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20 outubro 2024

Educação nos terreiros


Se eu pudesse indicar um livro aos meus colegas professores, especialmente aos de ensino fundamental, e que este livro entrasse como leitura fundamental nas grades curriculares, indicaria EDUCAÇÃO NOS TERREIROS. Aqui a professora Stela Guedes Caputo escreve sobre como a escola se relaciona com crianças do candomblé, consequentemente, com questões raciais. Não bastassem a excelência da pesquisa e a qualidade do texto, a autora trata de um tema urgente às questões de tolerância religiosa no Brasil. Lemos numa das orelhas do livro: "Senti o preconceito desde muito cedo. Aos 6 anos de idade vi ser publicada uma foto minha numa matéria da 'Folha Universal' intitulada 'Os netos do demônio'. O efeito desta matéria foi arrasador. Me senti excluído por muitos amigos no colégio onde estudava, e essa é uma fase da infância que até hoje procuro esquecer", escreveu Ricardo Nery. Essa e outras histórias são apresentadas e analisadas com sensibilidade e crítica socioeducativa. A autoestima das crianças também é tema do livro EDUCAÇÃO NOS TERREIROS, diante das discriminações que levam a rejeição da religião de matriz africana. O diagnóstico é duro, haja vista a expansão do domínio político neopentecostal. Stela Guedes Caputo promove reflexões importantes sobre educação antirracista.

13 outubro 2024

A primeira pedra


Pedro Machado abre A PRIMEIRA PEDRA com epígrafes que dão o tom e o ritmo das narrativas do livro. O trecho do Evangelho de João em que Jesus diz “aquele de vocês que nunca pecou atire a primeira pedra”, o poema de Cruz e Sousa em que o eu-lírico assume a voz de Jesus e diz ao destinatário “sei que cruz infernal prendeu-te os braços” e o trecho de texto de João do Rio em que se lê sobre um pastor que “sonhava com o domínio temporal e a Câmara dos Deputados” são os motes trabalhados por Pedro ao longo de 14 narrativas. Essa consciência no uso das epígrafes é fundamental, por exemplo, para entender as pedreiras que os personagens precisam quebrar para ser e estar no mundo, pois serve de dispositivos para leituras de textos cujos títulos são “Jesus Negro”, “Vó Benedita”, “Jerusalém Desolada”, “Todos contra Sara”, “Pele Sagrada”. Se os contos podem ser lidos no modo aleatório, a sequência montada pelo autor cria uma narrativa em que uma história insemina a seguinte e faz com que a “pedra” do título do livro seja a protagonista. As personagens de Pedro Machado têm como emblema o humano cotidiano de quem faz do morro carioca o monte Sião. O ethos religioso é o tempo e o espaço por onde os personagens negros evangélicos e ex-evangélicos transitam. Do primeiro conto ao derradeiro diálogo do livro há um coro de vozes dissonantes cantando a dificuldade e a glória de estar vivo. Jeferson, Josué, Jeremias, Jonas, Davi, Josias, Salomão são homens-de-fé apresentados por Pedro Machado sem o véu do exotismo e do voyeurismo que por tanto tempo ainda encobre corpos e subjetividades negros obrigadas a “disciplinar sua alma à força”.

06 outubro 2024

Retorno a Reims


Autor do importante livro "Reflexões sobre a questão gay", em RETORNO A REIMS Didier Eribon expõe o périplo - a transformação da vergonha em orgulho - que fez do menino filho de operário um dos intelectuais mais respeitados em sua área. Gay e trotskista de formação, Eribon passa em revista todas as contradições internas dessa tensão. Observando o que fez a "esquerda deixar de ser esquerda", ou seja, o aburguesamento da classe operária (e classe é o mote do livro, ao lado da sexualidade), ele escreve: "devo confessar que o marxismo a que aderi durante meus anos de estudo, assim como meu engajamento esquerdista, não eram talvez mais do que uma maneira de idealizar a classe operária". E, mais adiante: "Raramente se fala dos meios operários, mas, quando se fala, é em geral porque se saiu deles e se está feliz de deles se ter saído, ele é reinstalado na ilegitimidade social daqueles sobre quem se fala no momento em que se deseja falar deles, precisamente para denunciar - mas com uma distância crítica necessária, e portanto com um olhar avaliador e ajuizador - a posição de ilegitimidade social à qual eles são incansavelmente remetidos". Eribon fala da França, mas poderia estar falando de Brasil. RETORNO A REIMS nos lembra que, sim, classe determina quem pode ter acesso ou não aquilo que a cultura determina como "desejo". "Eles desejavam ardentemente possuir todos os bens de consumo do momento", escreve sobre os pais; "a pretexto de renovar o pensamento de esquerda, trabalhavam para apagar tudo o que fazia da esquerda a esquerda", escreve sobre notários intelectuais neoconservadores. A autocrítica atravessa o livro, Didier Eribon revela os métodos de seu autoaburguesamento, método replicado, por exemplo, por Édouard Louis. E propõe: "A tarefa que cabe aos movimentos sociais e aos intelectuais críticos é portanto: construir cenários teóricos e modos de percepção políticos da realidade que permitam, não eliminar - tarefa impossível -, mas neutralizar o máximo possível as paixões negativas operantes no corpo social e especialmente nas classes populares; oferecer outras perspectivas e assim esboçar um futuro para aqueles que poderiam se designar, novamente, de esquerda". Se é impossível retornar, é urgente refundar(-se).