Desde o Projeto 365 Canções (2010), o desafio é ser e estar à escuta dos cancionistas do Brasil, suas vocoperformances; e mergulhar nas experiências poéticas de seus sujeitos cancionais sirênicos.
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29 setembro 2024
Efrain Almeida
A obra de Efrain Almeida comove desde o primeiro contato. O lirismo de suas esculturas remete-nos a uma quietude anterior à civilização (à destruição do "natural") e a um universo mitológico irrestituíveis. Suas peças são ex-votos à natureza das coisas e do ser - sejam os passarinhos e insetos que parecem empalhados espalhados no chão cru de uma galeria, sejam os colibris cujo voo estaciona porque o bico está preso. Esse lirismo evoca o interior de um Brasil tropical e desértico, vasto, preservado na memória de quem experimentou o lugar geográfico chamado Norte-Nordeste. A artesania irreprodutível das autoesculturas do artista, que de tão mínimas lembram o tamanho do Homem diante da imensidão da existência coletiva, traduz os biografemas relacionados ao corpo, à sexualidade e à religião de quem habitou esse lugar. "Sobre o lado ímpar da memória / o anjo da guarda esqueceu / perguntas que não se respondem", escreveu João Cabral. Por isso, não há saudosismo nem desejo ingênuo de restituição, mas sim gesto contundente com foco no silêncio preso nas gargantas ruidosas na modernidade. "Assentados de modo esparso sobre paredes amplas, bases largas ou folhas brancas, esses trabalhos têm o tamanho do que a mão acolhe e solicitam a aproximação do olho para serem vistos. Voltados para o espectador em busca de cumplicidade, parecem entregar sempre algo - ou a si mesmos - em oferenda, assumindo um tom confessional e sedutor que confunde - de modo medido e insinuado, mas insistente - religiosidade e erotismo", escreve Moacir dos Anjos no texto monográfico que compõe o livro EFRAIN ALMEIDA lançado pela Cobogó em 2010 com imagens dessa obra até aquele momento. E Efrain continuou criando e inventando até 2024. Ocupando galerias, bienais, feiras e demais espaços do mercado de arte, as peças (os pedaços) de Efrain Almeida focam na vigília daquilo que não cabe nesses lugares de consagração. "Eu preciso de minhas memórias. Elas são meus documentos. Eu as vigio", diz Louise Borgeois na epígrafe do livro - dando-nos a chave para essa poética cúmplice do "lado ímpar da memória", singular, autoral, comovente.
22 setembro 2024
Ar de provença
Sempre que Augusto de Campos assina algo toda uma imensa tradição de poesia se movimenta junto, oxigenando o labor com (e a reflexão sobre) a palavra poética. E a relação de Augusto com a tradição tem raízes profundas na música. Por exemplo, foi de texto de canção do trovador provençal Arnaut Daniel que os poetas concretos brasileiros pinçaram e ressignificaram o termo "noigrandes" - "(...) olors de noigandres" característica de flor [de noz moscada?] cujo perfume liberta-nos do tédio [olors (perfume), enoi (tédio), gandres (do verbo gandir, libertar)]. Incorporado ao vocabulário e à prática poética, o termo deu nome à revista que Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari editaram em 1952 e ao grupo depois composto também por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. Desde então, Augusto de Campos tem desempenhado o trabalho de revocalizar (recolocar na voz; transcriar) textos que, vocais em seus contextos de criação, hoje acessamos apenas impressos nas páginas de livros raros. AR DE PROVENÇA é exemplo disso. No CD encartado ou por Código QR podemos ouvir cantos (na voz de Antoni Rossell) e oralizações (na voz de Augusto) de duas canções de Arnaut Daniel (que "adotou um modo de trovar em rimas raras, razão por que suas canções não são fáceis de entender nem de aprender"), uma de Marcabru ("temido pela sua língua, pois dele era tanto o maldizer") e uma de Bernart de Ventadorn ("pobre de nascimento (...) sabia cantar e trovar bem e tornou-se cortês e instruído") - todas traduzidas por Augusto de Campos. A bela edição que a editora Cobalto preparou para AR DE PROVENÇA reedita textos, traduções, intraduções e imagens singulares para a compreensão da poesia inventiva e experimental brasileira. Destaquem-se ainda a flauta de Valeria Bittar, a rabeca de Luiz Fiaminghi e a parceira sempre potencializadora de belezas entre Augusto e o produtor musical Cid Campos.
15 setembro 2024
Soneto, a exceção à regra
Um livro com a assinatura de André Capilé e Paulo Henriques Britto já nasce referência. O equilíbrio entre erudição (o conhecimento) e comunicação (digna dos mestres que são) faz de SONETO, A EXCEÇÃO À REGRA um livro obrigatório na mesa de quem trabalha, faz, estuda poesia no Brasil. Capilé e Paulo mostram que forma é conteúdo e que "não há uma forma fixa do soneto quando olhamos para o contexto brasileiro na composição desse tipo de poema", conforme escrevem. A seleção dos sonetos lidos dá conta dessa diversidade, das apropriações, das rasuras. Algo cada vez mais raro, o corpo a corpo com cada soneto, esse "modelo duro do cânone, por si só tão masculino, tão branco", cria um conjunto de pequenas/grandes aulas de leitura de poesia. Mas o uso do ouvido guarda o segredo da eficácia das leituras de Paulo e Capilé, também poetas e tradutores. "Outro elemento sonoro, que ouvidos distraídos podem deixar passar, é o tema dos sons nasais que atravessam quase todo o texto, um jogo constante que na estrofe final deixa só o cheiro [aroma], incidindo alguma abertura do gritante /a/ de 'amargos', 'capros', letargos', 'luar' que, no fim, se fecha em 'tuberculoso'", escrevem na leitura de "Lésbia", de Cruz e Sousa. E que beleza a leitura de "Soneterapia 2", de Augusto de Campos! "O poeta toma de empréstimo catorze versos combinando a tradição das poéticas escritas e da canção, amarrando o grande tema do amor finito à língua de formação", escrevem. A lição de combinar tradição e revisão crítica da estrutura dos poemas é praticada com excelência por André Capilé e Paulo Henriques Britto.
08 setembro 2024
Mudar: método
Édouard Louis não nega que sua escrita tem forte inspiração na obra de Didier Eribon. Numa perspectiva mais irritada, pode-se mesmo dizer que MUDAR: MÉTODO é um canto paralelo, uma paródia, uma diluição de "Retorno a Reimns", livro de Eribon citado e referenciado por Louis. Mas há algo de singular em MUDAR: MÉTODO, as nuances da classe social. E isso é, talvez, o que de melhor a obra de Louis provoca: lembrar que a classe é um dos eixos onde o sujeito está e é no mundo. Como não me reconhecer nos momentos em que o pequeno Louis, ou seja, o ainda Eddy Bellegueule, vai à casa de vizinhos pedir comida? Era eu quem ia à quitanda pedir fiado, pois a mãe "sabia que uma criança despertaria mais facilmente pena do que um adulto". Os momentos de camuflagem do sotaque também batem fortes. Ou quando os vizinhos perguntam "por que o Eddy fala assim, igual a uma menina? Por que vira as mãos quando fala? Por que olha desse jeito para os outros meninos? Será que ele não é meio viado?". Louis narra seu método de mudança, suas dores e delícias na tentativa de inclusão num mundo em que ele crer melhor: o burguês. Tornar-se burguês é o imperativo, afinal. É essa transição do filho de operário a leitor (Louis lê todos os nomes de prestígio literário e sabe traduzir bem e incorporar com eficácia seus pensamentos) e escritor burguês o que MUDAR: MÉTODO revela sem autopiedade. "Ao imitar essa vida, eu acessava um mundo que sempre o intimidou", escreve aqui; "A burguesia ia ao teatro ou à ópera, para nós era o supermercado que nos fazia sonhar", escreve ali. A tradução de Marília Scalzo encontra o tom certo para fazer o narrador conversar com leitores diversos e distantes: do interior da França ao interior do Brasil.
01 setembro 2024
Jardim botânico
Nuno Ramos é artista polivalente. Em tese de doutorado recém defendida, Carlos Gomes de Oliveira Filho observou que na obra de Nuno Ramos encontramos "a presença de uma matéria-canção enquanto dispositivo crítico que distende as fronteiras presentes nos diversos campos artísticos e nos consequentes sistemas culturais em que essa matéria circula". Isso diz bastante do livro de poema JARDIM BOTÂNICO. Aqui vozes que muitas das vezes aparecem em itálico (sendo ou não citação direta de algum outro texto de terceiros) se infiltram e compõem a voz do sujeito poemático que dramatiza a própria partilha da escrita: "Minha incapacidade de morrer / povoa o tempo com palavras", lemos. E são palavras (o nome de) o que, na ausência das plantas, povoam as página do livro. "Aqui os nomes das plantas / crescem no lugar das plantas", dizem os dois primeiros versos de JARDIM BOTÂNICO. A imagem de uma onça queimada atravessa o livro em que cada poema parece desdobrar, redobrar o poema anterior. Ao ponto de, ao final, o escritor recolher muitos dos fragmentos de imagens proliferadas (semeadas) ao longo do texto, do jardim (selvagem, do mal). "O que temos então diante de nós é um solilóquio corajoso em que o poeta se embrenha a questionar-se sobre o valor e o sentido de suas próprias vivências", escreve Leonardo Fróes na orelha do livro. Qual é o papel do artista num mundo em que a jangada salva-vidas é de garrafas pet, esse elemento da natureza moderna? "De que fala este poema? / Essa é a pergunta, Nuno", escreve o poeta inscrito na escrita. Quem é leitor da obra de Nuno Ramos vai identificar algumas recorrências temáticas, como a referência ao "pau", ao sexo físico. A reflexão sobre o homo sapiens macho e "seu medo medonho de não ter uma voz" se mantem como uma questão da poética do escritor. "A vida que te deram era grátis, Nuno, nenhum preço a pagar", lemos aqui; "à palavra excitada / ereta, lubrificada / pronta pra enfiar / a mensagem na orelha da vítima", lemos ali. JARDIM BOTÂNICO é aquilo que numa "folha pousa / na prosa medrosa dos meus versos"; é a matéria-canção excrítica e escrítica do agora expandido, "onde letra e matéria dão match". E onde "eu era a onça queimada".
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