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20 março 2020

RESENHA: O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE (UERJ) para o texto “O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, de Ruth Finnegan.



No texto “o que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”, Ruth Finnegan sugere diferenças e aproximações entre canto, declamação e recitativos, três modos da palavra cantada. A partir de um conceito amplo de canção, a autora, para quem “Quando você procura ‘canção’ no catálogo de uma biblioteca, encontra listas intermináveis de textos predominantemente verbais. É neles que se crê poder encontrar a verdadeira realidade – e não certamente na efêmera e incapturável performance” (p. 20-21), ajuda-nos a compreender a substância complexa e fugidia da performance. “A performance cantada é evanescente, experimental, concreta, emergindo na criação momentânea dos participantes. Como bem formulou Peggy Phelan, ‘a única vida da performance é no presente’” (p. 24), anota. Gravada, registrada, ela deixa de ser performance, passa a ser fotografia, filme, registro fonográfico, pois a mesma tem esse átimo de vida que ocorre apenas no momento em que está sendo realizada. Ou seja, a canção não existe apenas no texto escrito, nas palavras, mas ela se dá nas especificidades da sua materialização em performance (p. 24).

Se “a literatura oral só existe no aqui e agora”, como acessar, experimentar a performance fora do instante-já performático? Para alguns é impossível. As técnicas de reprodução não dão conta de registrar o que é incapturável. Mas estas mesmas técnicas tem ajudado bastante a compreender o conceito de canção, pois entende-se que resulta incompleta qualquer interpretação da canção, da palavra cantada que não equilibre texto, música e voz indissociavelmente em ação (soando no ar): gestualidades vocais, leituras comparativas com experiências anteriores, indumentária, memória. Sendo a performance o momento em que todos os elementos se aglutinam, “é irrelevante perguntar se texto ou música vem primeiro. É sua performance, integrada, o primordial” (p. 24). Entretanto, há algumas questões sobre como os elementos verbais e musicais se originam (e qual deles vem primeiro).A performance será trabalhada pela pesquisadora não apenas restrita à audição, mas envolve também “o visual, o somático, o gestual, o teatral, o material” (p. 35). O leitor-ouvinte pesquisador dos estudos da palavra cantada trabalha sob os modos como o cancionista lê a voz do poeta por meio da “entonação embrionária”, expressão cunhada por Luiz Tatit.

O provérbio em latim é direto “as palavras voam e os escritos permanecem”. Imersos no mundo videocêntrico, para usar um termo caro a Adriana Cavarero, e também por não sermos tecnicamente preparados para tratar a palavra cantada de outro modo nas Letras, temos dado mais importância ao texto, sem compreender que este só funciona, só é eficaz porque animado por alguém cantando. Finnegan se posiciona sobre o que chama de “textualidade” (p. 30-31), relativizando o conceito de semântica para o contexto da performance. Esta pode abdicar de um sentido lógico, linguístico (de significado “cognitivo” ou “proposicional”), para dar vez à preponderância melódica, sonora, que às vezes retoma o sentido ritualístico e sacro do impresso. Na página 34, ela questiona: “o elemento verbal não seria na prática mais periférico do que supomos?”, questionando o privilégio do texto impresso. Admite-se a transcrição de performances, pois assim o texto mantém mais prestígio que a oralidade. Mais adiante ela comenta que a performance ressona com evocações multimidiáticas para além do evento singular, exigindo outras competências do leitor “comum”, tradicionalmente educado para apenas “ler com os olhos”. “São os textos verbais que aparentemente contêm ‘a coisa de verdade’. Não é de surpreender que a palavra escrita ou passível de ser escrita tenha com tanta frequência tido o lugar central no estudo das canções – é ela que pode ser isolada para análise e transmissão” (p. 19). E justamente por ser tratar de uma prática tradicional (a supervalorização do texto), a ideia de refletir texto, música e performance como um conjunto, e não alguma dessas dimensões com uma prioridade maior sobre a outra (p. 16), será um grande desafio. Tencionando a hierarquia, a autora observa que “as letras de canções podem ser facilmente esquecidas, mesmo pelos próprios cantores, enquanto a música é lembrada” (p. 33). E quem nunca se viu cantarolando uma música, enquanto tentava se lembrar da letra?

Em “Átimo” Gal Costa canta que “Um átimo de som num átomo de ar / Pode ser capaz de disparar / O que pensa cada poro / O que sente o pensamento / Num mecanismo tão claro como ponteiro no tempo”. Ruth Finnegan compreende isso ao anotar que “tudo de que precisamos é de um ouvido que escute e de uma voz que soe” (p. 15). Para Ruth, a canção é tomada de modo arcaico, como uma combinação de música e poesia (literatura), a primeira destacada pelo som, emite a emoção; a segunda, podendo ser destacada pelo texto (p. 18), emitindo sentido na voz de alguém cantando. Se para a Academia textos geram verdades, por sua vez, quem estuda a palavra cantada defende que a verdade (ou a sugestão desta) é e está na voz de alguém cantando, este “funcionamento, entre estar e ser no vento / Como a pele que invento sobre a velha pele dentro”, canta Gal Costa.

A canção continua: “Um átimo de som num átomo de ar / Pode ser capaz de disparar / O que sente o pensamento / O que pensa a sensação / Antes mesmo de virar canção”. Fica evidente que para a autora, a canção não se refere a texto, mas a performance, daí, destaca-se a diferença entre letra de canção e texto. Uma das grandes querelas, sempre em voga, nas Letras. Finnegan questiona porque a notação musical (a partitura) incomoda menos, ou não incomoda, do que as letras de canção e a literatura oral. O fato é que o avanço da tecnologia também contribuiu para que as pessoas tivessem acesso à performance, como o rádio e aparelhos de gravação. E estudar a performance vem ganhando cada vez mais reconhecimento para análise das criações humanas. Mas, para além do crescente movimento transdisciplinar que marca o contemporâneo, como temos nos instrumentalizado para isso? Para o tratamento do efêmero, da voz em performance?

A experiência dos ouvintes também baliza a questão de quem vem primeiro. Na África Central, a autora percebeu que textos poéticos são acompanhados por instrumentos; no Zimbábue, não era o registro escrito que importava, mas o som vindo do rádio, que permanecia na memória e na consciência das pessoas. Ela dá exemplos de como nós não prestarmos atenção ao que está sendo “falado” em uma canção, o elemento verbal sendo periférico na canção. Já no heavy metal, o significado da letra é parte de algo que envolve os músicos e fãs e os faça gostarem dele. No samba, a dança e a música podem ser consideradas tão importantes quanto a letra (p.33). O que os participantes trazem consigo moldam o significado da performance (p.36). Destaca-se, assim, a questão da memória, tanto para quem faz a performance como para quem assiste.

Em resposta à pergunta do título desse texto, Finnegan parece determinar que é a performance que vem primeiro. E parece ancorada na origem da poesia. Embora a resposta não seja tão simples. Por exemplo, a mesma letra e melodia podem ter diferentes performances, emergem da criação momentânea de cada participante: quem canta e quem ouve, “a experiência dos ouvintes” (p. 34). A voz não apenas conduz, ela é parte da substância, ela produz presença: “substância encarnada”. “Canção e poesia oral são a voz humana ativada pelo corpo” (p. 24). Mesmo quando a letra é feita antes, como um poema impresso que anos mais depois de sua publicação tenha sido cantado, por exemplo, a canção-em-si só se efetiva na performance, explorando complexos conjuntos auditivos, assim como seus diferentes modos de emissão (p. 30). Alguns dirão que o texto vem primeiro, em uma leitura apressada, de um analista acadêmico. Mas existe o exemplo de não se precisar saber a letra da música ou entender o que se canta, e, mesmo assim, é possível se emocionar, se sentir tocado por um conjunto de palavras cantadas. Como exemplo, a autora trata da poesia de louvação iorubá (p. 31).

Destaque-se que “Por vezes, texto e música são, pelo menos em algum sentido, criados em conjunto. Mas esse 'em conjunto' também tem variações (...). Aqui, pelo menos em certo sentido, pode-se dizer que 'performance' vem primeiro, já que nem aquele texto específico nem aquela interpretação musical específica tinham existência autônoma antes da performance. Outros casos de composição conjunta de letra e música acontecem antes do evento da performance (...) O ponto aqui, entretanto, é que nesses casos nem letra nem música são criadas como entidades separadas e independentes” (p. 25).

            Em suma, o discurso de Ruth Finnegan propõe que o levantamento ou estudo das modalidades que envolvem canção (texto, música e performance) precisam ser analisadas não desmerecendo nenhuma delas, a intenção não é tentar diminuir, no caso, a escrita, mas trazer à luz a importância da performance  na canção.



FINNEGAN, Ruth. O que vem primeiro: o texto, a música ou a performance?”. MATOS, Cláudia Neiva de; TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, Fernanda Teixeira. Palavra cantada: ensaios sobre poesia, música e voz. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

Um comentário:

Numa Ciro disse...

Descobri este escritor - pensador.
Leonardo Davino. DIVINO.
SE PARAIOCA for Paraíba Carioca
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