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27 março 2020

RESENHA: Poetas ou cancionistas?


Resenha escrita via whatsapp pelo grupo de pesquisa POESIA E TRANSDISCIPLINARIDADE: A VOCOPERFORMANCE para o livro “Poetas ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária”, de Lauro Meller.

No livro “Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária”, Lauro Meller analisa vários modelos de análise da canção, cotejando-os e demonstrando sua complementaridade, sublinhando a singularidade da linguagem da canção. Se por um lado as letras de canção não precisam "fazer sentido", entendendo-se como fazedor de sentido o ato comunicativo bem-sucedido, conformado aos parâmetros de uma língua corrente, elas de todo jeito "fazem sentido", só que de uma maneira bastante particular, subordinada/ligada a outros aspectos, alguns deles nem remotamente linguísticos. Assim, um juízo valorativo da canção não pode se basear somente no conteúdo de sua letra: se o fizermos, não estamos efetivamente lendo canções, mas elevando/reduzindo letras de canção ao estatuto de poemas, uma outra forma de expressão. Neste caso, a letra seria forçada a se subordinar aos paradigmas e às regras de análise de poesia: são poucas as canções populares que escapariam ilesas, carregando legitimidade poética, a esse crivo injusto. E as convergências e diferenças entre a poesia na/da palavra escrita e na/da palavra cantada são os motes da tese de Meller. Em sua avaliação, na “letra da canção [que] oferece uma qualidade literária, há que se analisar essa letra não em silêncio”. (p. 84). Ou seja, a canção deve ser analisada como um todo: letra (mensagem) e o modo como essa mensagem é dita (cantada) em seus contornos melódicos e rítmicos.
Meller comenta a proposta de Simon Frith, para quem, ao ouvirmos uma canção, ouvimos, ao mesmo tempo, palavras, que são uma fonte semântico-interpretativa; retórica, que são essas palavras sendo usadas de uma maneira especialmente elaborada (neste caso, musical); e vozes, que por si sós já carregam implicações de sentido. Em suma, afirma que "a análise da letra de canção não envolve apenas palavras, mas palavras em performance" (FRITH, 1996, p. 166). Se retiramos a letra desse ambiente de performance e a colocamos no papel, sacrificamos toda sua riqueza e potencialidade. "(…) mesmo que se queira compensar essa perda com a abertura interpretativa que a palavra 'nua' nos oferece, ela já está por demais atrelada ao componente musical, de modo que essa liberdade não funcionará como funcionaria em um poema", anota Lauro Meller (p. 94).
Para o autor, que analisa as propostas de Luiz Tatit, de quem toma emprestado o termo “cancionista”, e Philip Tagg, entre outros, o estudo da canção popular vai muito além da letra, envolve um conjunto: voz (modos de dizer), melodia e ritmo. Tagg exige conhecimentos propriamente musicais: sua análise requer conhecimentos de melodia, arranjo, orquestração, tonalidade, acústica, etc. O exemplo dado das várias versões de “A hard day’s night” é mais uma excelente demonstração das especificidades da execução performática da canção, que as diferenciam e singularizam malgrado a manutenção da letra. O autor apresenta ainda uma revisão dos estudos de Gabrielsson e Lindström que investigaram repostas emocionais de ouvintes não profissionais a “determinadas características na música” (p.85). E conclui: “ao alinhavarmos as propostas de Frith, Tagg, Tatit, Gabrielsson & Lindström e Friedlander, aplicando esses modelos de análise da canção popular ao nosso objeto pretendemos franquear o acesso de estudiosos não-especialistas em música ao universo dos estudos de música popular, evitando, ao mesmo tempo, o reducionismo de se prescindir por completo do estrato musical para privilegiar as letras” (MELLER, 2015, p. 139-140).
Meller afina-se ao método de análise multiciplinar proposto por Tagg, por evitar desequilíbrios, que uma abordagem mais limitada poderia ter. Por exemplo, uma crítica apenas formalista pecaria por uma descrição estéril do objeto de análise. Da mesma maneira, uma crítica que privilegie apenas a intuição ou a sensibilidade correria risco de ser muito impressionista. Tagg oferece então seu "método hermenêutico-semiológico", uma lista de parâmetros de expressão musical, que visa analisar os diferentes aspectos – “musemas” – da canção.
Assim, Lauro Meller denuncia a insuficiência técnica na análise cancional efetuada na Academia; e defende a necessidade de reconhecimento da especificidade da canção em relação à poesia, e do cancionista em relação ao poeta. Ele cita Arnold Hauser, que aproxima alguns critérios entre aquilo que valorizamos em uma estética literária e parte para a pergunta: "em que compositores encontramos essas características que valorizamos na série literária tradicional?" (p. 73). O autor percebe o movimento de críticos e pesquisadores em tentar legitimar grandes cancionistas nacionais dentro dos parâmetros da literatura tradicional, o que, segundo ele, resulta num erro. E cita Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil como alguns dos cancionistas mais tratados nas dissertações e teses dos cursos de Letras. Cursos que têm deixado de fora "compositores populares 'autênticos' como Cartola, ou 'semi-eruditos', como Catulo da Paixão Cearense", por exemplo. Ao mesmo tempo em que cita o livro "Noel Rosa – língua e estilo" e acusam os autores Castelar de Carvalho e Antonio Martins de Araujo por atropelarem a linha de fã/crítico e chamarem Noel de "poeta" e não de "cancionista". E conclui que "os autores insistem em levantar qualidades 'sérias' nas canções de um compositor cuja principal arma era o deboche; parecem questionar o fato de Noel não ter ainda sido agraciado com uma edição de suas obras completas pela Editora Nova Aguilar, quando o maior desejo do autor de 'Três apitos', segundo seus principais biógrafos, Máximo e Didier, era o de ouvir suas canções entoadas e assoviadas nas ruas, isto é, absorvidas e postas em circulação pelo público, e não silenciadas em estantes" (p. 76). 
Dependendo do contexto ou efeito que se espera da obra, o texto (da canção ou obra literária) desempenhará melhor ou pior a sua função. Os diferentes gêneros e subgêneros geram efeitos variados em públicos diferenciados. O autor defende que a canção popular tem sido utilizada como uma espécie de caminho entre a poesia de série literária e a música. Ele parte da diferença entre música popular e poesia literária: a primeira sendo desfrutada coletivamente, letra e música se materializam na voz e no corpo, na performance; já a segunda, se dando individualmente, ainda que tenha sua dimensão material e psíquica, o caminho entre o material e o psíquico é diferente em cada um. Fica a certeza de que, de natureza híbrida, não podemos analisar a canção sob conceitos puramente literários ou puramente musicais eruditos. O autor reafirma a ideia de que, embora, a letra de canção tenha "qualidade literária", é preciso que a análise valore todos os constituintes do gênero.

MELLER, Lauro. Poeta ou cancionistas? Uma discussão sobre música popular e poesia literária. Curitiba: Appris, 2015.

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