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31 março 2021

Dias dias dias

Desde o primeiro momento, o poeta Augusto de Campos reconheceu no gesto dos artistas tropicalistas uma convergência com a proposta da Poesia Concreta. Usar a canção popular como suporte do poético expandia a verbivocovisualidade da poesia que, para os concretos, não deveria mais se limitar apenas ao livro, à página do papel, e precisava ganhar o corpo do artista e ser difundida na televisão - esse importante veículo de comunicação massiva. "O risco e a coragem da aventura ("A poesia - toda - uma viagem ao desconhecido", como queria Maiakóvski), estes pertencem antes a Caetano e Gil, "inventores", como pertencem antes a Tom e a João". E a música brasileira nunca precisou tanto de "inventores" como agora...", escreveu Augusto em 1968 (CAMPOS, 1978, p. 160).
Caetano também anota isso no capítulo "A poesia concreta" do seu livro Verdade tropical: "O conjunto dos aspectos instigantes na música ela mesma e da considerável articulação dos esboços de ideias que se encontravam em minhas entrevistas, chamou, desde muito cedo, a atenção do poeta Augusto de Campos. Antes de o tropicalismo ganhar corpo e nome, Augusto, tendo ouvido Maria Odete cantar "Boa palavra" no festival da TV Excelsior, e, por outro lado, tendo lido minha intervenção num debate sobre música popular na Revista Civilização Brasileira, no qual eu insistia na ênfase sobre João Gilberto e preconizava a "retomada da linha evolutiva" que este representava, escreveu um artigo chamado "Boa palavra sobre a música popular", saudando minha chegada no cenário da MPB como um fato auspicioso" (1997, p. 208). E continua: "Ninguém depois de Augusto, até que o tropicalismo estivesse nas ruas, tocou com tanta precisão os pontos-chaves dos problemas específicos da música popular de então. Seu artigo dizia, por exemplo, que os "nacionalóides" preconizavam um "retorno ao sambão quadrado e ao hino discursivo folclórico-sinfônico"; que eles queriam "voltar àquela falsa concepção 'verde-amarela' que Oswald de Andrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas" (VELOSO: 1997, p. 209-210).
A afinidade ética-estética entre Augusto e Caetano se verifica, por exemplo, no fato de ambos terem percebido, Caetano intuitivamente, posto que ainda não tinha contato com a crítica antropófaga oswaldiana, contato que viria a acontecer exatamente sob a mediação dos concretos, que o iê-iê-iê se transformou no Brasil, que não era mera cópia. É assim que com os poetas concretos aprendemos que poesia não é propriamente literatura e que os aspectos físicos da palavra, o papel, a tipografia, a cor e os espaços em branco são tão importantes quanto o dito: são indissociáveis, na verdade.
Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari convocaram à liberdade das grades da escrita a qual a palavra poética fora confinada desde que a musa aprendeu a escrever e o grafocentrismo ganhou a hegemonia da concretude poética. Os poetas concretos compreenderam o alerta de Oswald de Andrade: "Só atendemos ao mundo orecular". Urgia revocalizar o logos, experimentar, inventar modos de poetar que utilizassem os recursos técnicos do contexto. "A poesia concreta fala a linguagem do homem de hoje", escreveu Haroldo de Campos em "Contexto de uma vanguarda", Jornal de Letras, fev/mar, 1963). 
A tropicália agregou à proposta verbivocovisual da poesia concreta a politização do cotidiano: a presença do corpo do artista na casa das pessoas pela TV passa a ser também o conteúdo do poético. Nesse sentido, Caetano incorpora a "tensão de palavras-coisas no espaço-tempo" como previra o "Plano Piloto da Poesia Concreta" assinado por Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari em 1958. Forma é conteúdo e, em canção, o modo de dizer é tão importante quanto o que é dito. Sobre essa proximidade entre concretos e tropicalistas, Santuza Cambraia Naves anotou que, "se ambas as tendências partilham o gosto por experimentalismos, os tropicalistas, no entanto, de maneira diferente dos concretos e das vanguardas construtivistas, afeitos a ideais de racionalidade e contenção e tendentes a rejeitar grande parte da tradição estética, costumam ser mais flexíveis e abertos para os diferentes temas legados pelos repertórios culturais brasileiro e estrangeiro" (2009, p. 19).
Lembremos: o "Lance de dados" de Mallarmé, a arte ideogramática de Ezra Pound, as palavras-montagens de James Joyce, as experiências tipográficas de Cummings, a insurreição sonora e o texto polilíngue de Sousândrade, o rigor e o espinhaço da linguagem de João Cabral de Melo Neto, a antropofagia oswaldiana e a máxima de Maiakóvski - "não há arte revolucionária sem forma revolucionária" - alimentaram o paideuma concretista e, por consequinte, caetânico, cujas obras visam desautomatizar a língua, a linguagem, a pátria - atitude que Lucia Santaella chamou de "lance de um olhar de lince sobre a tradição" (1985, p. 93). Para a autora, Poesia Concreta e Tropicalismo "acabaram por produzir contra-ideologias estéticas ou estratégias culturais profundamente semelhantes. (...) Ambos foram igualmente portadores de uma mesma força contra-ideológica em relação ao ranço sentimentalóide-romântico-popularesco-ufanista (mesmo quando este se disfarça sob a voz altissonante do protesto). Ambos se situaram em cheio, sem medos e camuflagens, na dialética nacional-universal da criação" (p. 103-104).
Caetano anota que "Augusto e seu irmão Haroldo, juntamente com Décio Pignatari, formavam o núcleo do grupo de poetas que, no meio dos anos 50, lançaram o movimento de poesia concreta, uma retomada radical do espírito modernista dos anos 20 - e das idéias de vanguarda do inicio do século -, contra os pudores antimodernistas e antivanguardistas que tomaram conta da poesia e da literatura brasileiras, primeiro com os romancistas regionalistas dos anos 30 e, depois, com os poetas da chamada "geração de 45"" (1997, p. 211-212). E continua: "Gostava de reconhecer nos poemas a complexidade que, muitas vezes, à primeira vista eles não pareciam ter. Pequenos ovos de Colombo, eles poderiam parecer ao mesmo tempo demasiado óbvios e demasiado artificiosos, mas em muitos deles tinha-se de fato a experiência, defendida teoricamente pelo grupo (segundo Mallarmé), de "subdivisão prismática de uma idéia"" (1997, p. 218).
A referência desses poetas críticos pode ser percebida direta e indiretamente de vários modos na obra de Caetano. Do barroquismo verbivocovisual da canção "Batmacumba" composta com Gilberto Gil para o disco manifesto Tropicália ou Panis et circencis (1968); passando pela canção "Gilberto misterioso", feita a partir de um verso de Sousândrade, poeta revisado e fixado pelos irmãos Campos; até a vocoperformance de poemas como "Dias dias dias", "Pulsar", "Circuladô de fulô". Por exemplo, sobre “Lua lua lua lua” (Joia, 1975), Caetano comenta: "gosto de “estanca” e “branca, branca, branca”, que têm o eco de alguma coisa de Haroldo de Campos, dos poemas dele que eu lia nos anos 60 e que traziam palavras como “estanco” e “branco”” (VELOSO: 2003, p. 45-46).
Destacaria ainda a reconciliação (anti-exótica) de Caetano, via "salto participante" concretista e seu "nacionalismo crítico", com temas difíceis como "o povo do Nordeste" ou "os pobres do Brasil" presentes em várias canções. Mas é sobre a presença nítida de Augusto na poética caetânica que quero tratar aqui.
Antes, preciso lembrar que o primeiro tropicalista a registrar um poema concreto em disco foi Tom Zé, que chamou o próprio Augusto de Campos para oralizar o poema "Cidade" (1963) na abertura da canção "Senhor cidadão" (Se o caso é chorar, 1972). Vários prefixos latinos montam, iconizam a cidade. A justaposição dessa pesquisa com os versos de Tom Zé "Oh senhor cidadão, / Eu quero saber, eu quero saber / Com quantos quilos de medo, / Com quantos quilos de medo / Se faz uma tradição?" adensa a motivação antropófaga, concretista e tropicalista de uma só vez.
Parece-me significativo que Augusto de Campos tenha escolhido o poema "VIVA VAIA" para nomear e figurar na capa da coletânea que reunia três décadas de sua obra no ano de 1979. A frase de Jean Cocteau que Augusto tomou como epígrafe do livro Viva vaia - "Aquilo que o público vaia, cultive-o, é você" - singulariza a discussão do poema. Feito como uma espécie de reação à hostilidade do público dos Festivais da Canção às inovações que Caetano apresentava no palco, não estaria Augusto revivendo a própria rejeição de certo público à sua obra?
Não é a toa que no disco que acompanhava o livro ouvimos a oralização de Caetano Veloso para os poemas "Dias dias dias" (de POETAMENOS) e "O pulsar". Gravações feitas em 1973 e 1975, respectivamente. Na capa do disco Viva vaia feita por Augusto e Julio Plaza sobre foto de Ivan Cardoso temos a imagem de Caetano segurando o poema de Augusto sobre o peito. Note-se que o primeiro poema é de 1953, portanto, anterior ao "Plano Piloto da Poesia Concreta". 
"Dias dias dias" é poema-jogral que registra o que Philadelpho Menezes (1991) chamou de "fase geométrica não-figurativa". Na sua oralização Caetano Veloso faz uso da partitura cromática do poema. Cada uma das seis cores ganha um tratamento vocal, uma entonação que singulariza a sintaxe ideogramática que, por sua vez, estilhaça a nitidez de um eu previsível. Nessa justaposição de ideias (montagem), esse conteúdo passa por uma revisão constelar da história da língua portuguesa no Brasil; seja na referência ao soneto do poeta Luís Vaz de Camões, notadamente no verso "Os dias, na esperança de um só dia", seja na citação do verso "(Oh! se me lembro! e quanto!)", do parnasiano Luís Guimarães. Augusto implode o soneto, essa estrutura fixa e de conteúdo predominantemente subjetivista, feito para a memorização e para a voz, e instaura a "subdivisão prismática de uma ideia" do eu contemporâneo. Essa atitude de (quase) saturar suas obras de referências diversas, como que mimetizando a cultura brasileira, é herança crítica que Augusto e Caetano recebem de Oswald de Andrade e Sousândrade.
Na forma e no conteúdo, Augusto de Campos devora as referências portuguesas e Caetano imprime isso na voz: acelerações, passionalizações, ecos, timbres singularizam a combinação de cores que sustenta o enigma que a língua brasileira é. Se lidas separadamente, podemos restituir em cada cor/timbre resquícios (tons/matizes) da lírica amorosa que definem o poema e a canção no Brasil - essas linguagens indistintas desde a origem da poesia e cuja indistinção parece rediviva no Brasil, apesar do apelo academicista, grafocêntrico e livresco.
Dito de outro modo, o texto espacializado no vazio da página em branco trata conjunções e disjunções amorosas, revisita o lirismo tradicional e apresenta uma entidade (brasileira) fragmentada, logo, moderna, interditando, ou pelo menos dificultando, a possibilidade da figuração de um ser integral. Essa entidade vislumbrada entre os escombros da memória tipográfica - além das cores, observem-se os usos também da caixa alta e da separação incomum das sílabas - e sonora aparece fantasmagoricamente quando Caetano incorpora o canto dos versos "Volta / Vem viver outra vez ao meu lado! / Não consigo dormir sem teu braço, / Pois meu corpo está acostumado". O desejo de completude cantado por Lupicínio Rodrigues reforça a realidade espectral da voz do poema.
Se na oralização de "Dias dias dias" temos apenas o uso da voz e do piano elétrico, em "Pulsar" (1975) a percussão tem papel importante. É ela quem acompanha a voz de Caetano e sublinha as alturas timbrísticas das vogais. O = dó; E = ré - uma oitava acima do dó anterior; e A e U = sol. Novamente, Caetano se utiliza da partitura (visual) sugerida pelo poema, já que E = estrela e O = círculo, ora mais abertos, ora mais fechados, a depender da intenção da voz. Da citação de Lupicínio Rodrigues na oralização anterior passamos à referência autofágica, já que na versão de 1984 no disco Velô Caetano cita a melodia de "Não identificado" após oralizar "abra a janela e veja". Como já anotei, essa circularidade de significantes entre Augusto e Caetano é bastante frutífera. Por exemplo, na sua intradução "Sol de maiakóvski" (1982-1993), Augusto incorpora o verso "Gente é pra brilhar" da canção "Gente", de Caetano Veloso (Bicho, 1977).
Outrossim, a tópica do pulsar como signo da resiliência do ser em tempos sombrios aparece tanto nos versos "Os ruídos terão sentidos e teus sentidos perdidos / Os pulsars, os quasars, o laser, os meses / Tudo tão perto de nós", da canção "Pulsars e Quasars", de José Carlos Capinan e Jards Macalé, na voz de Gal Costa (1969), quanto em "O pulso ainda pulsa / O corpo ainda é pouco", de "O pulso", de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Bellotto (Õ Blesq Blom, 1989). Seja na voz desavorada de Gal, seja na atitude dos titãs, o tema parece ressignificar as matérias que nos anos 1950 pretenderam agredir a Poesia Concreta e seus poetas: "O rock'n Roll da Poesia" (O Cruzeiro); "Rock'n Roll e poesia concreta são aspectos de um mesmo fenômeno: o de uma juventude desorientada" (Diário de Notícias).
Lembro ainda que depois de convidar Augusto de Campos para o dueto da canção homônima sobre o poema "O verme e a estrela", do poeta simbolista Pedro Kilkerry, no disco A fábrica do poema (1994), Adriana Calcanhotto canta o poema "Sem saída", de Augusto, no disco Maré (2008). Diferentemente do procedimento de Caetano Veloso em "Dias dias dias", Calcanhotto uniformiza em sua performance vocal o colorido e labiríntico poema verbivisual. Aquilo que em cada linha/cor - "Curvas enganam o olhar" - serve para embaralhar e interditar a saída - "Não posso ir mais adiante / Não posso voltar atrás" - é cantado com uma passionalização linear imprevista por um sujeito "sem saída": "Nunca saí do lugar". O que não deixa de também revelar uma certa leitura crítica de Calcanhotto.
Como já adiantei, Caetano regrava "Pulsar" em Velô (1984). Se a princípio o título do disco remete a uma economia do nome do cancionista (Velô de Veloso), plurissignificando a palavra, como ele mesmo já fizera com "better, better, beta, beta, bethânia" (Caetano Veloso, 1971), o termo também pode ser lido como uma permanência da referência concretista, ou seja, uma citação do poema "Velocidade" (1957) de Ronaldo Azevedo, mais especificamente a quarta linha - "VVVVVVVELO". Seja como for, sem significativas mudanças melódicas e de arranjo, a oralização do poema aparece ainda em Caetano Veloso (1986) e Fina estampa ao vivo (1995). Mais recentemente, durante a pandemia de covid-19 (2020) e diante da ascensão de um governo autoritário no Brasil, acompanhado de seus três filhos, Caetano oralizou "Pulsar" em uma live disponível na plataforma Globoplay: retorno de "o pulsar quase mudo" em tempos sombrios, "Que nenhum sol aquece / E o oco escuro esquece".


CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1978.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MENEZES, Philadelpho. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea. Campinas: Unicamp, 1991.
NAVES, Santuza Cambraia. Velô, de Caetano Veloso. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.
SANTAELLA, Lucia. Convergências: poesia concreta e tropicalismo. São Paulo: Nobel, 1986.

 


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