No texto "Poesia e composição" (conferência pronunciada na Biblioteca de São Paulo, 1952) João Cabral de Melo Neto escreve que "a ausência de um conceito de literatura, de um gosto universal, determinados pela necessidade - ou exigência - dos homens para quem se faz a literatura, vieram transformar a crítica numa atividade tão individualista quanto a criação propriamente". E completa: "Cada poeta tem sua poética. Ele não está obrigado a obedecer a nenhuma regra, nem mesmo àquelas que em determinado momento ele mesmo criou, nem a sintonizar seu poema a nenhuma sensibilidade diversa da sua. O que se espera dele, hoje, é que não se pareça a ninguém, que contribua com uma expressão original".
João Cabral está analisando a composição representativa do poema moderno. Para isso, ele coloca em destaque duas vertentes: os poetas de inspiração ("espontaneidade, presente dos deuses") e os poetas de trabalho ("elaboração demorada") de arte. "Ambas as ideias de confundem, isto é, ambas visam à criação de uma obra com elementos da experiência de um homem", de acordo com Melo Neto.
Basta conhecer um pouco da obra do autor de "Uma faca só lâmina" (1955) para perceber a vertente elegida: "porque nenhum [símbolo] indica / essa ausência [que esse homem leva] tão ávida / como a imagem da faca / que só tivesse lâmina", diz o poema. Para João Cabral a experiência vivida, mais do que transcrita, precisa ser elaborada artisticamente; o poema precisa ser mais importante do que o poeta. Ou, como observou Adorno no texto "Lírica e sociedade": "A lírica se mostra mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, onde nada comunica, onde, ao contrário, o sujeito, que acerta com a expressão feliz, chega ao pé de igualdade com a própria linguagem, ao ponto onde esta, por si mesma, gostaria de ir".
Evidente está que João Cabral é contrário ao "escritor que se dá em espetáculo juntamente com sua obra" e que demonstra "desprezo pela atividade intelectual". "O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas", anota. Entre a "originalidade do homem" e a "originalidade do artista", Cabral fica com a primeira.
Evoquei João Cabral, poeta que não gostava de música, para tratar da poemúsica feita a partir da poesia de Sérgio de Castro Pinto, poeta, ensaísta e professor de literatura na UFPB. Sua poética tematiza o eu que não se furta ao cotidiano, ao mesmo tempo em que releva a maturação da linguagem. De fato, Castro Pinto (re)apresenta os acontecimentos. Amador Ribeiro Neto identificou na poética de Castro Pinto uma "melancolia zombeteria". "Ele fisga a dor no carniço pensante do coração que rir", escreve Ribeiro Neto (ver Lirismo com siso).
Esse "carniço pensante" é o motor autoafirmativo que alimenta "Poema", poesia lançada no livro A ilha na ostra (1970). Revisionista e antropófago porque apresenta Castro Pinto usando a linguagem para pensar a linguagem. "O meu poema / é uma lâmina / escura e cega / que abre sulcos / e impõe o medo / da descoberta / frente ao espelho", escreve. A metapoesia, como vemos, reflete e refrata o passado (a referência evidente a João Cabral e ao trabalho de arte), presentificando uma assinatura autoral: da poesia e do poeta.
Castro Pinto repete palavras, circula o poema, limpando a poesia do que não é faca. O jogo intratextual (de autoinvestigação poemática) e extratextual (a poesia de João Cabral) apresenta um poeta leitor de poesia que desestabiliza a expectativa do leitor. Essa matéria viva e minimalista, plasmada na estrutura formal do poema que experimenta modos de usar as redondilhas, engendra isomorfismos estruturais (diz fazendo o que diz) revitalizantes porque faminta: "medra não do que come / porém do que jejua".
É esta politização poética, via autoanálise, e artística do local de ação do poético que unirá a poesia de Castro Pinto ao grupo Jaguaribe Carne, criado na capital paraibana em 1974 pelos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró com a proposta de condensar palavra, música, performance e ação política. Neste encontro "Poema" transforma-se em canção no disco Vem no vento (2003).
Do livro à voz, das onze estrofes de "Poema" as duas primeiras são cantadas por Paulo Ró e Ivan Santos: "eis a fórmula / ou a forma // a água fura a rocha / e assim faço o meu poema // um poema lâmina. / contundente / que esmigalha e esfarela / como se fora um dente". Mais o acompanhamento de violões (Paulo Ró), zabumba (Pedro Osmar), guitarra (Marcelo Macêdo), baixo elétrico (Xisto Medeiros), teclado (Helinho Medeiros) e bateria de (Hermes Medeiros).
"Poema" cantado reverbera o rigor autoinvestigativo de Castro Pinto e a música de invenção do Jaguaribe carne. "Pois somente essa faca / dará a tal operário / olhos mais frescos para / o seu vocabulário // e somente essa faca / e o exemplo de seu dente / lhe ensinará a obter / de um material doente / o que em todas as facas / é a melhor qualidade: / a agudeza feroz, certa eletricidade, // mais a violência limpa / que elas têm, tão exatas, / o gosto do deserto, / o estilo das facas", continua o poema antecipando-se cronologicamente ao que ouviríamos na canção.
Paulo Ró entoa os versos de Castro Pinto compreendendo as entonações embrionárias e as virtualidades de multileituras das palavras. A combinação música e poema atua para a conjunção ética e estética. O modo de dizer (o ritmo) já é o dito: "a imagem de uma faca / entregue inteiramente / à fome pelas coisas / que na faca se sente", diria o eu-lírico do poema.
O sujeito cancional composto pelo Jaguaribe carne é "faca / que só tivesse lâmina, / de todas as imagens / a mais voraz e gráfica". Isso se realiza porque a performance vocal ilumina a verbivocovisualidade do poema: é para ser lido, mas também visto e falado. Sem esta compreensão do trabalho poético não haveria a eficácia da canção. O sujeito desta entende que "se é faca a metáfora / do que leva no músculo, / facas dentro de um homem / dão-lhe maior impulso". É este sujeito impulsionado pela "melancolia zombeteria" e que "fisga a dor no carniço pensante do coração que rir" que "reduz tudo ao espinhaço" e se apresenta ao ouvinte da canção outrora poema. Agora poemúsica criativa e hábil.
No texto "Poemúsica - ouver estrelas", Augusto de Campos anota que "a conversão dos textos poéticos, de intrínseca musicalidade vocabular, em canções melodizadas ou sob tratamento sonoro, é sempre um desafio, qualquer que seja a estratégia que venha a ser escolhida, seja ela a linguagem transtonal da música contemporânea, ou a dominantemente tonal música popular ocidental" (ver Música de invenção 2). Jaguaribe carne embaralha tais linguagens.
João Cabral, para quem "o trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades da comunicação", já dissera: "o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer". Com o gosto pela cicatriz clara, o Jaguaribe carne reinventa o que lê, anima vocalmente palavras feitas para o papel por Castro Pinto. A poesia agradece, a canção popular de invenção também. E seus ouvintes que "padece sono de morto / e precisa um despertador / acre, como o sol sobre o olho".
João Cabral está analisando a composição representativa do poema moderno. Para isso, ele coloca em destaque duas vertentes: os poetas de inspiração ("espontaneidade, presente dos deuses") e os poetas de trabalho ("elaboração demorada") de arte. "Ambas as ideias de confundem, isto é, ambas visam à criação de uma obra com elementos da experiência de um homem", de acordo com Melo Neto.
Basta conhecer um pouco da obra do autor de "Uma faca só lâmina" (1955) para perceber a vertente elegida: "porque nenhum [símbolo] indica / essa ausência [que esse homem leva] tão ávida / como a imagem da faca / que só tivesse lâmina", diz o poema. Para João Cabral a experiência vivida, mais do que transcrita, precisa ser elaborada artisticamente; o poema precisa ser mais importante do que o poeta. Ou, como observou Adorno no texto "Lírica e sociedade": "A lírica se mostra mais profundamente garantida socialmente ali onde não fala segundo o paladar da sociedade, onde nada comunica, onde, ao contrário, o sujeito, que acerta com a expressão feliz, chega ao pé de igualdade com a própria linguagem, ao ponto onde esta, por si mesma, gostaria de ir".
Evidente está que João Cabral é contrário ao "escritor que se dá em espetáculo juntamente com sua obra" e que demonstra "desprezo pela atividade intelectual". "O artista intelectual sabe que o trabalho é a fonte da criação e que a uma maior quantidade de trabalho corresponderá uma maior densidade de riquezas", anota. Entre a "originalidade do homem" e a "originalidade do artista", Cabral fica com a primeira.
Evoquei João Cabral, poeta que não gostava de música, para tratar da poemúsica feita a partir da poesia de Sérgio de Castro Pinto, poeta, ensaísta e professor de literatura na UFPB. Sua poética tematiza o eu que não se furta ao cotidiano, ao mesmo tempo em que releva a maturação da linguagem. De fato, Castro Pinto (re)apresenta os acontecimentos. Amador Ribeiro Neto identificou na poética de Castro Pinto uma "melancolia zombeteria". "Ele fisga a dor no carniço pensante do coração que rir", escreve Ribeiro Neto (ver Lirismo com siso).
Esse "carniço pensante" é o motor autoafirmativo que alimenta "Poema", poesia lançada no livro A ilha na ostra (1970). Revisionista e antropófago porque apresenta Castro Pinto usando a linguagem para pensar a linguagem. "O meu poema / é uma lâmina / escura e cega / que abre sulcos / e impõe o medo / da descoberta / frente ao espelho", escreve. A metapoesia, como vemos, reflete e refrata o passado (a referência evidente a João Cabral e ao trabalho de arte), presentificando uma assinatura autoral: da poesia e do poeta.
Castro Pinto repete palavras, circula o poema, limpando a poesia do que não é faca. O jogo intratextual (de autoinvestigação poemática) e extratextual (a poesia de João Cabral) apresenta um poeta leitor de poesia que desestabiliza a expectativa do leitor. Essa matéria viva e minimalista, plasmada na estrutura formal do poema que experimenta modos de usar as redondilhas, engendra isomorfismos estruturais (diz fazendo o que diz) revitalizantes porque faminta: "medra não do que come / porém do que jejua".
É esta politização poética, via autoanálise, e artística do local de ação do poético que unirá a poesia de Castro Pinto ao grupo Jaguaribe Carne, criado na capital paraibana em 1974 pelos irmãos Pedro Osmar e Paulo Ró com a proposta de condensar palavra, música, performance e ação política. Neste encontro "Poema" transforma-se em canção no disco Vem no vento (2003).
Do livro à voz, das onze estrofes de "Poema" as duas primeiras são cantadas por Paulo Ró e Ivan Santos: "eis a fórmula / ou a forma // a água fura a rocha / e assim faço o meu poema // um poema lâmina. / contundente / que esmigalha e esfarela / como se fora um dente". Mais o acompanhamento de violões (Paulo Ró), zabumba (Pedro Osmar), guitarra (Marcelo Macêdo), baixo elétrico (Xisto Medeiros), teclado (Helinho Medeiros) e bateria de (Hermes Medeiros).
"Poema" cantado reverbera o rigor autoinvestigativo de Castro Pinto e a música de invenção do Jaguaribe carne. "Pois somente essa faca / dará a tal operário / olhos mais frescos para / o seu vocabulário // e somente essa faca / e o exemplo de seu dente / lhe ensinará a obter / de um material doente / o que em todas as facas / é a melhor qualidade: / a agudeza feroz, certa eletricidade, // mais a violência limpa / que elas têm, tão exatas, / o gosto do deserto, / o estilo das facas", continua o poema antecipando-se cronologicamente ao que ouviríamos na canção.
Paulo Ró entoa os versos de Castro Pinto compreendendo as entonações embrionárias e as virtualidades de multileituras das palavras. A combinação música e poema atua para a conjunção ética e estética. O modo de dizer (o ritmo) já é o dito: "a imagem de uma faca / entregue inteiramente / à fome pelas coisas / que na faca se sente", diria o eu-lírico do poema.
O sujeito cancional composto pelo Jaguaribe carne é "faca / que só tivesse lâmina, / de todas as imagens / a mais voraz e gráfica". Isso se realiza porque a performance vocal ilumina a verbivocovisualidade do poema: é para ser lido, mas também visto e falado. Sem esta compreensão do trabalho poético não haveria a eficácia da canção. O sujeito desta entende que "se é faca a metáfora / do que leva no músculo, / facas dentro de um homem / dão-lhe maior impulso". É este sujeito impulsionado pela "melancolia zombeteria" e que "fisga a dor no carniço pensante do coração que rir" que "reduz tudo ao espinhaço" e se apresenta ao ouvinte da canção outrora poema. Agora poemúsica criativa e hábil.
No texto "Poemúsica - ouver estrelas", Augusto de Campos anota que "a conversão dos textos poéticos, de intrínseca musicalidade vocabular, em canções melodizadas ou sob tratamento sonoro, é sempre um desafio, qualquer que seja a estratégia que venha a ser escolhida, seja ela a linguagem transtonal da música contemporânea, ou a dominantemente tonal música popular ocidental" (ver Música de invenção 2). Jaguaribe carne embaralha tais linguagens.
João Cabral, para quem "o trabalho de arte está, também, subordinado às necessidades da comunicação", já dissera: "o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer". Com o gosto pela cicatriz clara, o Jaguaribe carne reinventa o que lê, anima vocalmente palavras feitas para o papel por Castro Pinto. A poesia agradece, a canção popular de invenção também. E seus ouvintes que "padece sono de morto / e precisa um despertador / acre, como o sol sobre o olho".
***
Poema
(Sergio de Castro Pinto)
eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o meu poema.
um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.
não um poema
com o azul
da blue-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.
um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.
este será o seu ofício:
ser lâmina e penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.
repudio o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.
da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.
da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
e cimento, areia e cal.
o meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto cansa-me
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.
meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
partidas ao meio.
meu poema não é istmo,
isto nem aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e por isto provoca
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.
(Sergio de Castro Pinto)
eis a fórmula
ou a forma:
a água
fura a rocha
e assim faço
o meu poema.
um poema-lâmina
(contundente)
que esmigalhe
e esfarele
como se fora
um dente.
não um poema
com o azul
da blue-blade,
mas um poema
que sangre
as maçãs da face.
um poema-lâmina
que prove e triture
as maçãs do rosto
com a mesma fome
e com o mesmo gosto
com que o primeiro homem
provou da maçã do paraíso.
este será o seu ofício:
ser lâmina e penetrar
e ferir e dissecar
e ir sempre além
do que se pode ir.
repudio o azul
de outras lâminas
diante do rosto
e do espelho
o meu poema
é uma lâmina
escura e cega
que abre sulcos
e impõe o medo
da descoberta
frente ao espelho.
da descoberta
que cada berlinense
só tem uma face
e que a outra lhe falta
quando de manhã
ao barbear-se.
da descoberta
que mesmo de frente
o berlinense
é de perfil
e que há entre
o oriental e o ocidental
um limite, uma divisão
e cimento, areia e cal.
o meu poema
poderia ser azul
como outras lâminas
mas isto cansa-me
e esqueço o lirismo
de poder dizer
que do azul da lâmina
saíram gaivotas,
verão e istmos.
meu poema não é istmo
pois nada une
apenas faz ver
de tudo a distância
e por isto é gume
e por isto é lâmina
e se quiserem
esterco, estrume
que aduba a memória
frente ao espelho
e impõe a descoberta
de outras faces
partidas ao meio.
meu poema não é istmo,
isto nem aquilo,
meu poema é sabre e sabe
onde corre o rio
e onde incorre o risco
da descoberta de cada um
e por isto provoca
e rasga cortes
na superfície lisa
de cada um.
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