versus transcendência" (NIETZSCHE: 2001; 2011), da "performance vocal" (ZUMTHOR: 2010), da "gestualidade vocal" (TATIT: 1996) e da "vocalização do logos" e "expressão vocal" (CAVARERO: 2011). Para gerar um conceito de sereia como estrutura mítico-estética fortemente ligada à cultura brasileira em sua pluralidade de mitos, línguas, tradições e estéticas, cunhei a expressão neo-sereia. 
A neo-sereia é a reciclagem antropofágica da sereia mítica. A nova sereia evocada aqui surgiu para dar conta do instante-já da canção, diante da inexistência de um termo que compreendesse em si a sinestesia do fato cancional: do breve momento em que o cancionista é mais que um cantor, intérprete, enunciador e se promove a sereia singular do ouvinte. Ou seja, a neo-sereia está no interlugar que vai do ouvido aberto à escuta do ouvinte à boca indiciadora de alguém vivo do cancionista. Dito de outro, o cancionista é neo-sereia quando canta o ouvinte de modo singular e essa singularidade vem da disposição (voluntária) do ouvinte em ouvir o cancionista. A neo-sereia instiga o ouvinte a experimentação da vida.
A reprodutibilidade técnica me permite pensar essa sereia contemporânea: resultado da ação do cancionista e do ouvinte; sereia que guarda o mesmo ímpeto da esfíngica sereia homérica, com o suplemento dos meios técnicos de mediação de hoje. A ideia de uma transsereia, uma sereia trans-histórica contida no núcleo duro do gesto de ser cantor, está na base das performances vocais que aqui analiso.
Sei que o uso do prefixo "neo", em sua banalização contemporânea, provoca incômodos epistemológico e filológico. No entanto, como a proposta de um léxico para as análises de performance vocal é também um dos objetivos deste trabalho, e a "banalização" da escuta cotidiana, "relaxada" é seu corpus, creio que o "neo", como o, literalmente, "novo", abrange e dá conta da tarefa a ser executada. O novo de novo, de cada escuta de "mesma" canção.
Desse modo, nem todo cancionista é neo-sereia, mas toda neo-sereia é um cancionista midiatizado. Procuro demonstrar isso com uma detalhada revisão do mito da sereia e sua permanência nos modos de escuta contemporânea de canção, quando identifico não mais uma relação de transcendência entre ouvinte e cantor, mas de imanência, com este cooperando com aquele na sua expressão imanente, ambos, cúmplices fratriarcalmente. Assim, por ser a certeza da presença de alguém vivo - com boca, garganta, úvula, saliva -, a neo-sereia perde qualquer caráter metafísico e foca na corporalidade, na performance de um corpo que vocaliza sua unicidade.
A fim de evitar o uso abusivo do termo, estabeleço uma semiologia da neo-sereia, apontando com rigor didático as especificidades da categoria. Para isso, através da análise das canções, proponho uma série de processos constitutivos da construção metafórica do termo: os mecanismos de artificialização do cantor sendo neo-sereia, por exemplo. Tais mecanismos alicerçados na mídia utilizada sustentam a base da poética da neo-sereia.
A neo-sereia não é um simulacro (BAUDRILLARD: 1991) da sereia, não é um avesso do real. Ao contrário, é o real do avesso, já que contém em si os sintagmas da sereia mítica e indicia a presença física de alguém. Ou seja, a neo-sereia devora o suposto modelo original sem querer atingir a essência deste que inexiste e está disposta a fingir “deveras” fundindo alquimicamente simulacro e real. Em síntese, "sujeito teatral" (BARTHES. S/Z, 1992), a neo-sereia revela o "logro magnífico", a "trapaça salutar" (BARTHES: Aula, 1992) que finca o ouvinte e o cancionista à vida. E é justamente este fincar que assusta e é terrível e belo na neo-sereia: sua demoníaca capacidade de colocar o ouvinte e o cantor na vida, no mundo.
Diferente da musa, cujo canto é mudo aos ouvidos dos comuns mortais e só acessível pela mediação do poeta ou do rapsodo (CAVARERO: 2011), a sereia decodifica o canto pretensamente divino (transcendente) oferecendo-o a todos os ouvintes indistintamente. Por sua vez, a neo-sereia concentra o canto da musa (testemunha ocular, relatora do relato absoluto) e da sereia (narradora que "resume" o relato da musa).
É um religare à musa, em forma de evocação, o que compõe a canção "Musa da música", de Dante Ozzetti e Luiz Tatit. Do turbilhão das discussões sobre os modos de fazer canção na contemporaneidade, o sujeito da canção embala (guarda e nina) uma figura de musa que virá restituir à canção sua potencialidade - "que é capaz" - de ser-cantante do ouvinte.
Conta, canta, tenta, sente, mostra, zela, troca e grita são os verbos que abrem cada estrofe da letra e indiciam a ação da "musa da música", esta entidade que convida o ouvinte a experimentar a vida. Na voz de Ná Ozzetti (Embalar, 2013) o sujeito, tal como pede a letra, "aposta na canção", na palavra cantada muito próxima à palavra falada. 
Se a canção "protela a extinção" do ouvinte e do cantor, a neo-sereia - Ná Ozzetti cantando e chegando a mim via fones de ouvido do celular - é a musa-sereia que afirma isso: "Musa da música / Mãe das Américas / Filha da África-fé / Filha da África fé / Na poética pós / Na genética pré", no carrefour, na encruzilhada do relato historiográfico com os miasmas da memória mítica, linguística, estética da cultura brasileira.


***

(Dante Ozzetti / Luiz Tatit)

Conta
Que desponta
Que está pronta
Que é capaz

Canta
Não adianta
Mal levanta
Canta mais

Tenta
Experimenta
Movimenta
Não tem paz

Sente
De repente
Que é urgente
Corre atrás

Mostra
Pra quem gosta
Que aposta
Na canção

Zela
Por aquela
Que protela
A extinção

Troca
A que sufoca
E não lhe toca
O coração

Grita
Que é bonita
A que excita
E dá tesão

Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África-fé
Musa da música
Mãe das Américas
Filha da África fé
Na poética pós
Na genética pré

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