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17 fevereiro 2011

Ele me lê

Basicamente, a canção é o equilíbrio entre um texto (palavra) e uma melodia (vocal e/ou instrumental). O equilíbrio deve se dar na performance do cancionista - que nem sempre é o compositor da canção.
É na performance que o cancionista imprime o efeito de real: a sensação - no ouvinte - de naturalidade, de que aquelas palavras só podem ser ditas (entoadas) da forma ouvida. O cancionista dá sentido a sons, ritmos, sentimentos e experiências que estão "soltas" no mundo.
Cantar é sempre cantar a vida: afirmar a existência de quem canta. O sujeito de "Ele me lê", de Ana Cláudia Lomelino, ao apontar o gesto do outro - "ele me lê" - está chamando atenção para a surpresa de ser lido pelo outro.
Guardada no disco Tono (2010), o verso "Ele me lê" mais parece uma palavra única - êlimilê - vinda de alguma língua afro: nagô, iorubá, bantu. Para isso, age o modo de pronúncia de Ana: gerador de um delicioso palíndromo. Além disso a melodia mântrica, ampliada pela repetição ad infinitum do verso-título, a conjunção dos sons /l/ e /m/ e o som palindromático reforçam a gestualidade ritual da canção.
O sujeito parece aprofundar-se mais e melhor em si, a cada nova repetição: circularidade cartática. Isso, aliado ao som da banda Tono, que produz uma ciranda encantatória entre sintetizadores e percussão, faz de "Ele me lê" uma bela espiral de fumaça sonora.
A certa altura, o verso que até então vinha se dobrando para dentro de si desdobra-se para fora e entra o coro: "Ele te lê". Eis o ápice da vontade do sujeito, o êxtase ritualístico: o reconhecimento daquilo que ele havia dito.
Ana Claudia Lomelino é a abelhinha que faz zum-zum no mel: engendra o sujeito da canção na voz. Voz que dá espaço ao som instrumental quando a mensagem é restaurada: agora não é mais "ele" que lê o sujeito, há uma terceira personagem - o coro - que ouve, lê e canta (assina) o que o sujeito cantou: "ele me lê".

***

Ele me lê
(Ana Cláudia Lomelino)

Ele me lê ele me lê ele me lê
Ele te lê ele te lê

Ele te lê

Um comentário:

Grillo disse...

Oi Leonardo,

Mto bacana seus textos! Estava cá aqui eu pensando com meus botões...Vc escreveu: "Cantar é cantar a vida: afirmar a existência de quem canta"...Substituí "existência" por "desejo" e fez bastante sentido pra mim. Quando entendo por desejo aquilo que quer permanecer sempre e por isso precisa escapar: para ser eterno. Assim, cantar é uma forma de se fazer eterno. E por isso encaixo no conceito de arte. Que tal?

abs do Grillo.