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09 maio 2020

Sem fronteiras


A canção tem uma magia capaz de levar o ouvinte a sentir-se íntimo de quem canta. Essa intimidade surge pelo que se é cantado, pelo modo que se é cantando, pela voz de quem canta. Logo, quanto maior a intimidade entre cantor e ouvinte, maior a eficácia da canção.
Pensando no dito e no modo de dizer, para que uma canção tenha o efeito pretendido, é preciso intimidade também com o que é cantado. E a intimidade com as palavras do texto da canção “Sem fronteiras” autoriza Chico Oliveira a dizer o que diz, no modo como diz. Um “músico militante” dizem as várias notas sobre a partida de Chico. Mas não deveriam ser militantes todos os músicos? Se não de partidos políticos, ao menos da música? Chico era dos dois. Isso legitima versos como “Eu sou do Sul e do Norte / Do ocidente, do oriente / Não tenho visto nem passaporte”. Se, como é comum pensar, as manifestações estéticas respondem à urgência expressiva de artistas, a letra de “Sem fronteiras” seria apenas edificante se Chico não fosse um militante político. Ou seja, Chico queria intervir tencionando ética e estética e para isso precisa-se de técnica, intimidade: a integração espontânea, “natural” entre artista e obra.
Não basta o dito, a voz de Chico se amalgama aos acordes de seu violão percussivo. A canção tem tom e ritmo de convite, uma trincheira de alegria em tempos de pandemia. Alegria carnavalesca, que não nega a tragédia do cotidiano: a enorme quantidade de preconceitos criadores de fronteiras entre os seres. Essa tropical melancolia pode ser percebida na performance vocal pouco festiva, quase passional, de Chico. Ao cantar as duas primeiras partes da letra, sua voz, em harmonia com o que é dito, diagnostica nossa identidade coletiva. Essa proposta entoativa é executada contrastivamente com o ritmo acelerado do violão, figurativizando um sujeito cancional em trânsito, caminhando e percebendo o mundo.
Sendo uma trama de ritmos brasileiros porque universais, a toada do violão de Chico presentifica a alegria compartilhada. E o ouvinte vê-se instado a agir para que o mundo mude. Não é à toa que Chico tenha tocado em grupos e blocos cujo ímpeto venha da rua, dos encontros que o carnaval de rua proporciona: Cordão do Boitatá, Rio Maracatu, Orquestra Itiberê, Monobloco, Noites do Norte, Forró sem Fronteiras. Chico estava interessado em agregar seu virtuosismo musical à massa: onde ninguém (ou cada qual) é protagonista.
Só na terceira parte da letra, que funciona como refrão, quando canta e pede “Liberdade pra pensar os rumos do mundo / Paciência pra junto poder navegar / Amizade pra ver o que é mais profundo / E coragem pra fazer o mundo mudar”, é que a voz e a toada se encontram tematizando a celebração do que está por vir: o projeto utópico resultado da vivência e que contagia quem ouve. Só na utopia criada pela canção é que o verbo – “eu sou” – tem a mesma indicação significativa, arranjada e cantada por alguém que vive o que diz. Ora, utopia não é alienação, nem o carnaval é fuga. Pelo contrário, ambos impõem o adensamento da mirada no espelho. O sujeito cancional criado por Chico sabe que a utopia é resultado tanto do olhar retrospectivo, haja vista que o sujeito conhece bem a história da nossa cultura, no caso, cita as mulheres negras, indígenas e subalternizadas, quanto de uma experiência renovada possível: liberdade, paciência, amizade, coragem, que, por sua vez, ele, pela via da empatia, aprendeu a crer e exercitar com estas mulheres. Novamente, é a intimidade cancional, essa abertura ao outro, o que está em ação aqui.
Do primeiro verso negativo “Meu canto não tem fronteiras”, ao derradeiro “coragem pra fazer o mundo mudar”, passando pelo “Eu não me dou por satisfeito”, a canção “Sem fronteiras” trata do caminhar na estrada, do ir indo, da observância do ritmo histórico que trouxe o sujeito cancional até aqui: ao canto. Assim, “Sem fronteiras” é metacanção, é Chico Oliveira afirmando o que é seu canto e, de viés, sugerindo o que é ser humano no meio (não no centro narcísico), na massa: “Já não me importa o sotaque que me / espera no fim da estrada de sotaques”. Perder-se para encontrar-se, eis o ímpeto.
Num Brasil cada dia mais avesso ao outro, a canção de Chico canta um projeto utópico – “Enquanto as águas não forem claras / Eu não me dou por satisfeito” – de manutenção da convivência empática: “Eu sou a escrava vendida / Eu sou a índia caçada / Eu sou os desesperados ao ver a casa debaixo d'água / O Rio Doce é meu leito”. O repertório pessoal é compartilhado e afeta o outro com uma intimidade singular. Nesta perspectiva cria-se uma rede lírica de afetos partilhados, como cada um sendo o que é: qualquer coisa, joia.
Não conheci Chico Oliveira (1986-2020) pessoalmente, embora tenha visto o músico integrar (misturado em) alguns dos grupos e blocos nos quais tocou. Mas há uma intimidade profunda entre o artista que canta “Sem fronteiras” num vídeo caseiro e o pesquisador de canção que sou.

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Sem Fronteiras
(Chico Oliveira)

Meu canto não tem fronteiras
O mundo é minha morada
Já não me importa o sotaque que me
espera no fim da estrada
Eu sou do Sul e do Norte
Do ocidente, do oriente
Não tenho visto nem passaporte

Eu sou a escrava vendida
Eu sou a índia caçada
Eu sou os desesperados ao ver a casa
debaixo d´água
O Rio Doce é meu leito
Enquanto as águas não forem claras
Eu não me dou por satisfeito

Liberdade pra pensar os rumos do mundo
Paciência pra junto poder navegar
Amizade pra ver o que é mais profundo
E coragem pra fazer o mundo mudar
 

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